Os Anos 70: Capítulo III - Tenda do Calvário
- Details
- Parent Category: ROOT
- Hits: 15776
Panfleto da Tenda do Calvário gentilmente enviado por George Romano
Anos 70 – Capítulo III
TENDA DO CALVÁRIO
Escrito por Antonio Celso Barbieri
No começo dos anos 70 muitas bandas de rock ganharam proeminência no cenário paulista. Mutantes, Terço, Made in Brazil, Som Nosso de Cada Dia, Sá, Rodrix & Guarabira, etc, são alguns nomes que de imediato me vem à mente. Apesar da presença dos militares na vida do país, havia uma certa efervescência roqueira no ar.
Foi então que uma nova casa de shows, fazendo propagandas no rádio, começou anunciar sua inauguração: “Tenda do Calvário! Faltam 25 dias para a inauguração!” Dizia o locutor da rádio numa contagem regressiva diária.
Igreja do Cálvário em Pinheiros - SP
Eu recentemente abandonara a Stocking, minha loja de discos aberta em parceria com meu irmão Jorge e tinha tirado um mês de férias (Não deixe de ler os outros capítulos desta série para saber mais sobre a Stocking). Sem ter o que fazer, entrei de cabeça neste projeto. Na verdade, eu era bem inexperiente e não havia muito que eu pudesse ajudar. Eu passa os dias dentro do teatro fazendo amizades e vendo a coisa tomar forma. O teatro era germinado com a Igreja do Calvário que fica na Rua Cardeal Arcoverde, 950 no bairro de Pinheiros. A torre da igreja ficava dentro do teatro, e praticamente separava os dois espaços.
Tenda do Calvário (vista aérea)
A torre tinha vários andares e foi imediatamente escolhida pela produção da Tenda como escritório central. O espaço onde aconteceriam os shows parecia ter permanecido desocupado por muito tempo. O lugar deveria ter sido o “cinema do padre” por um tempão. Este espaço, convenientemente, já possuía até cadeiras de madeira com acentos dobradiços, típicas dos cinemas antigos. Muitas cadeiras estavam quebradas e estavam sendo reparadas pela produção. O personagem central do lugar era Magnólio. Magnólio, já faleido, foi um comunicador de palco bem conhecido dos roqueiros da época por ter sido o apresentador dos, hoje, lendários concertos realizados no Parque Ibirapuera lá no comecinho dos anos 70. Ele era é uma figura carismática que naturalmente atraia as pessoas e obviamente, eu também o admirava. Magnólio mais tarde mudaria residência para próximo da Floresta Amazônica onde como um palhaço ecológico, até o seu falecimento, defenderia as causas dos povos ribeirinhos.
Mas, voltando ao teatro, ele parecia um formigueiro de gente andando de um lado para outro. Vários voluntários pintavam as paredes com desenhos psicodélicos (cogumelos, metamorfoses e fantasias). Outro pessoal decorava o teto com tecidos coloridos e variados dando a impressão de que o teatro era uma enorme tenda. Tinha gente limpando debaixo do palco para que o mesmo virasse o camarim dos artistas. Havia também o pessoal criando arte para cartazes e panfletos. Quer dizer o lugar era um verdadeiro centro de criação cheio de gente jovem e idealista. Homens, mulheres e até algumas crianças com visual hippie e descontraído passavam os dias envolvidos nas mais variadas atividades.
Os Mutantes
Os dias foram passando e eu já estava meu penúltimo dia de férias. Naquela noite seria a pré-estréia para a imprensa com um show dos Mutantes. Era os Mutantes na sua última formação, a mais progressiva que lançou o lendário álbum Tudo Foi Feito Pelo Sol. A banda contava com Rui Motta na bateria, Antonio Pedro no baixo, Túlio Mourão nos teclados e Sergio Dias nas guitarras e vocais.
Lá pelo começo da tarde a banda chegou e os músicos começaram preparar o palco. Eu estava realmente emocionado pois era um grande fã dos Mutantes. Sergio Dias perguntou se alguém sabia onde havia um telefone público e, eu imediatamente prontifiquei-me a ajudá-lo.
Mutantes: Rui Motta, Antonio Pedro, Túlio Mourão e Sergio Dias
Sergio Dias e Barbieri
no Clube Guanabara em Londres
Foto C. A. Zanarotti (2005)
Juntos, atravessamos a Praça Benedito Calixto em frente à igreja em direção à um bar que sabia de antemão, possuía um telefone público. Curiosamente, este bar ficava quase ao lado de um lugar que eu conheceria intimamente no futuro, mais de 10 anos depois, o Teatro Lira Paulistana.
No caminho, além de confessar minha adoração pela banda, emocionado ia procurando puxar conversa com Sergio. Se não me falhe a memória, parece que ele, na conversa, me disse tinha vendido uma casa e gasto todo dinheiro comprando guitarras...
Eu sei que, Sergio disse que tinha um compromisso marcado. Pediu que avisasse a banda que logo estaria de volta. Nós nos despedimos ali no bar e eu voltei para o teatro. Lá, comecei ajudar o responsável pela iluminação do show. Não tenho certeza mas, parece que o nome da sua empresa de luz era “Umas e Outras”. O técnico posicionou-se no topo de uma escada e eu passava para ele os holofotes para serem fixados na barra de luz.
A policia acaba com a festa
Recordo-me que escutei um som de rádio walkie-talkie vindo de fora da porta de saída do palco que, vivia constantemente fechada. Apesar de ser um som incomum, não dei importância. Alguns segundos depois, a porta da frente do teatro abriu-se violentamente e dezenas de policiais, usando roupas civis, portando metralhadoras, invadiram a casa correndo e gritando. Hoje em dia, pareceria uma operação da S.W.A.T. na busca de perigosos terroristas. Eu estava à ponto de entregar um holofote para o técnico de luz. Ele olhou para mim e disse:
“Fique calmo! Vamos continuar fazendo o que estamos fazendo até que nos mandem parar”.
Uns policiais foram para o porão debaixo do palco e vieram puxando um rapaz. Um disse para o outro:
“Olha o olho vermelho dele! Deve estar muito louco!”.
O rapaz protestou:
“Eu não estou drogado não!"
A reação calma e tranquila dos presentes contrastava com a dos policiais que rapidamente pareciam frustrados e nervosos porque não encontram droga nenhuma. Gritaram:
“Parem tudo o que estão fazendo e venham para cá!”
Os policiais estavam agrupando todo mundo na recepção do teatro, um salão próximo à porta de entrada, quando trouxeram um rapaz vindo da torre da igreja. Era o lendário músico Coquinho. Os policiais que o acompanhavam pareciam jubilosos pois Coquinho estava carregando, segundo eles, alguns micro pontos de LSD. Ele foi levado imediatamente para a viatura. En†nao, os policiais, separam os homens das mulheres e começaram uma revista geral. Num dado momento um rapaz, vindo de fora, entrou todo nervoso pois quando entrava imediatamente viu sua companheira lá dentro cercada de homens portando metralhadoras. Ele queria aproximar-se dela mas os policiais não deixavam e ainda comentavam:
“Este também deve estar muito louco porque ignora até as metralhadoras!”
Nós os homens estávamos todos juntos, em pé, próximos de uma parede. Um policial puxou uma mesa para o meio do salão, sentou-se numa cadeira e começou chamar-nos um por um:
“Tira tudo que você tem nos bolsos! Onde está a droga?” Dizia ele enquanto examinava tudo que colocavamos na mesa.
Rui Motta, o baterista dos Mutantes colocou na mesa uma carteira estufada, cheia de pedacinhos de papel com números de telefones, endereços, recados, etc. O policial espalhou-os pela mesa e começou abri-los um por um e jogá-los do lado. Rui Motta começou a pega-los um por um e reorganizá-los meticulosamente novamente.
Quando o policial percebeu o que estava acontecendo, aproveitou que ele estava curvado sobre a mesa e, imediatamente, deu-lhe um forte tapa na cabeça acompanhado de uma ordem para que ele ficasse quieto se não quisesse apanhar mais. Aquela agressão, foi uma ameaça para todos nós. Enquanto a revista prosseguia em silêncio, a porta da rua abriu-se lentamente e meu amigo Ari colou a cabeça para dentro do teatro. Ele perguntou meio sem jeito:
“O Celso está aí?”
“Está sim meu filho! Entra e vai lá para a parede” Foi a resposta de um policial.
Ari era um amigo frequentador da Stocking, um dos únicos que ainda mantinha contato. Ele estudava na Escola Panamericana de Artes e trazia seus desenhos para mostrar para Magnólio para ver se conseguia uma vaguinha no “departamento de artes” da Tenda. Ele, assim como eu, era fã dos trabalhos do Roger Dean artista gráfico que foi responsável pelos desenhos mostrados em muitas capas de discos de rock daquela época. No Brasil, Roger Dean ficou muito conhecido pelas capas que fez para os álbuns da banda Yes e Uriah Heep. Seus trabalhos refletiam muito a temática em voga na época, com desenhos mostrando metamorfoses e elementos de ficção científica. Bom, nem preciso dizer que quando os policiais viram os desenhos, para eles foi um prato cheio!
Imediatamente separaram a sua pasta como exemplo de arte feita sob a influência de tóxicos. Para bem da verdade, devo deixar claro que o Ari era um rapaz que nem bebia nem fumava cujo pai era uma pessoa muito séria e restrita. O velho parecia um general! Até eu tinha medo dele! O coitado do Ari tinha passado em casa à minha procura e minha mãe lhe tinha informado onde eu estava. Então, já que ele estava com seus desenhos aproveitou para mostrá-los na tenda. Pura falta de sorte!
Naquele grupo ali encostado na parede estavam a banda Mutantes (com exceção de Sergio Dias que escapou por sorte), Jaques (famoso radialista do legendário programa de rádio chamado Kaleidoscópio, que era transmitido pela Rádio America), Pena Schimidt (Técnico de som dos Mutantes que ficaria famoso como Produtor Fonográfico, onde acabaria destacando-se, entre outros, pela produção da música Inútil da banda Ultraje a Rigor em 1983), Allan Kraus (famoso técnico de som dos Mutantes), funcionários e colaboradores da Tenda, alguns repórteres e muitas outras pessoas que não me recordo e espero que os leitores me ajudem a lembrar os nomes. Aliás, estou certo que deve tem gente que não quer ter seu nome lembrado! :-)
Léo Wolf, um dos roads dos Mutantes, imediatamente despertou a atenção dos policiais pois era um tipo alto com cabelos longos quase brancos, um tipo meio Johnny Winter. Ele, como o nome sugere, não era brasileiro e já foi separado.
O Sol foi baixando, a tarde estava no fim e nós, ali agrupados num canto, apreensivos, não tínhamos idéia do pesadelo que ainda estava por acontecer. Um enorme ônibus branco e preto, sem janelas, com apenas uns orifícios para respiração chegou. Fizeram nós, os homens, entrarmos no ônibus. Allan Kraus foi um dos primeiros a entrar. Fecharam as portas e a penumbra tomou conta. O ônibus começou a rodar e, para surpresa de todos, o som de uma gaita de blues preencheu os espaço. Era Allan Kraus com sua gaita tocando o que, defino como “o blues da cadeia”.
Fomos levados para o DEIC na Brigadeiro Tobias. O ônibus parou, as portas abriram-se debaixo de luzes de holofotes, no chão policiais armados de metralhadoras e carabinas nos esperavam:
“Mãos na cabeça! Todos em fila indiana!”. Gritaram.
Enquanto saíamos do ônibus pude ver uma outra viatura parada de onde tiravam um rapaz com aparência de estudante universitário. Era um rapaz de boa aparência, vestia camisa social, blusa de lã e jeans. Numa longa fila subímos por vários lances de escadas. Não sei se nos levaram para o segundo ou terceiro andar. Nos colocaram numa sala que tinha dois ambientes. A sala propriamente dita e um lado separado por grades, parecendo uma cela de prisão. Allan Klaus foi posto na cela juntamente com o “estudante” que não fazia parte do nosso grupo.
Mais tarde, dois policiais retiram o “estudante” da cela e o levaram para uma salinha próxima. Depois de alguns minutos ouvimos alguns gritos dos policiais seguidos do som de uma forte pancada surda imediatamente acompanhada de um gemido. O rapaz foi então trazido para a cela. O rapaz, assustado, estava pálido como cera e andava arcado com as mãos no estômago. Nós todos passamos horas ali sentados no chão, só imaginando o pior.
A porta abriu e um tipo barrigudo e cínico entrou com uma carabina, era o delegado Raul Careca, dado como torturador e mal elemento (acabou morrendo baleado) e disse:
“Quem não levantar a cabeça vai levar uma coronhada!”. Depois, olhou para trás e disse para o fotógrafo do Jornal O Diário da Noite:
“Pode entrar que eles já estão prontos!”.
O fotografo entrou e fez seu trabalho sujo!
A Foto acima foi tirada pelo fotógrafo do Diário da Noite e colocada na capa da manchete do outro dia
Quinta-feira, 7 de novembro de 1974. A manchete do Diario da Noite, cheia de mentiras e exageros!
Deixo aqui meus agradecimentos à Manolo Barbero Belmonte por enviar-me estas duas fotos muito raras.
A noite chegou e o barrigudo veio anunciar que “ele fazia questão que ficássemos como hospedes da casa”:
“Antes de descer é lógico que vocês precisam se cadastrar com a gente”. Disse com um sorriso irônico e maligno.
Depois que todos fomos fichados ele chamou uns policiais e disse:
“Leva eles lá para o porão!”.
Allan Klaus ficou na cela. Foi a última vez que eu o vi. Em fila indiana, descemos pelas escadas. Descemos vários andares para o que parecia ser um labirinto interminável de escadas e corredores. Sabíamos que estávamos no subsolo mas não sabíamos quantos andares abaixo. Abriam uma porta de metal com grades, entravamos e a fechavam de novo por detrás de nós, lá na frente havia outra porta com grades e assim por diante. Chegamos num tipo de ante sala onde um policial carcereiro nos ordenou que tirássemos os cadarços dos sapatos, os cintos e entregássemos todos os nossos pertences para que fossem colocados em cubículos com nossos nomes.
Inesperadamente começamos ouvir uma gritaria de mulheres. Naquela recepção carcerária uma outra porta com grades podia ser vista. Esta porta dava para um corredor com umas 10 celas do lado esquerdo terminando com uma cela de frente lá no fundo, no final do corredor. Esta cela estava cheia de mulheres. Só ela podiam nos ver.
Éramos todos jovens, cabeludos e parece que a mulherada gostou porque gritavam como “macacas de auditório”:
“Loirinho você é lindo! Carcereiro trás aquele gostoso para mim!”
Usavam uma linguagem pesada e gritavam todo tipo de besteira pornográfica. As outras 10 celas estavam cheias de homens, gente barra-pesada, muitos esquecidos ali por um tempão. A única referencia sexual feminina deste povo eram aquelas mulheres naquela cela e eles não gostaram nada de ouvir as mulheres mostrando sua preferência por nós. Dezenas e dezenas de braços saíram das celas, gesticulando e fazendo sinais obscenos, acompanhados de pedidos dos prisioneiros para que os policiais deixassem eles “brincarem” conosco.
O policial carcereiro olhou para o corredor cheio de braços esticados, olhou para nós e sem muita emoção perguntou para os outros policiais:
“Qual é a ordem do chefe?”
“Dividi-los e colocá-los em grupos de 3 ou 4 em cada cela para sentirem nossa hospitalidade.” Foi a resposta.
Rapidamente nos olhamos uns aos outros aterrorizados. Um rapaz do nosso grupo tinha uma cartola preta velha e carcomida. Passamos a cartola e todo mundo colocou rapidamente tudo que tínhamos de dinheiro nela. Demos o dinheiro para o carcereiro ao mesmo tempo que imploramos que fossemos colocados todos juntos numa cela só.
Felizmente, o carcereiro aceitou. No caminho para nossa cela tivemos que passar rente da parede para escapar das mãos dos presos que queriam alcançar nossos cabelos. Na nossa cela já haviam uns 6 ou 7 presos que imediatamente agruparam-se num canto. Nós éramos muitos e lotamos a cela, mal dava para sentarmos no chão. A cela era um cubículo nojento com um buraco num canto para os prisioneiros fazerem suas necessidades fisiológicas. Nem preciso dizer que no tempo que ficamos lá ninguém usou o “banheiro”.
Um dos prisioneiros que já estava na cela, um tipo branco, baixinho e forte estava muito nervoso e inquieto e não parava de falar alto consigo mesmo. Ele dizia:
“Esta noite, eu não vou aguentar! É muita tortura! Eu não aguento! Eu não aguento!
De tempos em tempos ele era interrompido por algum dos seus companheiros de cela que o mandava calar a boca. Alguém do nosso grupo puxou conversa com ele e ficamos sabendo que ele era um sorveteiro que vendia drogas na porta de uma escola. Ele estava num dilema, se contasse para os policiais quem fornecia a droga ele poderia morrer ali dentro ou então fora da prisão e se não falasse, os policiais o matariam de tanta tortura.
Sem podermos mudar de posição, sentados com os joelhos levantados, um companheiro apoiava as costas nas pernas do próximo e assim por diante. Foi uma noite interminável e cheia de medo. De tempos em tempos passava um policial com uma caneca metálica fazendo barulho nas barras de metal e escolhendo um de nós para aterrorizar. Ele dizia:
“É você mesmo! Você vai ser o meu peixinho! Daqui a pouco vou buscar você e mostrar com quantos paus se faz uma canoa!”
De madrugada trouxeram alguém arrastado e jogaram na cela anterior à nossa. Era o “estudante”. Um gemido de dor ficou marcando o tempo como a batida lenta de um relógio diabólico. A mulheres que viram a chegada do rapaz começaram gritar:
“Chamem um médico! Chamem um médico!”.
Os prisioneiros das outras celas gritavam:
“O cara é um fraco! Enfia um pau no cu dele que ele para de gemer!”.
Alguns policiais vieram, abriram a cela e puxaram o rapaz para o corredor. Ele ficou ali caído imóvel. O dia chegou e a hora do almoço chegou. Um prisioneiro cozinheiro trouxe uma panelona que tinha dentro algo que só poderia ser descrito como uma lavagem para porcos. Ninguém quis almoçar e o prisioneiro ficou muito ofendido. Ele queria bater em todo mundo. O dia passou com os carcereiros aterrorizando a gente. Lá pelo final da tarde o chefão barrigudo chegou com uma lista de nomes na mão:
“Chegou a hora das crianças verem o que é bom! Eu vou dizer o nome dos premiados que devem fazer uma fila aqui próximo da parede”. Todo arrogante ele começou ler os nomes:
“Antonio Celso Barbieri”
Meu coração disparou! O primeiro nome da lista tinha que ser o meu?
“Ari”
Quando ele falou o nome do Ari e dos próximos eu percebi que os nomes estavam em ordem alfabética. Percebi que a lista incluía todos nós. Para formar a fila, tive que pular o corpo do estudante que estava esticado no chão. Estava com os olhos fechados, seu rosto e suas mãos estavam azulados e sua expressão facial mostrava muita dor. Ele não era mais aquele rapaz saudável que eu tinha visto chegar. Agora ele era um farrapo humano quase irreconhecível. Nos levaram para a recepção carcerária e nos devolveram nossos pertences.
Depois, nos levaram para cima novamente, para a mesma sala com uma cela interna. Entre nós alguém comentou que a polícia não podia nos deter por mais de 24 horas sem provas. Os país de alguns dos membros do nosso grupo começam a aparecer e levar seus filhos. O nosso grupo foi diminuindo. Num dado instante, a porta abriu e meu pai e o pai do Ari entraram. O barrigudo estúpido disse imperativo:
“Qual desses marginais é o seu filho?”.
Meu pai estava branco como uma folha de papel. O pai do Ari parecia estar fumegando. Assim que saímos daquela sala, fomos cercados por advogados que estavam ali para nos defender. Alias, o Magnólio não foi preso porque procuravam pelo Magnólio (nome artístico) e naquela hora, convenientemente, ele era o advogado Paulo Roberto. Os advogados que batalharam por nós foram ele e seus dois irmãos. Obrigado Mag!
Felizmente, os irmãos do Magnólio tentavam amenizar as coisas, dizendo para nossos pais que nós éramos inocentes, não tínhamos feito nada de errado e devíamos ser motivo de orgulho. Meu pai aceitou a coisa muito bem. Depois, pediu que eu mantivesse isto como um segredo de família :-)
Nós já estávamos de saída quando o barrigudo chamou o pai do Ari e mostrou-lhe os desenhos feitos pelo filho. Disse:
“Como é que o senhor não percebe que para seu filho desenhar estas coisas só pode estar sob efeito de drogas!”
“É meu trabalho de fim de ano na escola!” Protestou o Ari.
“Fica quieto!” Cortou seu pai.
“Estes desenhos ficarão aqui e farão parte do nosso Museu do Drogado!” Falou o barrigudo.
Não teve jeito! Ari nunca mais viu seus desenhos! No dia anterior Ari não tinha aparecido para jantar, ido na escola e nem dormido em casa. Minha mãe já estava acostumada com meus desaparecimentos mas, a família do Ari não. No outro dia a mãe e o pai do Ari apareceram na minha casa. Foram então até a Tenda do Calvário.
Uma vez que a única pessoa presente não lhes não lhes deu nenhuma explicação convincente, desconfiados mandaram meu irmão Jorge na Tenda. Meu irmão então, foi informado que eu estava preso no DEIC. Meu irmão voltou para casa e contou tudo. Tinha passado meu último dia de férias na prisão.
No mesmo dia, ainda tive tempo de passar no barbeiro da esquina e cortar o cabelo bem curto. No dia seguinte chegava cedinho ao Banco Noroeste do Estado de São Paulo com uma cópia do Jornal O Diário da Noite debaixo do braço.
Mais mentirosa que a matéria do O Diario da Noite, só mesmo o Bush dizendo que o Iraque tinha "armas de destruição em massa". A matéria dizia que a vizinhança já não aguentava mais o cheiro de fumo que sai do teatro e que um policial tirou a sua aliança e, infiltrou-se naquele antro promíscuo onde até as crianças dos hippies estavam envolvidas. Um lugar onde ninguém tomava banho, etc, etc. Na minha opinião acho que o repórter que escreveu a matéria fumou um antes de escrevê-la.
Na primeira página, numa foto central bem grande aparecia um monte de cabeludos sentados no chão. Eu podia ser visto bem no meio do grupo. A manchete:
58 presos no salão de festas da igreja hippies: LSD
O número de pessoas detidas aquele dia quase chegou aos 60 mas, apenas uma, pessoa carregava LDS, o falecido Coquinho. Se a polícia barrar todo mundo na saída de um cinema possivelmente encontraria droga no bolso de alguém. Isto seria motivo para fechar o cinema e prender todo mundo?
Quanto ao “estudante”, no mesmo jornal, numa nota pequena, informava que um vizinho havia chamado a polícia pois, tinha visto, pela janela da sua casa, o rapaz fumando dentro do seu próprio quarto. Ainda tiveram a cara de paú de mensionar ca capa do jornal: Apanhou e denunciou os traficantes. Quanta violência! E pensar que, hoje em dia, tem assassinos e traficantes comandando o crime de dentro das prisões.
Algumas semanas depois da prisão, recebi pelo correio um convite. Era convidado especial para a inauguração da Tenda do Calvário. Fiquei muito feliz por terem lembrado de mim e, é lógico que fui! Como conseguiram meu endereço até hoje não sei! Quem tocou foi a banda O Som Nosso de Cada Dia. Aliás, um dos membros da banda tocou sentado, com um pé engessado pois, no ensaio caiu atravéz de abertura no palco, indo parar no porão embaixo e quebrando um pé. Definitivamente a bruxa estava à solta! Este começo turbulento da Tenda marcou-a negativamente para sempre. A Tenda durou poucos meses, sempre com medo de outra visita da polícia. Infelizmente pouco se fala do lado positivo, dos muitos shows que lá aconteceram.
Sergio autografando meus CDs no Clube Guanabara em Londres
Foto C. A. Zanarotti (2005)
Segundo declaração feita pelo baixista Antonio Pedro ao jornalista Rodrigo Werneck na whiplash.net, parte da razão do fim dos Mutantes foi por causa do que aconteceu na tenda. Quando perguntado porque essa formação não durou mais tempo e como ocorreu a sua saída, ele respondeu:
"O showbiz por aqui era muito devagar. Trabalhávamos muito e ganhávamos pouco. E ainda tinham os empresários, que costumavam nos roubar. Mas teve um episódio que ajudou a acelerar o fim daquela formação. Fomos convidados para a abertura da Tenda do Calvário, local para shows ao lado da igreja do Calvário, em SP. Acontece que o local estava sendo vigiado pela polícia, devido a denúncias de que os organizadores estavam usando drogas no local. Na tarde do dia da inauguração, estávamos lá passando o som quando a polícia chegou e levou todo mundo, inclusive nós. Foi muito desgastante. Pouco depois, eu e Túlio pedimos as contas." Em 2005, em Londres, depois do show no camarim do Clube Guanabara, pude trocar umas palavras com o Sergio Dias onde rapidamente revivemos o acontecido. Ele disse que só não foi preso porque teve muita sorte. Foi coisa do destino!
Celso Barbieri em dezembro de 1975. Foto: Adonis Arlindo de Camargo
Depois, deste episódio meus familiares mudaram de atitude em relação à idéia da possibilidade de eu me casar. Antes, meu pai dizia:
"Filho, tem muita mulher neste mundo, aproveita a vida. Você é muito jovem para se casar!".
Depois da prisão ele passou a dizer:
"Esta garota que você está namorando é gente boa. Nasceu em Botucatu, na mesma cidade que você, é filha de ferrovíarios como nós. É uma garota bonita, boa menina, um casamento será bom para você, vai ajudar a acalma-lo, a acentar sua vida, dando-lhe um maior senso de responsabilidade".
Eu caí no conto e me casei em dezembro de 1975, tinha só 23 anos. 3 anos depois nascia minha filha. O casamento durou mais ou menos 7 anos.
Curiosidade - Descoberta acidental de uma catacumba
Um dia, próximo da escada de acesso para a torre da igreja, durante os trabalhos de limpeza do local, um tijolo solto, quando retirado, revelou uma área aparentemente secreta. Vários tijolos foram retirados e revelaram um pequeno corredor que dava para uma escada de concreto sem corrimão que descia para uma grande sala. Alguém arrumou uma lâmpada com uma extenção e descemos as escadas para explorar. Nas paredes podia-se ver entradas seladas com tijolos. Tudo indica aquela sala era um grande túmulo. Será que a Tenda do Calvário foi castigada por tirar os sossego dos mortos?
Circular fornecida para meu amigo George Romano juntamente com planfletos para distribuição
(veja um panfleto no topo desta página)