Os Anos 70: Capítulo II - Stocking Music Center
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Anos 70 – Capítulo II (1972/73)
Logo da loja criado por Brabieri
Stocking Music Center
No começo dos anos 70, juntamente com meu irmão Jorge, abri uma loja de discos no Bairro do Limão em São Paulo. A loja chamava-se Stocking Music Center e localizava-se no começo da Avenida Deputado Emilio Carlos. Porque tínhamos menos de 21 anos idade, a loja foi aberta no nome de meu Pai.
Éramos todos jovens, vivendo a descoberta da nossa sexualidade. O nome “Stocking” significa “meia de mulher” e foi inspirado pela androginia de David Bowie, Alice Cooper, Marc Bolan (T Rex), Robert Plant (Led Zeppelin), Iggy Pop & The Stooges e New York Dolls. No Brasil, o androginismo ficava por conta de Ney Matogrosso (na época, vocalista da banda Secos e Molhados), Cornélios (vocalista da banda Made in Brazil), Arnaldo Baptista (Mutantes), Magnólio (apresentador de shows de rock) e do bailarino e coreógrafo norte americano Lennie Dale e seu grupo Dzi Croquetes com seu show “Gente Computada Igual a Você” (1972).
Lennie Dale
Devo admitir que o nome da loja era bem pretensioso e sua localização num bairro longe do centro da cidade não era o lugar mais adequado para uma loja de discos que não vendia MPB, Samba nem Música Sertaneja. Lembre-se que estamos falando do começo dos anos 70. A Stocking imediatamente aglutinou a juventude roqueira da região e transformou-se num ponto de encontro da moçada. Infelizmente, a Stocking sobreviveu aproximadamente apenas um ano. Nunca deu lucro e foi subsidiada por mim que trabalhava no Banco Noroeste do Estado de São Paulo para pagar as contas. Meu irmão Jorge, todos os dias, tomava conta da loja até que eu chegasse do trabalho. A bem da verdade, ele também não viu nenhum tostão.
A loja era dividida em dois ambientes. Na parte da frente ficava a loja propriamente dita e nos fundos uma área de lazer que consistia num carpetão, algumas almofadas e um jogo de xadrez. Não havia separação entres as duas partes e, a garotada podia vir e ficar dentro da loja sentados no carpete batendo papo, ouvindo música ou jogando xadrez. Também começamos organizar bailes de rock pela redondeza. Nossos bailes eram sempre disputados pois, como DJs nós estávamos, naquela época pré-internet, em sintonia com tudo que estava acontecendo no mundo em termos de rock.
Enquanto lá fora os militares controlavam o país com mão de ferro censurando qualquer manifestação artística, dentro da loja, bem ao estilo Woodstock (1969), vivíamos os ideais hippies de fraternidade regados à muita música.
Eu tinha feito um curso de teatro na Escola Macunaíma que ficava bem perto de minha casa, no bairro Barra Funda. A escola ficava na Rua Lopes Chaves, exatamente na casa onde morou o escritor modernista Mário de Andrade autor de Macunaíma.
Mário de Andrade
Instalei holofotes de teatro no teto da loja, montei uma mesa de iluminação, comprei um gravador de rolo Akay modelo 4000 DS (um luxo para a época) e, nos fins de semana, empurrávamos as mobílias para junto das paredes, baixávamos a porta da loja que então virava um teatro. Coloquei em prática muitos dos exercícios que aprendi no Macunaíma e acabamos desenvolvendo um trabalho coletivo, uma peça, chamada “A Faca”.
A Faca era baseado num tipo de teatro conhecido como “Teatro do Absurdo” bem na linha do Grotowisk e consistia numa série de atos aparentemente desconectados entre si onde, de forma simbólica, sempre era discutido a comunicação ou a falta dela entre as pessoas. Fazíamos uso intensivo de maquiagem usando pinturas faciais que hoje em dia seriam muito semelhantes à da banda Kiss.
Para muitos dos jovens que frequentavam loja, a Stocking virou o centro de suas vidas, marcando-os profundamente.
Para mim, depois de alguns meses, ficou difícil manter uma certa hierarquia e “ordem na casa”. Além do custo financeiro, o desgaste na relação com meu irmão foi aumentando. Enquanto eu trabalhava no banco para pagar o aluguel, tinha gente faltando ao serviço para passar o dia todo dentro da loja. Eu, no final da tarde, chegava na loja, para encontrar cinza de cigarro encima dos discos, por todos os lados e um bando de gente jogando cartas e bebendo cerveja dentro do estabelecimento. Muito embora, na verdade a garotada fosse tudo gente boa, aos olhos de quem passava na rua parecia um centro de drogados. Ninguém entrava, ninguém comprava.
E como parecia um centro de drogados aqueles que gostam das drogas começaram a aparecer e fornecer para todo mundo indiscriminadamente. Minha autoridade começou ser questionada porque aos olhos dos frequentadores da loja eu parecia um ditador “careta”.
T-Shirt Logo. Design: Barbieri.
O fim da Stocking
Tinha passado a noite na casa de um amigo remixando a trilha sonora da peça A Faca para o ensaio do outro dia. Era um sábado de manhã e, quando chegava na loja, de longe vi um grupo de jovens batendo bola na frente do estabelecimento. Eu já tinha dito que não queria este tipo de coisa acontecendo na frente da loja pois espantava os clientes.
Neste momento eu vi alguém chutar a bola que foi bater direto no luminoso, um painel acrílico com o nome da loja que, partiu-se e caiu ao chão. Bom, para mim, esta foi a “gota d’água” que faltava!
Retirei meu equipamento de som, meus discos pessoais e levei tudo para casa. Nunca voltei mais.
Meu irmão ainda tentou administrar a loja sozinho por mais alguns meses sem sucesso. Fiquei sem falar com a maior parte do pessoal, incluindo meu irmão por vários anos.
Das pessoas que frequentavam a loja poucas hoje me recordo. Do grupo, o único que deixou uma contribuição ao rock nacional foi o Carlinhos também conhecido como Charles que foi o baterista na primeiro álbum da primeira banda Punk brasileira chamada “Restos de Nada”.
Teve o Kiko, que virou Hare Krishna. A Celina e sua irmã Verônica que foram morar em USA. O Ari e Toninha que encontraram-se dentro da loja e acabaram se casando. Teve este rapaz que depois de vários anos, quando andando pelo centro de São Paulo, acidentalmente nos encontramos e ele aproveitou para agradecer-me por, sem saber, tê-lo ajudado a assumir a sua homosexualidade. Resumindo, acredito que direta ou indiretamente a Stocking influenciou a vida de quem viveu aquele período. Foi uma época mágica de descobertas interiores e experimentação onde fizemos nossa transição para a maturidade. Literalmente vivemos Sex, Drugs and Rock'n'roll. Tudo aconteceu dentro dos limites do bom senso e debaixo de um quadro político repressivo e reacionário onde felizmente nunca rolou droga pesada, nenhum de nós morreu de overdose ou virou bandido.
Antonio Celso Barbieri
Memória: Uma nota fiscal da loja.
Não deixe de ler:
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