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Woodstock 45 anos!
Uma excelente reflexão de Guilherme Rodrigues
Há 45 anos, a Feira de Arte e Música de Woodstock, uma exposição "aquariana" em White Lake, Bethel, NY, chegava ao fim.
O que continua a fazer deste Festival objeto de fascínio para gentes de todas as idades?
À primeira vista, seria por causa do evento em si. Naqueles três dias de agosto de 1969, ícones como Janis Joplin, Creedence Clearwater Revival, The Who, Crosby, Stills, Nash & Young, Santana, Mountain, The Band, Joe Cocker, Johnny Winter, Jimi Hendrix e muitos outros bons artistas tocaram para uma platéia de meio milhão de presentes. Para saber essa parte da História - e para a maioria, é somente essa parte que interessa -, basta ver o excelente documentário de Michael Wadleigh e ouvir as trilhas sonoras do evento.
Ok. Mas grandes festivais de música aconteceram antes de Woodstock; outros tantos aconteceram depois, e nem por isso vive-se lembrando deles.
O que confere distinção a Woodstock? Não há respostas definitivas.
45 anos depois, ainda há muito a ser entendido sobre a estrada que levou ao “maior fim de semana da História do Rock”. O fato é que antes mesmo de Hendrix encerrar o happening, com sua extraordinária versão instrumental do Star-Spangled Banner, hino nacional norte-americano, improvisado com distorção em meio a sons de metralhadoras e bombas - talvez o mais pungente e sensacional comentário social já feito na história da cultura norte-americana -, o evento Woodstock já tinha virado o mito Woodstock. Todo mundo daquela geração disse que foi; e os que não foram, disseram que foram; e os que assumiram que não foram, clamaram que lá também estiveram, pois assistiram ao filme e se identificaram com os gritos de ordem: "Nós podemos mudar o mundo!" e "Paz e Amor!".
Quem pode dizer que eles estão errados?
Woodstock significa muitas coisas pra muita gente de muitas gerações. Hoje, cada um tem a sua versão do que foi o Festival. E todas estão certas e inexatas. É mais ou menos como naquele filme alucinado do Kurosawa, "Rashomon", em que quatro testemunhas do mesmo crime o descrevem subjetivamente de quatro maneiras diferentes, divergindo sobre o mesmo acontecimento, mas sendo todas plausíveis, uma vez que cada um tem sua bagagem única de experiências de vida que influencia sua maneira de ver o mundo.
A imprecisão, afinal, é da natureza do mito. E falando sobre o assunto, Joseph Campbell (em "O Poder do Mito"), acaba por esbarrar numa possível resposta quanto aos porquês de gente como eu continuar a lembrar de Woodstock:
"Dizem que estamos todos buscando o significado da vida. Não acho que seja isso que realmente procuramos. Acho que buscamos a experiência de estar vivos, para que nossas experiências de vida no plano puramente físico tenham ressonâncias profundas em nosso eu e em nossa realidade, para que sintamos de verdade o êxtase de estarmos vivos. É disso que se trata, afinal, e é o que essas pistas nos ajudam a procurar, dentro de nós mesmos. (...) Experiência de vida. A mente se ocupa do sentido. Qual é o sentido de uma flor? (...) Qual é o sentido do universo? Qual é o sentido de uma pulga? Está exatamente ali. É isso. E o seu próprio sentido é que você está aí. Estamos tão empenhados em realizar determinados feitos, com o propósito de atingir objetivos de um outro valor, que nos esquecemos de que o valor genuíno, o prodígio de estar vivo, é o que de fato conta." (em "O Poder do Mito", p. 17/18).
É por aí. Eu sou de uma geração imediatamente subseqüente àquela de Woodstock. Sem considerar o aspecto geográfico - que nem é tão importante para a questão de que se trata aqui -, minha geração já veio formatada para outra ética cultural-comportamental.
Lennon (sempre ele), em dezembro de 1970, jogava a pá de terra definitiva sobre as esperanças dos anos 60, e sentenciava a direção para o futuro, na letra da canção God: "I just believe in me, Yoko and Me, that's reality. The dream is over." (“Acredito apenas em mim, em Yoko e em mim; esta é a realidade. O Sonho acabou.”), do álbum “John Lennon/Plastic Ono Band”. Antena que sempre foi, Lennon apontava os rumos éticos que informariam o período da década de 1970 até os dias atuais. O ethos sessentista do "nós", dos gritos de ordem coletivistas (e que só tinham ressonância naquele contexto), sairiam de cena, e começaria o reinado do "eu", do individualismo sobre todas as coisas, do consumismo impessoal, desenfreado.
Olhando para a cena 45 anos depois, é até fácil perceber que essa mudança de valores era inevitável, uma assimilação natural pelo capitalismo das revoluções que ocorreram nos anos 60. Mas para quem vivia no calor do momento, não era bem assim. No curto interregno que se deu entre 1960 e 1970, as centelhas que arderam na fogueira da História, foram algumas das mais quentes do século XX.
Uma dessas brasas ardentes era o movimento jovem. O “poder jovem” chacoalhava os nervos de um mundo que insistia em fingir que tudo continuaria na mesma calmaria. Mas, se os jovens sentiam-se empoderados, pela primeira vez na História, os “senhores da guerra” estavam atentos (eles sempre estão) para contra-atacar com fúria inescapável.
A URSS, por exemplo, começou a década colocando um "PARE" diante de tudo e de todos, delimitando fronteira intransponível para o resto do mundo, com o Muro de Berlim; e terminou os anos 60 zerando a possibilidade de democracia na Tchecoslováquia (um de seus espólios da 2ª Guerra), botando o movimento estudantil do país de joelhos diante de seus tanques, no episódio conhecido como A Primavera de Praga.
Nos USA, o cenário parecia diferente. Os norte-americanos começaram a década elegendo, em 1960, o mais jovem presidente de sua História, John Kennedy, então com 43 anos. Kennedy arrebatara a nação com sua declaração de intenções: "a tocha havia sido passada para a nova geração". Será mesmo? 3 anos e um assassinato presidencial depois, Tio Sam estava de volta às mãos de um texano de 55 anos, que, para não ficar pra trás na “Guerra Fria”, investiu grana grossa nas ditaduras sul-americanas (que, então, floresceram com o vigor e a celeridade das ervas daninhas), e decidiu aprofundar o envolvimento dos Estados Unidos no episódio mais escabroso de sua política externa até então, a Guerra do Vietnã. O assassinato de Kennedy foi apenas a primeira mostra de que a violência com os discursos "não-oficiais" seria a tônica na América dos anos 60. Logo, iriam para o caixão outros que ousaram falar "diferente", Martin Luther King, Malcolm X e Robert Kennedy.
Neste contexto histórico duríssimo, o movimento jovem já tinha alcançado o ponto de fervura. Sob a constante ameaça de destruição nuclear supostamente iminente, os jovens queriam viver intensamente o “hoje”, já que o “amanhã” era duvidoso. Os questionamentos aos valores vigentes que fizeram os pioneiros Beatnicks (Kerouac, Ginsberg, Burroughs) já haviam entrado na corrente sanguínea-sensorial daquela geração, que encampou as idéias de Herbert Marcuse, um dos gurus da época, que dizia: “(...) Nesta sociedade o trabalho se generalizou, assim como as restrições impostas à libido: o tempo de trabalho, que ocupa a maior parte da vida do indivíduo, é um tempo penoso, porque o trabalho alienado é abstinência da satisfação e negação do princípio de prazer (...)" (Eros e Civilização, 1955, p.50). Violentamente suprimida das promessas feitas por Kennedy e na iminência de irem lutar uma guerra com a qual não concordavam, centenas de milhares de jovens se imbuíram de coragem para contestar ordens como “vá para o Vietnã, morrer pelo Tio Sam”. Em algum tempo, grande parte da geração “baby boomers” (nascidos após a 2ª Guerra Mundial) estava largando parentela e empregos na sapataria da esquina para viajar a três milhões de milhas por hora no “país do sonho”.
Tudo seria questionado e virado ao avesso, quando não destruído. Assuntos-tabu, como sexualidade e política externa norte-americana passariam a ser matérias de discussões inflamadas em qualquer esquina, desde o Wisconsin até Little Rock, no Arkansas, onde um certo Bill Clinton fumava mas não tragava mariajoana.
Em outras partes do mundo, o poder jovem tinha suas próprias guerras para lutar. Explodiram movimentos estudantis na França e no Brasil, que vivia intensamente o sonho do poder jovem na figura de caras como Vladimir Palmeira, a grande voz das manifestações contra o regime militar. Logo, ele (e todo o País) receberia como resposta um “cala-boca”, com validade de dez anos, chamado AI-5.
Nos Estados Unidos, porém, os focos das revoluções eram mais difusos, e, por isso mesmo, mais difíceis de serem combatidos. Revolução sexual, movimento psicodélico, Haight-Ashbury, Verão do amor, era da sensação, Marcha ao Pentágono, batalha campal na convenção democrata de Chicago em 1968, Sgt. Pepper´s, Street Fighting Man, Hendrix, Aretha, Easy Rider, Black Power, Panteras Negras, Charles Manson, Contracultura. Tudo amarrado, tudo sem controle, tudo explodindo "ao mesmo tempo agora" na cara do status quo.
Ir à Lua e lá estabelecer uma “Base da Tranqüilidade” era fácil, mas resolver os conflitos aqui na Terra era outro papo. Passar a tocha para uma geração que pensa que vai mudar o mundo através do amor e da música?
Nenhum país capitalista entendeu tão bem (e rápido) como os USA que "dinheiro compra tudo, compra o mundo inteiro" (Marcos Valle, em Ossos do Barão). De modo que, em 1969, enquanto no seio jovem fundiam-se elementos culturais com ativismo político, gerando os mega-festivais, no "lado negro da força", os donos do poder começavam a entender a volatilidade que movia o poder jovem. E, assim, a própria contracultura já estava prontinha para ser assimilada e “realinhada” pela mainstream. A comercialização do hip (gíria que designava tudo aquilo que era “legal” e “moderno” - e que viria a gerar outra gíria, o hippie) seria a resposta do stablishment a tanta revolução e o começo do fim inevitável de uma era em que ousou-se acreditar que o sonho era possível e não acabaria.
Naqueles 15,16 e 17 de agosto de 1969, ano que seria o marco inicial da sociedade utópica do futuro, ouviu-se em Woodstock o último grande grito de inocência do poder jovem.
Hoje, de cá dos 2014 da vida, aboletados em seus gabinetes e salas refrigeradas, grande parte dos mestres e doutores em História que olham para o evento, cedem ao cinismo, e sentenciam "ah, mas eram só uns garotos cabeludos celebrando sua juventude, pirando na ideia de que conseguiriam alguma coisa de graça do poder constituído." Não é bem assim, senhores. De fato, havia muito de inocência naquilo tudo. Ninguém pensa que vai morrer com vinte e poucos anos. Eu também não pensava. Esta fase da vida é o apogeu da inocência. Então, não tirem da equação o fato de que muitos daqueles "garotos cabeludos" estavam ali, não apenas "celebrando sua juventude", mas despedindo-se da vida, que, sabiam, iriam colocar em jogo nas florestas do Vietnã, a mando do "poder constituído". Se o grito que partiu dos jovens de Woodstock foi "A gente vai cair, mas vai cair festejando a maior festa de todos os tempos", ele encontrou guarida nos ouvidos e corações de milhões de jovens não só daquela geração, mas de todas as subsequentes, no mundo inteiro.
Talvez seja uma visão simplista do que foi Woodstock. Pode ser. Mas esta é minha possível resposta a porque gente como eu, que não esteve lá fisicamente, faz questão de lembrar daquele happening de 45 anos atrás. Aquele grito sempre será ressonante! A lembrança daquele ajuntamento caótico, alegre e tolerante de meio milhão de jovens para celebrarem o êxtase de estarem vivos perante a face da morte, encapsula uma esperança, uma chama que ainda crepita nos corações dos delirantes eternamente juvenis de todas as gerações subseqüentes, diante de um tempo de obscuridade individualista e de impessoalidade consumista.
Pasmem, alguns, como eu, querem continuar acreditando que slogans inocentes como “somos todos um”, "nós podemos mudar o mundo" e "paz e amor" ainda podem sair do papel e virarem uma realidade. Porque, se é certo que alguns sonhos acabam, John, também é certo que outros sonhos nunca envelhecem.
Guilherme Rodrigues
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Woodstock Revisitado
Escrito por Celso Lungaretti
Éramos crianças, brincado no Paraíso!
Faziam muito tempo que um ano não começava de forma tão deprimente.
De um lado, a certeza de que 2009 transcorrerá sob recessão e a dúvida sobre se a atual crise cíclica capitalista evoluirá para uma depressão tão terrível como a da década de 1930.
Do outro, a nova demonstração bestial de força de Israel, que reage de forma exageradíssima às agressões sofridas, para transmitir aos inimigos o recado de que massacrará impiedosamente quem se-lhe opuser (mesmo tornando-se genocida aos olhos do mundo e igualando-se aos seus carrascos de outrora, os nazistas).
O baixo astral é tamanho que a imprensa brasileira está esquecendo de registrar que, em 2009, serão comemorados os 40 anos de um dos acontecimentos mais alentadores do século passado: o Festival de Música e Artes de Woodstock.
Foi uma moeda que caiu de pé: os deuses de todos os povos e de todos os tempos parecem ter-se mobilizado para que tudo desse certo durante três dias mágicos, maravilhosos, que seriam para sempre lembrados como uma amostra da perfeição possível neste sofrido planeta.
Sem favor nenhum, posso afirmar que Woodstock foi o evento musical que mais influenciou as artes e os costumes na história da humanidade. E a conjunção de fatores que o transformou em marco e lenda dificilmente se repetirá. Sorry, moçada de hoje, mas o Gilberto Gil é que estava certo: "quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou".
Para começar, o Festival de Woodstock foi o ponto de chegada e a culminância de vários fenômenos e acontecimentos marcantes.
A escalada norte-americana no Vietnã, ao longo da década de 60, engendrara um movimento pacifista de crescente influência entre os jovens dos EUA, com direito a manifestações de protesto, queimas de cartas de recrutamento, choques com a polícia e a uma manifestação monstro de cerco ao Pentágono.
Em 1965, um estudante de química chamado Owsley Stanley aprendeu como fabricar ácido lisérgico no porão de sua casa e logo inundou San Francisco com o LSD, impulsionando o surgimento da geração das flores, imortalizada pela bela canção de Scott McKenzie: "Se você vier para San Francisco,/ não se esqueça de colocar/ algumas flores no seu cabelo..."
Foi aí que o movimento hippie nasceu, aglutinando jovens que recusava o american way of life e caíam na estrada, em busca de aventuras e novas experiências.
Em termos mais profundos, pode-se lembrar que era a fase em que a crescente mecanização da indústria mais e mais dispensava o uso da força física, demolindo algumas vigas-mestras da sociedade norte-mericana, toda ela construída em cima do ascetismo puritano (a negação do prazer a fim de poupar energias para o trabalho). Na década de 60, o prazer reconquistava suas prerrogativas.
Grandes festivais de rock já haviam ocorrido em Monterey (1967) e na Ilha de Wight. Este último vinha se realizando desde 1968, embora o mais marcante e lembrado seja o de 1970, quando se deu uma das últimas apresentações de Jimi Hendrix.
Quanto a públicos expressivos, também não eram novidade: o festival inglês já reunira 250 mil pessoas.
Mas, foi no de Woodstock que a indústria cultural investiu pesado, pela primeira vez. É que, com algum atraso, os mercadores das artes se deram conta de que tinham um diamante bruto ao alcance das mãos. Prepararam-se, então, para explorar em grande estilo o evento seguinte.
Por último, vale notar que ainda se vivia a época dos compactos, em que eram singles e não elepês que corriam o mundo, com a repercussão dependendo, principalmente, da divulgação nas rádios.
Pouco se conhecia da segunda onda do rock (a primeira, nos anos 50, fora a dos pioneiros Elvis Presley, Chuck Berry, Little Richard, Bill Haley, etc.).
Muitos garotos, como eu, amavam os Beatles e os Rolling Stones. De resto, haviam escutado. "The House of Rising Sun" (Animals), "Sunny" (Johnny Rivers), "A Wither Shade of Pale" (Procol Harum) e quase nada mais.
Existia uma produção musical de grande qualidade represada, não atingindo circuitos mais amplos. Seria a irrupção dessa nova geração de importantes artistas ainda relativamente desconhecidos que asseguraria a surpresa e o enorme impacto causados pelo filme Woodstock e pelo álbum triplo com registros desse evento.
Foram três dias de "paz, música e amor", de 15 a 17 de agosto de 1969, levando 450 mil jovens até a fazenda do leiteiro Max Yasgur, a 80 quilômetros de Woodstock, estado de Nova York.
O torrencial aguaceiro do segundo dia foi tirado de letra pela moçada, que aproveitou para relembrar a infância, chapinhando na lama. De início se tentou afastar a chuva com a força do pensamento positivo, todo mundo gritando "No rain! No rain!". Depois, o jeito foi se amoldar a ela, brincando de tobogã e cantando. No álbum Woodstock há dois registros disto: no disco I, o improvisado "canto da chuva"; e no II, a multidão entoando em coro o refrão "deixa o sol brilhar!", da peça Hair.
O evento foi processado para o cinema por Michael Wadleigh, que fez uma magnífica edição de imagens e introduziu uma novidade: a bi ou tripartição da tela, oferecendo ao espectador tomadas simultâneas do mesmo grupo, de artistas isoladamente, do público, etc.
NEM TUDO FOI MOSTRADO
A relação dos que lá estiveram mas ficaram de fora tanto do filme quanto dos álbuns é extensa: Janis Joplin, Grateful Dead, The Band, Blood Sweat & Tears, Creedence Clearwater Revival, Incredible String Band, Johnny Winter e Ravi Shankar. Motivo: problemas contratuais.
Os cachês mais altos foram os de Jimi Hendrix (US$ 18 mil), Blood Sweat & Tears (US$ 15 mil), Joan Baez e Creedence Clearwater Revival (US$ 10 mil cada). Santana exibiu sua empolgante fusão de rock e sonoridades latinas, "Soul Sacrifice", pela bagatela de 750 dólares.
O Crosby, Stills, Nash & Young, que acabava de ser constituído, cativou a platéia com seu folk-rock contestador e obteve êxito instantâneo, lançando as bases da longa carreira de seus integrantes (pouco tempo como quarteto e muito mais como artistas-solo).
Outra curiosidade: foi marcante a aparição de Arlo Guthrie ("Comin' Into Los Angeles"), cuja trajetória acabaria sendo eclipsada pela de Bob Dylan. Os estilos vocais e temáticos eram semelhantes, tendo Dylan sido mais eficiente em afirmar-se como herdeiro da arte e da lenda de Woody Guthrie, o precursor dos mochileiros. Correndo na mesma faixa, ele sobrepujou o próprio filho de Woody.
Isto para não falar do herdeiro branco e britânico de Ray Charles, o chapadíssimo Joe Cocker, com sua voz poderosa e postura bizarra, sacudindo o corpo para a frente e para trás como um boneco de mola enquanto as mãos dedilhavam sem parar uma guitarra inexistente.
SÍNTESE DA CONTRACULTURA
- O amor livre e a desinibição corporal, com o nudismo sendo amplamente praticado, de forma inocente e até singela;
- O consumo explícito e justificado (por alguns entrevistados, como Jerry Garcia) das drogas que, no entender daquela geração, abriam as "portas da percepção";
- O visual premeditadamente desarrumado do pessoal, com suas roupas coloridas, ponchos e cabeleiras imponentes;
- A substituição dos laços familiares por uma comunidade grupal (ou, como se dizia então, tribal);
- A volta à natureza e a redescoberta do lúdico (em vários momentos, vêem-se marmanjos entregues a brincadeiras pueris, sem nenhum constrangimento);
- A profusão de crianças, pois os hippies mandavam às favas o planejamento familiar, os anticoncepcionais e os abortos, assumindo plenamente o amor e suas conseqüências;
- O solene desprezo pelas regras e valores dominantes na sociedade, que se evidencia até nas falas dos organizadores do festival, não ligando a mínima para os prejuízos que estavam ameaçados de sofrer.
De certa forma, este comportamento era inspirado por teóricos como Reich, Marcuse e Norman O. Brown, que vincularam o autoritarismo político à repressão instintiva, alegando que a liberdade era cerceada não só pelos mecanismos sociais que mantinham a estrutura de classes (visão da esquerda convencional), como também pelos condicionamentos que embotavam a imaginação e inibiam o desfrute pleno da sexualidade.
Essas teses inspiraram uma nova voga anarquista, que pregava o combate ao stablishment também no íntimo de cada pessoa. As drogas serviriam para o resgate de faculdades esquecidas devido ao desuso; e a liberalidade sexual, incluindo as práticas antes estigmatizadas como perversões (homossexualismo, sodomia, sexo oral, masturbação), seria a premissa de uma visão erótica do mundo, em substituição ao princípio da realidade freudiano.
BRASIL: COMUNIDADES E BICHOS-GRILOS
A influência de Woodstock em nosso país pode ser detectada na música (Raul Seixas, Made in Brazil, a última fase dos Mutantes), no teatro (Oficina, Tuca), na cinematografia (o chamado cinema marginal) e, sobretudo, nos costumes, com os bichos-grilos que percorriam as estradas como caronas, indo e vindo à meca de Arembepe (BA), além de criarem comunidades urbanas e rurais onde exercitavam um estilo alternativo de vida.
Essas tentativas, entretanto, esbarraram no ambiente repressivo dos anos de chumbo, o que levou, p. ex., a ser expulso do Brasil o elenco do Living Theatre de Julian Back, que supôs encontrar aqui seu paraíso tropical; e, em termos mais amplos, na própria impossibilidade de contingentes mais amplos, num país pobre como o nosso, garantirem indefinidamente seu sustento com artesanato, aulas de ioga e que tais.
A grande vitória da Geração Woodstock foi ter conseguido arrancar os Estados Unidos do Vietnã. E seu exemplo repercute até hoje no ativismo em defesa do meio ambiente e a favor de algumas causas justas.
Além disto, ela entronizou a imagem do jovem como centro do universo do consumo, em substituição ao modelo rígido do pai de família, daí derivando a descontração no vestir, no falar e no comportamento.
E ainda lançou alguns modismos que hoje estão em menor evidência, como o ioga, a macrobiótica, o cultismo e a agricultura natural (sem defensivos e fertilizantes).
Não perduraria, entretanto, aquela militância política idealista e generosa: as gerações seguintes se desinteressaram de mudar o mundo, voltando a priorizar a ascensão profissional e social. O rock, depois de uma fase intensamente criativa e experimental, voltou aos caminhos seguros do marketing.
As drogas, ao invés de abrirem as portas da percepção, se tornaram instrumentos para a fuga à realidade e a ilusão de onipotência, cada vez mais pesadas, até que se chegou ao pesadelo do crack. E o amor livre degenerou em sexo casual, promiscuidade e AIDS.
O sonho acabou? Talvez. Mas, quem o partilhou só lamenta que haja durado tão pouco e tenha sido substituído por uma realidade tão insossa.
Eu prefiro mesmo é a postura do inesquecível Raulzito: ele nunca deixou de acreditar que a roda da fortuna giraria de novo, trazendo de volta, desta vez para ficar, o "paraíso-agora" que iluminou nossas vidas por um fugaz instante... e, mesmo assim, marcou-nos para sempre.
Oh, baby, a gente ainda nem começou!
Celso Lungaretti
Celso Lungaretti é jornalista e escritor, foi crítico de rock nas décadas de 1970/80, sob o pseudônimo de André Mauro. Mantém os blogs: http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com e http://naufrago-da-utopia.blogspot.com