Cinema Novo: Manifesto Luz e Ação
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Manifesto "Luz & Ação"
(de 1963 a 1973)
Parte I
Escrito pelos sete principais diretores do movimento do Cinema Novo (Carlos Diegues, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Miguel Faria Jr., Nelson Pereira dos Santos e Walter Lima Jr.), o artigo De 1963 a 1973 apareceu com o pretexto de apresentar a plataforma ideológica da revista Luz & Ação que infelizmente não chegou a ser editada.
O texto tenta, desde suas primeiras linhas, recolocar o movimento do Cinema Novo perante toda a critica que lhe foi feita nos 10 anos em que se situa o artigo e, de certo modo, justificar a produção de seus diretores nesse período. Repudiando totalmente o "atestado de óbito" passado para o movimento, prova que as teses e a produção que lhe deram origem continuavam a existir, influenciando todo um comportamento cultural no país e até fora do Brasil. Aliás, a "morte do Cinema Novo" teria sido declarada pelo próprio Carlos Diegues que confessa ter iniciado esta confusão com uma entrevista que dera aos Cahiers du Cinéma, em fins de 1969.
Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha) - 1964
Nesse histórico da década são referidos os momentos cruciais da produção do Cinema Novo e as principais teses que nortearam a discussão teórica do movimento. A própria escolha do ano 1963 já é sintomática. Foi no mês de julho de 1963 que Glauber Rocha desembarcou em Milagres, no sertão baiano, para começar as filmagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol e, no mesmo mês, Nelson Pereira dos Santos terminava a montagem de Vidas Secas. Mas é Terra em Transe que vai ser apontado como inegavelmente a obra-prima do período, deflagradora de influências em todos os movimentos culturais brasileiros posteriores, inclusive do movimento tropicalista. Se as próprias características da obra de Glauber Rocha - poética e anti-realista - tinham chocado parte do próprio grupo, que via na filmografia de Nelson Pereira dos Santos os critérios estéticos do Cinema Novo, em 73, num esforço de reaglutinação, os 7 signatários vão revalorizar, então, justamente a riqueza estilística e contraditória dos filmes do ciclo. Segundo eles, o Cinema Novo não teria pretendido criar um "modelo" estético, o que o caracterizaria - e aqui eles seguem a interpretação de Paulo Emílio - seria precisamente a pluralidade de tendências e enfoques sociais. O que parecia uma dicotomia perigosa passa a ser justamente a sua grande força, geradora de inúmeros caminhos.
A estratégia principal do texto parte da constatação de Paulo Emílio de "uma situação colonial" do cinema brasileiro. Assim, a unidade que, apesar de tudo, é postulada para o Cinema Novo estaria na proposta que subjaz em todos eles e que deve, inclusive, fornecer o critério de avaliação do bom e do mau filme: a da apresentação da situação cultural e social brasileira, sem mediações externas, descolonizando o olho do espectador, para que não tenha mais confiscado seu direito de assistir a verdadeira imagem de sua herança cultural.
Isto posto, o Cinema Novo não poderia ter encerrado seu ciclo, pois está empenhado na própria produção de uma cultura autóctone brasileira. Tal trabalho não cabe a um único grupo de diretores, é trabalho também para os novos, apesar do vácuo aparente do mercado cinematográfico, em 1973, dominado pela pornochanchada.
A estadia na Europa de Carlos Diegues, Glauber Rocha, Ruy Guerra e outros talvez explique a necessidade que demonstram novamente em polemizar as teses sobre cinema brasileiro, através de uma revista como Luz & Ação que deu ensejo a esse artigo-manifesto.
Por motivos diversos, a tentativa de publicação da revista não logrou êxito, mas a sombra de publicações européias como, por exemplo, os Cahiers du Cinéma pairam sobre esta tentativa frustrada. Como dizem eles próprios: "Não importa só fazer filmes é preciso também falar deles."
Mesmo partindo da colocação sempre centrada na liberdade do autor ao realizar sua obra sem conivências com o Estado ou com a adulação do público, o que implicaria uma sujeição a critérios temáticos duvidosos, o artigo não se esquece de recolocar a questão do filme enquanto produto destinado a um mercado específico, com leis severas, minado pela concorrência externa e pela subvenção burocrática.
Informam intempestivamente que o Cinema Novo pretende responder às críticas e demonstrar sua vitalidade com uma plêiade de novos filmes, com o desejo manifestado por seus diretores de falar de suas obras, principalmente tentando mostrar a multifacetada expressão brasileira na imagem que, até então, tem sido negada ao público em favor de outra, oficialmente retocada e deformada a partir de importações estranhas, que se oferece insistentemente como verdadeira.
Na bela frase de Drummond "Uma coisa são sempre duas: a coisa mesma e a imagem dela" está contida toda a postura dos sete diretores. "Uma antropologia nova e um novo homem", esta a preocupação maior para os que deverão fazer filmes, tal como coloca o manifesto.
Passados 5 anos da assinatura deste artigo e mais de 18 anos do início do Cinema Novo, sua publicação possibilita um inventário das teses então colocadas e uma prospectiva dos caminhos da criação cinematográfica no Brasil, no final desta década de 70.
Um rico e conturbado passado aí está para servir de reflexão e de ensinamento. Urge então reativar a polêmica a partir da sua origem: início da década de 60.
Quando Glauber chegou a Milagres e Nelson começou a organizar as primeiras sessões privadas de seu filme, estavam preparando os dois momentos culminantes do prestígio nacional e internacional do "cinemanovismo".
No ano seguinte, Deus e o Diabo (oficialmente) e Vidas Secas (convidado do festival) estariam representando o Brasil num Cannes histórico. Com eles, de quebra, ainda ia Ganga Zumba para a Semana da Critica, manifestação paralela dedicada aos filmes de estréia.
Enquanto o filme de Glauber provocava um verdadeiro caso, o de Nelson papava uns três ou quatro prêmios, sob o protesto da critica que exigia para Vidas Secas a Palma de Ouro, dada naquele ano ao brilhante Os Guarda-chuvas de Cherbourg, de Demy.
Mesmo assim, o festival tinha sido suficientemente pródigo para transformar Deus e o Diabo numa espécie de bandeira do jovem cinema mundial. Vidas Secas, por seu lado, ficava com o papel não menos importante de revelação e injustiça anuais de Cannes. Abriam-se para o cinema brasileiro as portas da inteligência européia.
No Brasil, nem os piores inimigos de seus dois autores ousaram pichar os filmes. Esses, acompanhados com fervor e delírio por uma platéia eufórica de universitários, intelectuais e pessoas da classe média, viram sua fama confirmada pelas bençãos de Cannes.
Unidos em torno da mágica consagrada do Cinema Novo, os membros do grupo não aceitaram a sabotagem tentada através de partidos que opunham a poesia barroca de Glauber ao realismo crítico de Nelson, e vice-versa.
Pelo contrário, essas diferenças confirmavam a riqueza e o vigor do movimento. Co-habitando o mesmo núcleo, Deus e o Diabo aproximava dele os jovens mais radicais, enquanto Vidas Secas convencia outros setores da cultura.
Para uns, começava ali a história do cinema brasileiro. Para outros, aquele era o nascimento do Cinema Novo. Nenhuma das duas coisas: esses dois filmes marcavam apenas o clímax de um processo iniciado uns 10 anos antes.
Parte II
No seu livro escrito em 1962, Glauber Rocha nota que a falência da Vera Cruz, ocorrida em 1954, não levou o cinema brasileiro a nenhuma grave crise, ao contrário do que se costumava afirmar. Durante o triênio 53/54/55, algo de novo ocorria no Rio, simultaneamente à ruína da indústria paulista.
Justamente nos anos de O Cangaceiro ou Floradas na Serra, filmes caros, pseudo-industriais e colonizados culturalmente, Alex Viany realizava, com orçamento modesto, Agulha no Palheiro. E Nelson Pereira dos Santos introduzia no cinema brasileiro o sistema cooperativo com Rio 40 Graus.
Este último filme seria ainda responsável pelo primeiro encontro de uma geração que, mais tarde, se reuniria no chamado Cinema Novo. Proibido pela censura e rejeitado pela cultura oficial, Rio 40 Graus se transformou em polêmica nacional.
Dela sairiam os primeiros universitários-cineclubistas-documentaristas-críticos que, em defesa do filme, se juntaram através de artigos ou de manifestações de solidariedade a Nelson Pereira dos Santos.
A figura deste último domina absolutamente o panorama cinematográfico novo até o fim dos anos 50. De vez em quando, uma experiência nova ou um autor se insinuam, para desaparecerem ou se transformarem em lugar-comum.
É a época das ilusões e das esperanças: Walter Hugo Khoury, Galileu Garcia, Roberto Santos, Anselmo Duarte, os irmãos Santos Pereira, Trigueirinho Neto, Rubem Biáfora, Jorge Illeli. Uns decepcionam, outros somem. A maioria recua.
Conforme a década caminha para o fim, a necessidade e a fatalidade de uma explosão ficam evidentes. Paulo Emílio Salles Gomes, em São Paulo, durante um Congresso tão vago quanto eufórico, lê a sua tese-bomba: Cinema Brasileiro, uma Situação Colonial.
No Rio, nos cantos dos suplementos, em jornais estudantis, de carona em revistas variadas, a "agit-prop" começa a ser feita por Glauber Rocha, David Neves, Gustavo Dahl, Paulo Cesar Sarraceni, Miguel Borges, Leon Hirszman, Carlos Diegues.
O semanário O Metropolitano, da UME, abre suas páginas e transforma-se no órgão semi-oficial de um movimento que, mal nascido, já tinha um nome: Cinema Novo, por sugestão do crítico Ely Azeredo que, no futuro, será um de seus mais ardentes e desesperados inimigos.
Nas páginas de O Metropolitano, a saudável palavra de ordem É falar e fazer, fazer e falar. É assim que, seguindo as várias e diferentes experiências em 16mm, surge a primeira geração de filmes em 35, com ares profissionais.
Entre esses destacam-se Aruanda, Couro de Gato e Arraial do Cabo. O primeiro, verdadeiro milagre da força de vontade, tinha sido realizado na Paraíba, nas condições mais incrivelmente precárias. por Linduarte Noronha e Rucker Vieira.
Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos) - 1963
Os outros dois, realizados respectivamente por Joaquim Pedro de Andrade e Paulo Cesar Sarraceni, seriam durante muito tempo as bandeiras do jovem movimento, exaustivamente exibidas em universidades, cineclubes e casas particulares.
Em agosto de 1960, no famoso Suplemento Dominical do Jornal do Brasil Glauber escreve sobre Arraial: "â desta independência cultural que nasce o filme brasileiro ( ... ). A Arte brasileira. precisa se atualizar através de sua expressão." Nessa síntese poética, tão ao gosto de seu autor, está contida e expressa a finalidade do grupo -' fazer um cinema nacional brasileiro, popular e autoral, globalmente revolucionário. Mais tarde, o próprio Glauber desenvolveria a tese em sua Estética da Fome.
Começam os anos de euforia. No Rio, centro e sede do movimento, sempre em torno de Nelson Pereira dos Santos, são feitos os primeiros longos: Cinco Vezes Favela, Assalto ao Trem Pagador, Os Cafajestes, Porto das Caixas.
Na Bahia, agitada por Roberto Pires (A Grande Feira e Tocaia no Asfalto), Rex Schindles, Braga Neto, Walter da Silveira, Paulo Gil Soares, Luis Paulino dos Santos, -Glauber realiza seu primeiro, e controvertido filme, Barravento.
Durante todo esse tempo de falar e fazer, trava-se uma crudelíssima batalha de oposição e conquista. Oposição ao velho cinema brasileiro colonizado e conquista de novas adesões. Estas também vinham, além do próprio cinema, da literatura e do jornalismo.
Parte III
Finalmente o caldo engrossa e, além de Deus e o Diabo e Vidas Secas, realizam-se durante os fertilíssimos anos de 63 e 64 filmes como Ganga Zumba, Os Fuzis, Maioria Absoluta, Garrincha, Alegria do Povo, O Desafio.
O movimento está consagrado no Brasil e começa a ser exportado por força do sucesso em alguns festivais. "Câmara na mão, trata-se de construir", É a palavra de ordem ouvida em todas as esquinas e becos cinematográficos do País.
Nos fins de 1964, com o Brasil vivendo uma nova realidade política, O Desafio, de Paulo Cesar Sarraceni, É o primeiro sinal de que, para os jovens eufóricos do Cinema Novo, o sonho estava acabando muito mais cedo do que se pensava.
Com esse filme, inicia-se a longa meditação política do Cinema Novo. Essa reflexão, característica do movimento até quase muito recentemente, só seria interrompida, de vez em. quando, por brilhantes exceções como O Padre e a Moça ou Menino de Engenho.
Embora amarga, impotente, pretensiosa, às vezes mesmo irritante, essa É talvez a etapa mais rica do cinema brasileiro, apesar dessa riqueza ser uma constatação mais ou menos secreta, para os que estão por dentro.
Foi durante a sua vigência que a cultura cinematográfica do País se libertou definitivamente dos padrões europeus e americanos, descolonizando-se e afirmando-se como representação de uma antropologia nova, de um homem novo.
Terra em Transe (Glauber Rocha) - 1967
É desse período, por exemplo, Terra em Transe, filme-chave da moderna cultura brasileira. Consagrado no mundo inteiro como uma das fontes do cinema político contemporâneo, Terra em Transe inspirou e influenciou filmes, quadros, peças e canções.
Epigrafado por Mário Faustino ("Não conseguiu firmar o nobre pacto/Entre o cosmos sangrento e a. alma pura"), Terra em Transe articula ao mesmo tempo análise política e delírio pessoal, inaugurando o tropicalismo como método de abordagem da realidade brasileira.
Para falar desse filme misterioso, inspirado, revolucionário, É preciso lembrar a um só tempo James Joyce e Villa-Lobos, Jorge de Lima e Buñnuel, desintegração e construção; forma e anarquia. E nenhuma dessas referências o apreenderá de todo.
O que Seria de Zé Celso, Caetano Veloso, Antonio Dias, toda a cultura brasileira posterior a 64, se não existisse Terra em Transe? E no entanto, foi esse o filme mais atacado, repudiado, odiado, de toda a história do movimento.
De líder, mito intocável, herói da arte nacional, Glauber Rocha transformou-se, da noite para o dia, na grande questão cinematográfica do País. É verdade que hoje, a distância torna-se mais amena e, em breve, consagradora para Terra em Transe.
Mas, em 1967, a forma de contestação a esse filme não deixava dúvida quanto ê natureza dos anos difíceis que estavam para vir. O Cinema Novo não era mais o delfim cultural do País, mas um incômodo adolescente cheio de caprichos.
Junto ê decadência do prestígio, marchava a definição econômica. A DIFILM, espécie de cooperativa de distribuição criada pelo grupo, não dura mais de 3 anos na sua forma ideal (hoje ela pertence, exclusivamente, a Luiz Carlos Barreto).
As co-produções entre os realizadores rareiam. As leis mais cruéis do capitalismo, do lucro à competição, impõem-se à balbuciante indústria cinematográfica. O monstro começa a devorar o Dr. Frankenstein, antes que este se dê conta.
Anuncia-se a criação do Instituto Nacional do Cinema, e Nelson Pereira dos Santos pronuncia:se com vigor: "Temo que o futuro do INC corporifique leis e sugestões criadas no tempo em que o cinema só poderia existir no Brasil por força de decreto ou através do Estado-empresário."
E mais: "Temo que o cinema brasileiro, após a criação do Instituto, deixará de ser livre e leve, fluente e realista, para se transformar em oneroso pedinte subvencionado por burocratas." A previsão, infelizmente, iria confirmar-se.
Parte IV
A luta política define-se no campo econômico e, contando apenas com a CAIC (do antigo Estado da Guanabara), ê renda de seus filmes e algumas vendas para o exterior; as pequenas sociedades de produção do grupo (Mapa, Saga, Filmes do Serro etc.) enfrentam o INC.
Mas 1968 também traz o início da contestação dos cineastas emergentes, liderados por Rogério Sganzerla. Esse novo golpe, ao qual Júlio Bressane adere em 1969, enfraquece definitivamente o grupo, já dividido pela falta de perspectivas.
Apertado ê sua direita e ê sua esquerda, em dúvida quanto ê sua própria validade, chocado com os acontecimentos que não controla, o Cinema Novo começa a decretar a sua própria morte, assinando o óbito preenchido pelas novas gerações.
Acho que fui o primeiro a falar nisso, numa' entrevista aos Cahiers du Cinéma, em fins de 69: "O Cinema Novo não existe mais, acabou-se. Hoje em dia, existem apenas os bons e os maus filmes brasileiros, como em qualquer lugar do mundo."
Quase ao mesmo tempo, Gustavo Dahl e Glauber anunciavam a mesma coisa, no Brasil. Por diferentes motivos, alguns começavam até a deixar o País, e eu, Ruy Guerra e Glauber Rocha chegamos mesmo a filmar na Europa.
São esses os anos de silêncio a que se refere o texto coletivo de Luz & Sombra, publicado nessa página. Os anos de meditação e penitência, marcados profundamente pela dispersão do grupo e pelo advento das alternativas' e decisões individuais.
Parte V
Cada um para seu lado, o Cinema Novo disperso assistia ao nascimento de Um novo cinema brasileiro. A neochanchada toma conta da praça com o pretexto do público e da indústria, incentivada pelos órgãos oficiais, controlada pela censura.
As comédias eróticas impõem-se com a adesão do povo brasileiro. Até o nível do alarma geral dado a partir de recentemente, num plano moralista e farisaico.
Na prática, filmes admiráveis como Macunaíma e Como Era Gostoso o meu Francês demonstravam que não era verdade que o espectador só atendia aos apelos mais baixos. Ambos os filmes conseguiram as maiores rendas do cinema brasileiro de todos os tempos.
Mas a polêmica (rara) nunca se dirigia para aí. Além da questão econômica, encontrava-se o pudor intelectual e culpado, agora agravado pela solidão. Se era isso o que o povo queria, .talvez o povo tivesse razão.
Gustavo Dahl: "...porque só o orgulho, o pior dos pecados, É que nos pode fazer crer que temos algo a ensinar aos outros em vez de simplesmente dizer algo ao outro - acredito que a principal função do cinema É a higiene. mental da população."
Parte VI
Não sei se foram os sinais da decadência da neochanchada ou a comprovação da ausência de valor social do udigrudi. Não sei se foi o entusiasmo comum pelos novos filmes - Os Inconfidentes, Quem é Beta?, São Bernardo, Joana, a Francesa, Uirá.
Sei é que alguma coisa se prepara para acontecer no panorama do cinema brasileiro. Do ponto de vista da economia, a apelação das comédias eróticas e o paternalismo burocrático do Estado não resolveram a questão entre indústria e estrutura subdesenvolvida.
Pelo contrário, ambos tumultuaram a questão até demonstrar, sem querer, que ela não se resolve apenas no plano econômico. Por outro lado, a contestação marginal ao cinema dos anos 60, justa sob diversos aspectos, não ofereceu alternativa.
Aí, de repente, um arremedo do fim dos anos 50 se reproduz. A partir da chanchada e da dispersão em experiências solitárias aparecem filmes de valor, uma tensão no ar que explodirá certamente em algo novo e polêmico.
Nesse momento, sete velhos amigos se reencontram e decidem fundar - imagine! - uma revista de Cinema e cultura. Não É propriamente um fantasma do defunto Cinema Novo que baixa no terreiro do debate, mas é evidente que Luz & Ação vem para falar e fazer.
Como dizia Glauber Rocha, muito recentemente, mandando um recado de Paris: "O inconsciente É tapado: não saca que não se toca fogo em águas puras."
Desde 1968/69 que o cinema que fizemos vem sendo vítima do exorcismo cultural a que se entregou o País. As novas tendências e padrões emergentes - oficiais ou não - acuaram-nos, mas ao mesmo tempo nos permitiram um tempo de reflexão. E calamo-nos.
Esse silêncio animou os velhos rancores e permitiu a "desforra" que já dura. quatro anos. Na. ,caatinga cultural em que se transformou o Brasil, . solitários cangaceiros megalômanos cavalgam a besta de suas neuroses, atirando a esmo contra o que quer que se mexa com vida.
Chega, basta.
Não estamos mais dispostos a conviver pacificamente com o silêncio preguiçoso e as agressões suspeitas que se sucedem contra nossos, filmes. Não estamos mais dispostos a tolerar a leucemia mental que ameaça a cultura brasileira.
Leucemia mental: os glóbulos brancos engoliram os glóbulos vermelhos, o sangue não queima mais o corpo. A inteligência leucêmica manifesta-se através da complacência, da preguiça, da imitação sem trabalho.
Nós recusamos o cinema burocrático das estatísticas e dos mitos pseudo-industriais. Se filmes como Macunaíma e Como Era Gostoso o meu Francês bateram recordes de bilheteria, nada pode justificar o baixo nível "comercial".
Recusamos a chantagem do "público a qualquer preço". Ela tem levado o cinema brasileiro às mais aberrantes deformações: o riso fácil à custa do mais fraco, o racismo, a sexualidade como mercadoria, o desprezo pela expressão artística como forma de conhecimento científico e poético.
E afirmamos essa recusa com toda a autoridade de quem muito tem trabalhado, cada vez mais, em direção a uma harmonia dialética entre espetáculo e espectador.
Nossos filmes mais recentes são a evidência de que queremos uma vasta e justa redistribuição da renda cultural da nação, contra a concentração do experimentalismo asséptico, da vanguarda que se guarda; dos clowns de grã-fino.
O cinema para nós só tem sentido enquanto invenção permanente, em todos os níveis de criação - prospecção de novos modos de produção, especulação de novas áreas temáticas, experimentação de novas articulações lingüísticas e sintáticas, utilização de novas técnicas, etc.
Essa invenção permanente É que diferencia o bom do mau filme. O prazer da forma, as grandes utopias e o sentimento do mundo são direitos e deveres do artista. Porque uma coisa, diz Drummond, são sempre duas: a coisa mesma e a imagem dela.
Em nome dessa invenção permanente, o nosso cinema formulou as teses mais radicais da cultura brasileira durante os anos 60. Uma política geral e uma Ética essencial produziram uma estética nova, original e revolucionária, que se projetou internacionalmente, influenciando o cinema moderno.
Queremos provocar o nascimento de novas idéias para situações novas.
E, assim, evitar que o cinema brasileiro se transforme, a curto prazo, na mais recente indústria velha ou. na mais jovem cultura decadente do mundo.
O Desafio (Paulo Cesar Saraceni) - 1965
Nunca justificamos com hipocrisia o silêncio ou a importância. Dentro daqueles limites, tentando alargá-los através do exercício da .liberdade, continuaremos a aprofundar o nosso trabalho, fazendo chover na caatinga.
Certos de que, sendo brasileiros, É essa a nossa situação fundamental -se não botarmos o Brasil nos filmes, eles não. imprimem.
Convocamos, portanto, os produtores. de cultura desse País, particularmente os de cinema, para o diálogo aberto. Repetimos: queremos provocar o nascimento de novas idéias para situações novas.
. Assim é que esse não é um manifesto de um grupo, mas apenas um texto coletivo de provocação à espera das assinaturas que queiram ratificar a sua.oportunidade...Q!! do debate que pretende instalar através de publicação periódica.
A cultura brasileira não pode , continuar a ter que escolher entre o lamento e o conformismo, o cinismo e a vulgaridade. O novo está além dessa alternativa.
Assinam este documento:
Carlos Diegues, Giauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Miguel Faria Jr., Nelson Pereira dos Santos e Walter Lima Jr.
Nota do Barbieri:
Publicado na revista Arte em Revista (Ano I/Número 1) na edição de Janeiro/Março de 1979. Arte em Revista foi uma publicação do (CEAC).
Logo na primeira página desta edição inaugural, o CEAC informava:
"Arte em Revista pretende divulgar documentos que possam servir de subsídio para repensar a história da arte brasileira: textos de análise e manisfestos (esgotados ou de difícil acesso), ao lado de entrevistas ou depoimentos inéditos de artistas e críticos.
Para entender o que se passa hoje no Brasil, no domínio das artes, é necessário se reportar à nossa tradição artística e, de forma mais imediata, à efervescência cultural e política dos anos 60. Foi o que motivou o CEAC a iniciar suas atividades por uma ampla pesquisa e um estudo crítico daquele decênio e a dedicar-lhe os primeiros números de Arte em Revista."