O diabo em pose e alguns acordes: Excelente texto onde Lucas Rodrigues discute sobre o Diabo e o Rock
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"Feitiços e pragas ardem no meio da noite Fazendo da escuridão um presságio aflito Mentes humanas oram e proclamam Satã, nosso Rei, venha a nós, oh, Maldito " Letra da música Salém – A Cidade das Bruxas (Banda Harppia) |
O diabo em pose e alguns acordes
Escrito por Lucas Rodrigues para o Blog Babel
Apesar de ser véspera de natal, do lado de fora, o dia seguia sua rotina. Os ambulantes vendiam suas mercadorias, os mendigos passavam o tempo, os homens-placa compravam ouro, os religiosos discordavam sobre quem merecia o paraíso e os maridos agrediam suas mulheres, que por sua vez, reagiam: “aqui não, seu filho da puta!”. Dentro do prédio de formas curvas, como um projeto abandonado de Niemeyer, as vitrines exibiam o terror materializado em camisetas, bonés, agasalhos e canecas. Era uma tarde como outra qualquer, não fosse a visita de dois improváveis personagens.
No meio de jovens de cabelos compridos, óculos wayfarer, jaquetas de couro, piercings, alargadores, bottoms do Iron Maiden, do Metallica, do AC/DC, do Led Zeppelin, caveiras e outros seres sobrenaturais, uma dupla de monges havia decidido que o ambiente era perfeito para meditação. Descalços e vestidos com suas longas batas, os sacerdotes dedicaram algumas boas horas à tentativa de transcendência na seção de discos raros, loja 318, Galeria do Rock, no centro da cidade de São Paulo. “Encontramos a paz”.
Desde 1978, quando a Baratos Afins abriu as portas nesse endereço, essa não foi a única experiência pseudo-espiritual presenciada por seus frequentadores. É o que conta Luiz Calanca, proprietário da loja, em uma entrevista realizada de forma precária, entre um e outro cliente em busca de discos dos Rolling Stones e de Cássia Eller, por cima de vinis de Aracy de Ramalho, Almir Sater e Angela Rorô.
Em uma das histórias, Calanca cita um antigo freguês, que o telefonava diariamente à procura do álbum Speak of the devil, de Ozzy Osbourne. Em outra, ele apresenta Sabá, conhecido por seus pequenos furtos na Galeria, e que afirmava ter um pacto com o demônio. Essas lembranças, porém, surgem apenas com a ajuda do material disponível na ocasião. Entre uma capa de disco e um encarte de CD, as pessoas e situações vão se tornando cada vez mais claras para Calanca. Mais evidente, também, é o clima macabro e o aspecto sombrio presente nessas imagens, o que nos leva de vez para o tema da nossa conversa: por que o rock se apropriou tanto da linguagem e da simbologia satânicas?
A risadinha irônica e o sorriso de canto de boca se aliam perfeitamente ao discurso para responder a essa pergunta: “é tudo uma palhaçada!”. Responsável pelo lançamento de diversas bandas desde 1981, ano em que a Baratos Afins passou a ser também um selo fonográfico, Calanca tem propriedade para falar sobre o assunto. O empreendimento teve início com a produção de Singin’ Alone, sucessor de Lóki, de Arnaldo Baptista, e rendeu no total 174 álbuns, de cerca de 100 bandas.
Enquanto me explica mais sobre o passado do selo, somos interrompidos novamente, mas dessa vez não por um cliente. Quem chega é Paulo Krüger, baixista da banda de blues rock Cracker Blues, que compõe a lista de bandas da Baratos Afins. Depois de algumas perguntas sobre a agenda de shows, Krüger me entrega o seu cartão, que além de seus contatos e do logo da banda, possui o desenho de uma espécie de símbolo do grupo: um debochado diabinho vestido de terno e gravata.
- Posso fazer só mais uma pergunta?
- Claro!
- Por que tem um diabo impresso no verso do cartão?
Surpreso pelos rumos do assunto, Krüger improvisa uma resposta que evolve as origens do blues e os rituais de consagração das palhetas. A verdade é que essa simbologia já se impregnou de tal forma na história e na prática do rock’n’roll que é até complicado encontrar uma razão para que isso ainda aconteça. No caso da Cracker Blues, mesmo que sem uma intenção mais profunda, o inferno está representado também em suas músicas. Em seu primeiro álbum oficial, Entre o México e o Inferno (2009), as referências vão das mais sutis – “Bolero Maldito” e “Sangue de Segunda” – às mais explícitas – “Tinhoso”e “Que o Diabo lhe Carregue”.
Após passar até pelos costumes dos violeiros do Mato Grosso do Sul, o papo chegou naquele que, mesmo sem querer, parece ser a principal influência de todo esse processo. Apesar de poeta, dramaturgo, jogador de xadrez e alpinista, não foi nenhuma dessas habilidades que registrou o seu nome na história. A sua “infância no inferno” e a repulsão pelos dogmas, sobretudo os de origem cristã, serviram como justificativa para o hedonismo e a rebeldia das primeiras gerações do rock.
“Faze o que tu queres”
Nascido Edward Alexander Crowley em 1875 na Inglaterra, foi na época da faculdade que Aleister Crowley adotou o nome pelo qual ficou conhecido. Ao contrário do que foi posteriormente sugerido, a nova alcunha não era uma referência a nenhum terrível demônio, mas apenas a forma gaélica de “Alexander”. A desconfiança, entretanto, não era sem fundamento. Crowley foi membro da Ordem Hermética da Aurora Dourada, uma sociedade mágica que reunia várias vertentes do ocultismo e que possui ramificações até hoje. Por ir contra os valores morais e religiosos de seu tempo, Crowley foi declarado pela imprensa daquele período como “o homem mais perverso do mundo”.
Embora tenha integrado algumas seitas, foi a fundação da doutrina Thelema (que em grego significa “vontade”), baseada em seu Livro da Lei, que causou maior repercussão tanto na música quanto em outras áreas culturais e científicas. “Faze o que tu queres será o todo da Lei”, a frase mais famosa do Livro, se encaixa perfeitamente nos ideais libertários e, por que não, revolucionários do rock. Nessas poucas palavras, podem estar contidas tanto a extravagância do Kiss (Knight’s in Satan’s Service?) e a androginia de Bowie quanto as apologias satânicas de Marylin Manson e de diversas bandas de heavy metal.
As referências à Crowley e ao Livro da Lei aparecem diretamente em diversos casos. O mais antigo – e também mais ilustre – envolve ninguém menos que os garotos de Liverpool. Em 1967, na capa do icônico “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, entre as imagens de várias personalidades que influenciaram suas músicas e ideias, está a fotografia de Aleister Crowley. Em “Mr. Crowley” , do álbum “Blizzard of Ozz”(1980), Ozzy Osbourne canta as crenças do britânico ao som de órgãos e guitarras. “You fooled all the people with magic / You waited on Satan’s call / Mr. Charming, did you think you were pure? / Mr. Alarming, in nocturnal rapport”.
No Brasil, os principais influenciados pela Thelema foram os Mutantes e Raul Seixas. Em canções como “Novo Aeon”, “Loteria da Babilônia” e a “A Lei”, o cantor baiano divagou muito sobre os preceitos de Crowley. Foi em “Sociedade Alternativa”, porém, que as menções aos pensamentos do bruxo ficaram mais explícitas. Escrita em 1974 junto com Paulo Coelho, a música acabou se tornando um conceito, que era propagado por Seixas durante os seus shows. Pensando que a Sociedade Alternativa fosse um movimento armado contra o governo, a ditadura militar, através do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), tratou de prender e exilar os seus autores.
No entanto, ninguém dedicou tanto tempo e dinheiro aos ensinamentos de Crowley quanto Jimmy Page, guitarrista do Led Zeppelin. Rumores afirmam que os membros da banda haviam vendido as suas almas para o diabo em troca de fama, sucesso e dinheiro, e que apenas John Paul Jones, baixista e tecladista do grupo, não teria aceitado o “acordo”. Por outro lado, o único fato é que Page foi um estudioso do ocultismo dentro da filosofia thelêmica, tanto que adquiriu não só alguns manuscritos e objetos pessoas de Crowley, como também a Mansão Boleskine, às margens do famigerado Lago Ness, na Escócia, onde Crowley havia morado.
Além de Crownley, outra personalidade também contribuiu para o fortalecimento do imaginário do inferno no rock’nroll. Considerado um dos músicos mais influentes do blues, Robert Johnson coleciona histórias em torno de sua vida e de sua morte. A mais famosa delas é também a que mais nos interessa: acompanhado de um violão e de uma garrafa de whisky adulterado, Johson teria tido um encontro nada comum na encruzilhada das rodovias 61 e 49 em Clarksdale, Mississipi. A lenda conta que, nesse dia, o diabo em pessoa teria afinado o seu violão, o que seria a causa de sua grande habilidade com o instrumento.
O encontro é narrado em sua canção “Crossroads”, que ficou marcada pela versão posterior da banda Cream, de Eric Clapton. Desde então, é normal ouvir histórias de músicos que batizaram a sua palheta, ou até mesmo seu instrumento, em troca de sucesso. No caso de Johnson, a sua morte serviu para associar ainda mais o seu nome a temas macabros. Falecido aos 27 anos, o bluesman deu início à “maldição” que inclui outros grandes artistas como Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Brian Jones, Kurt Cobain e, recentemente, Amy Winehouse, todos mortos com a mesma idade.
“O metal é um circo!”
“Minha memória é meio vaga, mas lembro-me desta pessoa, antes do show, à meia luz, andando pelo palco. Ele era um tipo escuro, meio arcado, parecia corcunda, sem camisa e com grandes cicatrizes parecendo queimaduras pelo corpo. Carregava um saco nas costas, parecia que carregava ossos… coisa bem macabra”.
“Nesta noite, o teatro Lira Paulistana pela primeira vez estava com um clima bem carregado, pesado mesmo. Quando a banda entrou no palco, o guitarrista usava um traje vermelho com capuz, parecendo um monge diabólico, e o vocalista tinha o microfone preso num grande osso velho e amarelado parecendo um fêmur humano”.
O depoimento do jornalista Celso Barbieri, experiente na cobertura de rock mundo afora, se refere ao show da banda Vulcano, no Projeto SP Metal, em 1985. Mas se engana quem acredita em qualquer caráter ritualístico dessa atitude. Ainda de acordo com Barbieri, no final do show, ele encontrou com Hansen, então guitarrista da Vulcano. O músico lhe explicou que a proposta da banda era simples: ser a mais radical possível. “Se o público quer o demônio, então damos o demônio!”.
Banda Vulcano em 1985: o guitarrista usava um capa vermelha e o vocalista parecia segurar um osso humano junto com o microfone (clique aqui).
A história bizarra é corroborada por Calanca, que posteriormente reuniu, em dois volumes, gravações de algumas das bandas que participaram dos concertos. Calanca conta que soube mais tarde, através de um jornal, que os integrantes do grupo tiveram problemas com a polícia por terem violado túmulos em um cemitério.
Em mais de 30 anos trabalhando com bandas de rock, Calanca não acredita que os roqueiros de fato cultuem seitas satânicas ou pratiquem rituais macabros. “O metal é um circo!”. Embora de outra ordem, os problemas existiram, o que fez com que ficasse mais criterioso. No começo, como ele explica, era tudo muito tranquilo. Com o passar do tempo, entretanto, passou a ter problemas com grupos que até tinham potencial, mas que faziam muitas exigências. “As bandas eram muito egocêntricas”.
A tentativa de produzir outros tipos de bandas rendeu à Calanca a acusação de estar se rendendo ao “pop”. “Fui chamado de ‘poser’”, lamenta. E assim como foi considerado uma espécie de “Judas do rock”, Calanca conta as histórias daqueles que, de alguma forma, traíram o diabo.
Andre Catalau, ex-vocalista da banda Golpe de Estado, é um exemplo. Acostumado com a vida desregrada dos rockstars nos anos 80, preenchida com todo tipo de excesso, o músico acabou se convertendo para o lado cristão da palavra. O agora pastor da igreja Bola de Neve na cidade de Boissucanga, no litoral norte paulista, gravou em 2008 um álbum intitulado Under the Blood, e passou a usar a música como instrumento de evangelização.
Apesar do ceticismo, Calanca não enxerga um aparato publicitário que incentive essas bandas a escolher temas macabros. Para ele, há uma espontaneidade por parte dos roqueiros, mas não existe nada de culto. “Eles querem mostrar que são do mal, querem espalhar o terror”, brinca. Além disso, ressalta que nem só de inferno vive o rock’n’roll, e que o gênero também abre espaço para a abordagem de outros assuntos, como o amor. “Deus e o diabo caminham juntos”, conclui.
Lucas Rodrigues
O diabo na capa do álbum lançado pelo Barbieri em 2012 (clique aqui para escuta-lo e baixa-lo gratuitamente)