Jorge Mautner: O Demiurgo
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Caetano, Gil & Eu
por Jorge Mautner
Durante dois anos quase, eu lavei pratos em restaurantes de Babylon-New-York-City, fui empregado de assistente de garçom carregando caixotes cheios de camarões, garrafas de vinho, lavei cozinhas ao som de soul music, limpei milhares de cinzeiros mas nunca fui promovido a garçom. Eu invejava muito o Neville D’Almeida. Depois fui massagista. Foi Ruth quem me deu a ideia. Coloquei um anúncio no Village Voice e comecei a fazer massagens orientais em muitas pessoas de variados backgrounds sociais em Gotham City. Como todos os dias faço ginástica (uma hora e meia) e como aprendi algo de karatê e tai-chi-chuan eu acabei fazendo ótimas massagens de espinha. Era um tempo estranho, com tempestades de neve lá fora e leitura de Heidegger. E escrevendo meu manuscrito de 3 mil páginas.
Com Caetano eu tocava (acompanhando fazendo ecos e fraseados) sambas antigos, de Noel e Caimmy, de Ismael Silva e Ary Barroso, todo aquele repertório popular de Caetano. Com Gil eu tocava acompanhando o seu novo som africano-rock-heavy-brazilliance-electricity. Às vezes predominava o jazz, às vezes rock & baião. Falava-se muito de tudo. Inumeráveis discussões sobre Nietzsche, Hegel, estruturalismo, discos voadores, Dionisius e Apolo. Quando eu voltava para a casa do Arthur que me hospedava lá em Londres, eu vinha pela madrugada (eu e Ruth) pensando naquelas maravilhosas criaturas que eu havia conhecido. Eu, um mitólogo massagista e lavador de pratos em New York, de repente na Bahia em plena Londres! Um dia o Caetano ao ouvir eu cantar uma canção minha chamada "O Vampiro", ficou entusiasmado e disse que ia gravar. Eu fingi que não havia escutado e só quando ele repetiu é que eu me manifestei em sorrisos chineses e cortesias que tais. Eu sou uma estranha mistura do século XIX e do XXI pulando o XX. Os baianos são o mel, a bondade, a ternura, o cristianismo, a generosidade, o amor de um Brasil que só agora descobri através deles. Então eu disse para Caetano e Gil: — "VOCÊS ME TIRARAM DA LAMA".
Depois fomos à Espanha, e foi em Barcelona que eu vi com que crueldade pagã Cae gostava das touradas. Ele ficava espiando o sangue sair do touro entre horrorizado e fascinado. Era como se toda a violência que a Cae tanto horror causa, fosse naquele momento algo que pudesse conter beleza.
Gil em suas vestes africanas fazia as autoridades espanholas se espantarem muito. Foi na Espanha que eu Gil e Cae falamos de Deus e na anti-matéria, no destino dos astros, na desintegração da matéria, e nos deuses. Foi aí que nasceu a letra "Three Mushrooms". Também falava muito Périkles (que fez agora um filme com Dedé como atriz principal). Ruth e Dedé falavam muito formando uma espécie de complô feminista contra os homens. Foi aí que eu as comecei a ver como Bacantes e Amazonas, coisa que eu iria aproveitar no filme "O Demiurgo".
As discussões multiplicaram-se. A idéia do filme brotou como uma flor selvagem na boca de Caetano. Foi ele quem propôs: — "Vamos fazer um filme?" Mas como muitas das idéias do divino mestre, guru, prestidigitador e rei da Bahia, a idéia pairou no ar e depois transformou-se numa canção. Foi só em 1971 que a concretizamos. Era ainda julho de 1970.
Caetano Veloso é preocupadíssimo com assuntos dos mais variados, de Filosofia à História, e sua casa é um centro de discussões de onde emana uma luz de aurora renascentista. Cae acha graça no meu modo de escrever como uma fábrica. Nossos diálogos são muito estranhos porque ele é um poeta, um dos maiores poetas brasileiros, com agudíssima informação, um prestidigitador, um demiurgo cujas referências estarão sempre localizadas no Brasil, na Bahia. Na querida Bahia. Eu sou um desintegrado, um indivíduo dissolvendo-se em cacos internacionais. Um escritor pop. Vejo Cae como um rei oriental, com abanos, corte, dengosidade baiana, registrando o mundo e as incríveis contradições da nossa época através desta peculiar posição. Caetano não tem crise de identificação, suas referências são nítidas e seguras, a Bahia mítica, tribal e mágica.
Para além da incrível criatividade do nosso trabalho em conjunto, foi através destes dois iluminados baianos que eu conheci pela primeira vez um Brasil desconhecido para mim, um Brasil misterioso, doce, dengoso, cheio de riquezas míticas e humanas sem fim. Estranha aliança, deveras estranha, destes dois sóis da Bahia com um desintegrado produto industrial, eu, Jorge Mautner, pura negação permanente.
Macalé no filme canta uma estranha cantiga com letra minha que dura 8 minutos. É quase uma ária de ópera-candomblé. Nunca vi filme mais irônico do que este, e ao mesmo tempo com um élan de tragédia musical. Como os meus livros, o filme nada tem a ver com situações dramáticas, relacionamentos psicológicos dos personagens. O filme é uma farsa, uma fábula. Oh! La Fontaine, se as pessoas soubessem como você é atual!
Claro que o filme é muito mais como tudo é sempre muito mais. O filme é denso, profundo, aterrorizante. Há uma nostalgia romântica a pairar por cima do filme, e acho que ele é algo muito novo.
Um dia eu li O PASQUIM pelas ruas de New York em meio a uma tempestade de neve. Como este mundo é estranho!
Demiurgo é o nome dado pelos platônicos ao deus que teria criado o mundo, mas significa também operador de milagres. E hoje (25 de agosto de 2000) é uma data muito oportuna para falarmos deste filme, porque estamos comemorando no mundo todo o centenário da morte de Frederico Nietzsche. A influência deste filósofo é tão vasta, que eu chego a ficar emocionado quando leio o caderno Idéias, do Jornal do Brasil desta semana, especial sobre ele. Curiosamente, encontrei por acaso e reli hoje mesmo as anotações que fiz há exatos dois anos, em 20 de setembro de 1998, na casa do Marcos Petrillo, assistindo a um fantástico filme dos tropicalistas. Naquela noite mágica, o Marcos - que tem com a Tropicália uma ligação semelhante à que eu tenho com a Sociedade Alternativa - me mostrou esta relíquia da Kaos Filmes, que muito pouca gente conhece. Diga-se de passagem, Kaos sempre foi o nome da proposta político-filosófica de Jorge Mautner, que é um outro verdadeiro apaixonado por Nietzsche. É o próprio Mautner que inicia o filme, no papel de Satã. Gilberto Gil logo aparece - fantástico - no papel de Pan e em seguida vem Caetano Veloso, no papel do Demiurgo. E este demiurgo é um discípulo de Sócrates... Da trama ainda participam Jards Macalé e Dedé Veloso, a primeira mulher de Caetano.
Satã é o mesmo Satanás, chefe dos anjos rebeldes contra Deus, segundo a Bíblia. É ainda o demônio da Ira, do ódio, da guerra, do repúdio e do revide. Seus colegas são Lúcifer (Orgulho), Mammon (avareza), Asmodeus (luxúria), Belzebú (gula), Leviatã (inveja) e Belphegor (preguiça). Mas voltemos ao filme: os diálogos são fantásticos e as cenas, cheias de símbolos. Mautner usa o pentagrama invertido (símbolo do mal) e o anjo o utiliza na forma positiva. A cena de Gil (Pan) com as lésbicas é antológica! O demiurgo dá consultas às mulheres, castiga-as, lê suas mãos e, de repente, grita “viva a lógica”. Logo em seguida, Sócrates quer ler suas mãos... É evidente aqui uma grande gosação com o logos grego, pois a leitura de mãos não tem nada a ver com a lógica (que é a parte da filosofia que estuda as leis do raciocínio). Em dado momento, sete amazonas matam o demiurgo e bebem o seu sangue (a amazona parece representar o domínio da delicada beleza sobre a besta - o cavalo. Ou seja, a besta selvagem subjugada à vontade da mãe, geradora da vida). Mas o demiurgo ressuscita e discursa sobre a divina comédia humana, com saudades da Bahia, Porto Seguro e do sol dos trópicos (Na Divina Comédia, Dante colocou no inferno grande parte dos políticos do seu tempo... O filme, que assistimos em vídeo mas parece ter sido feito em super/8, parece ter sido rodado durante o exílio deles na Europa e época da Ditadura Militar no Brasil. Seria interessante se o Internacional Magazine buscasse uma entrevista com os tropicalistas, sobre o assunto)...
A cena da lata de Coca-Cola é digna de Salvador Dali! Quem mais poderia criar uma analogia entre a beleza externa de uma lata de Coca com Apolo (o deus da beleza na mitologia grega) e o seu conteúdo com Dioniso (o deus do vinho entre os gregos ou o mesmo Baco entre os romanos)? E quem mais poderia ter a genialidade de pintar um pacto entre o Demiurgo, o diabo e Sócrates, para daí resultar a morte de Pan, senão os tropicalistas?! Gilberto Gil interpreta de forma brilhante a morte de Pan. E não estaria aqui também a morte da nossa cultura, bem como a morte de Deus, que é uma das essências da grande obra de Nietzsche? O Grande Deus Pan morreu... Em resumo: ao tentar separar a cabeça do próprio corpo, os socrático-judaico-cristãos se esquecem de que o que alimenta o cérebro é o sangue, que vem do coração. E que o alimento do sangue é ingerido pela boca e pelo nariz, que também estão na cabeça! Ora, ao tentar separar-se do corpo (physis), a própria cabeça (logos) morre imediamente de fome! Aí reside a essência da morte de Deus: a ninguém é possível ir para o céu assassinando dentro de si o Grande Deus Pan!
O Demiurgo é o criador do Mundo inferior (ou material). É considerado o chefe dos Arcontes possuindo sabedoria limitada e imperfeita.
No mito Gnóstico o Demiurgo foi gerado pelo eon Sophia após sua queda. Ao ser gerado, criou o mundo material com o objetivo de aprisionar e governar as partículas divinas provenientes de sua mãe (Sophia) na matéria.
Com o objetivo de impedir que isso ocorra, o Demiurgo cria inúmeras ilusões para afastar as Almas de sua legítima parcela divina, de modo que estas estejam presas e sejam escravas do mundo material, tendo que sempre a ele retornar (reencarnação). Desta forma esta entidade poderá ser o governante desta pequena Esfera de Vida onde reina absoluto.
Possui vários nomes: Samael (deus cego), Yaldabaoth (criança do Caos), Saclas, Saturno, Cronos, etc. Sua consorte é o demônio feminino Nebruel, que ao se acasalar com ele, dá origem a doze eons.