Sábado Punk! - Memórias de um sábado traumático, vivido em fevereiro de 2022, na capital de São Paulo.
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SÁBADO PUNK!
Memórias de um sábado traumático, vivido em fevereiro de 2022, na capital de São Paulo.
Escrito por A. C. Barbieri
No começo de 2022, durante a minha visita a SP, como faço sempre em todas as minhas viagens, visitei as Grandes Galerias, mais conhecida como Galeria do Rock que, para falar a verdade, transformou-se em uma pálida lembrança do tempo em que esta galeria, foi até considerada para ser incluída no famoso Guinness World Records, chegando a abrigar umas 80 lojas de discos.
Devo confessar-lhes que a Galeria do Rock me trás muitas más recordações. Poderia escrever um livro só dos momentos difíceis que, lá passei. Como muitos de vocês, provavelmente, já devem saber, no Rock de SP, principalmente dos anos 80, no auge da explosão do estilo Heavy Metal, fui um dos Produtores Culturais que mais se destacaram. Acreditem, não se trata de presunção mas sim, de apenas uma constatação da realidade. Coincidentemente, neste período, tinha promovido uma revolução pessoal e estava recentemente separado de minha primeira esposa que ficou com a guarda da minha filha com apenas uns 5 anos de idade e, tendo abandonado meu trabalho de 13 anos num banco, minha situação econômica, estava péssima! Então, pelas circunstâncias, não tive alternativa à não ser, invadindo por uma janela, ir morar numa casa pertencente ao meu pai. A casa ficava no bairro da Barra Funda, estava vazia e, à vários anos, colocada a venda. Ela estava sendo devorada por cupins. Sem fogão e nem geladeira, lá, num quarto com apenas um pequeno colchão de solteiro, passei muitos dias sem dinheiro nem para comer e, portanto, para poder me alimentar, sendo obrigado a vender meus LPs ou apenas depender da amizade e compreensão de pessoas como o Chicão, dono da loja Devil Discos ou da Dona Maria, a mãe de uma ex namorada que, estrategicamente, de vez em quando, sempre num horário que a filha estava estudando na faculdade, a visitava porque, sabia que ela sempre tinha um prato de comida para mim. |
Grandes Galerias (Galeria do Rock) |
A Dona Maria, já falecida, foi uma senhora idosa afro-brasileira, um pouco obesa, que sempre quando lembro dela, me vem à mente o arquétipo da mãe bondosa "que todo mundo, menos eu, parecia ter". Quero deixar claro que, minha mãe não foi má! Ela somente, na sua luta contra a depressão e o alcoolismo, sempre esteve ocupada de mais.
Então, naquela época, a Galeria do Rock era um lugar onde eu podia imaginar o meu sonho acontecendo. Produzindo muitos shows, podia até me imaginar fazendo o Rock acontecer em SP, exportando para todos os estados brasileiros e conseguindo a minha independência financeira no processo. Imaginem, que poderia haver de melhor do que sobreviver fazendo aquilo que gostava?
Para um produtor de shows, sem escritório, sem dinheiro, tentando construir um nome para mim mesmo, a Galeria do Rock era um lugar perfeito para arregimentar as bandas. Lá, o caro Chicão (Devil Discos), uma pessoa realmente amiga e paciente, estava sempre à disposição e, até me permitia usar o telefone da sua loja. Eu, por outro lado, procurava não abusar da sua bondade, me aproximando dele somente quando "a coisa" estava muito ruim. Não queria parecer como umas figuras, bem conhecidas do rock paulista, que sempre abusavam de suas amizades e eram incapazes de fazerem um simples agradecimento.
Neste período, produzindo shows, meu coração vivia sempre apertado!
Na verdade, parecia que vivia o tempo todo, com profundo sentimento de culpa, com aquela idéia de que era uma ovelha negra, nunca atendendo as expectativas de meu pai, constantemente sem poder ajudar financeiramente a minha filha pequena e, aos olhos de todos os meus familiares, simplesmente sendo um vagabundo irresponsável, que abandonou a sua carreira no Banco e que, se negava a arrumar um emprego "sério", preferindo como um adolescente produzir shows de rock.
Enquanto minha mente vivia neste turbilhão emocional, era obrigado a colocar no rosto, uma expressão dinâmica, positiva e profissional para, poder sair vendendo a minha ideia para os donos dos teatros, a Secretaria Municipal de Cultura, os donos das Lojas de discos da galeria, as bandas de Rock e por aí vai.
Barbieri em Madrid, em março de 1987. O seus olhos já diziam tudo! |
Eu imagino, naquele período, meus olhos em desespero, implorando por ajuda, ao mesmo tempo que meu rosto tentava manter a minha dignidade, mostrando confiança, otimismo e eficiência. Eu era o perfeito cão de Pavlov, babando por um bife mas morrendo de medo de levar um choque elétrico. Esta luta emocional interna, esta obrigação de usar uma "persona", uma máscara para tentar sobreviver naquele universo dos anos 80 foi, sem dúvidas, a receita perfeita para depressão, neurose ou outros problemas mentais... Infelizmente a humilhação era constante, por exemplo, no Projeto SP Metal no Teatro Lira Paulistana, na hora de pagar a banda e tirar minha comissão miserável, era muitas vezes tratado como um abutre explorador de bandas e depois do show, na madrugada era obrigado à andar quilômetros desde próximo da Igreja do Calvário em Pinheiros, até próximo do Viaduto Pacaembú no bairro da Barra Funda onde morava. Acreditem, era duro chegar em casa sabendo que não havia nada para comer. Eu sempre procurava consolo no fato de saber que, dependendo do show, tinha conseguido dinheiro suficiente para me alimentar por quase toda uma semana. Só fui entender o stress a que me sujeitei, quando, já em Londres descobri que aquelas dores de cabeça monumentais que por anos, me travavam até os músculos do pescoço e a arcada dentária eram sintomas de pressão alta que, somados aos anos de stress, sofridos na minha luta solitária para sobreviver em Londres, danificariam de tal modo o meu sistema vascular que, resultam em um aneurisma da aorta, o que culminou com uma seríssima cirurgia aberta que me deixou, no estômago, com uma cicatriz vertical, com 27 centímetros de comprimento. |
Hoje em dia, meu próprio diagnóstico, é que sofro de Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Por mais que eu busque entender o problema, que pesquise, que tenha consciência de como funciona a mente, os sintomas não desaparecem. Tenho aquele constante medo do futuro, da insegurança financeira, de amanhã ficar prisioneiro de situações fora do meu controle. Detesto preencher formulários, passar, em qualquer país, pelo controle de passaportes e sempre que alguém bate na minha porta, meu coração vem à boca! Sempre me considerei "o mestre da corda-bamba", sempre fui o mestre Houdini um dos mais famosos escapologistas e ilusionistas da história. Me achava capaz de me safar das maiores dificuldades. Agora, aos praticamente 70 anos, me sinto frágil, minha capacidade de luta não é a mesma! Me sinto minado por minha própria batalha existencial...
Mas, voltando a SP, nos anos 80, no meio desta luta toda, o pior foi ter que lidar, não só com o ego de alguns do músicos como, principalmente, com o ego dos donos das lojinhas de disco. Se não bastasse isto, antes de mim, produtores de shows (ou músicos mais antigos de algumas bandas de rock), quando produziram shows, não só sacanearam no pagamento, como prejudicaram no som e na iluminação das bandas. Quer dizer, se não bastassem os problemas financeiros e de ego ainda tive que lidar com a má fama e a herança deixada pelos maus produtores que atuaram antes de mim...
Como quebrar este paradigma?
Diz o velho ditado que "Água mole em pedra dura tanto bate até que fura!"
Sei que não podemos esperar que todos pensem como nós, mas inocentemente, achava que devemos ser julgados não por nossas palavras, mas sim, por nossas ações e acreditava que se insistisse fazendo um trabalho honesto, digno e, dentro das minhas parcas possibilidades, de qualidade, acabaria sendo reconhecido. Na minha "santa" inocência (ou ignorância), nunca imaginaria que com quase 70 anos as coisas continuassem, praticamente, do mesmo jeito.
Bom, eu mesmo me pergunto, porque então continuar visitando a Galeria do Rock?
Barbieri e o mar. Foto: Andrea Falcão.
Vocês não sabem, mas um dia, no litoral paulista, em Monguagá, à muito tempo atrás, quando tinha uns 18 anos, quase morri afogado. Fui salvo quando um desconhecido mergulhou e me puxou pelos cabelos, trazendo-me à tona. Eu já estava, metros abaixo d'água, em posição fetal, perdendo lentamente a consciência, ouvindo um canto hipnótico que, me pareceu com o de uma sereia, isto, ao mesmo tempo que numa visão psicodélica, via apenas reflexos da luz do Sol que penetravam pela água. Naquele momento, havia encontrado uma paz imensa que, foi quebrada, quando dei por mim, já deitado na beira da praia e, tomei consciência de que uma mulher rude, arcada, com uma cara feia, apontando o dedo para mim dizia: "Se não sabe nadar porque entrou na água!"
Hoje em dia, não odeio o mar, não tenho medo dele! Continuo sendo atraído pela sua natureza mágica e misteriosa, só que desenvolvi um grande respeito por ele pois, reconheço que a vida começou no mar e o mar tem o poder de termina-la se nós ignorarmos o seu poder.
Então, o motivo porque visito a Galeria do Rock é porque ela desafiou a minha própria existência. Porque ela foi dura para mim e me humilhou. No entanto, com perseverança e muita luta consegui libertar-me dela. Foi com a grande ajuda do Chicão onde, juntos, demos a partida para a Gravadora Devil Discos lançando os álbuns "São Power" e "Korzus ao Vivo" e foi justamente com o pagamento ganho com a minha parte na produção do álbum "Korzus ao Vivo" que pude comprar minha passagem e viajar para o exterior...
De certa forma, me sinto um exilado cultural porque sinto que não recebi o apoio merecido de quase ninguém. Todo o reconhecimento que surgiu nestes últimos anos, me deixa sempre com um sabor "agridoce" na boca, amargo e doce ao mesmo tempo. Digo isto porque parece que este reconhecimento chegou muito pouco e muito tarde.
Sinto-me como uma velha "Diva", na frente de um espelho cheio de fotos coladas ao redor, são fotos antigas dos anos 80, já envelhecidas e desbotadas de shows e eventos que produzi, fotos de um tempo que pareceu glorioso, mas não foi porque, no final das contas, sou apenas bem conhecido, talvez para uma centena de pessoas. Se for!
Então, visito a Galeria do Rock, porque acho necessário sempre enfrentar a "besta" de frente! Não fujo! Durante os anos, tenho observado a sua gradativa decadência. Acreditem, não torço para o seu fim mas, sou agradecido por nunca ter aberto uma loja neste lugar! Se tivesse, possivelmente, lá seria apenas mais um velho roqueiro passando o resto dos meus dias num cubículo.
Isto me leva, ao principal motivo desta postagem. Permitam-me começar novamente:
No começo de 2022, durante a minha visita a SP, como faço sempre em todas as minhas visitas, num sábado visitei a Galeria do Rock.
Lá no segundo andar, fui direto visitar a loja Baratos Afins. Cheguei lá lentamente, primeiramente dando uma espiada para sondar o ambiente. Não queria encontrar-me com alguns dos muitos roqueiros reacionários que frequentam o lugar, alguns deles músicos que, no passado, perdi meu tempo produzindo seus shows. Sinceramente não acredito que estes "seres inferiores" mereciam todo o meu sacrifício!
A Baratos Afins estava lotada, todos os seus funcionários, no balcão, estavam ocupados, servindo os clientes. Considerando-se o momento pandêmico em que vivemos e que a loja, cá entre nós, é pequena e não muito bem arejada, por questões de saúde, achei melhor, deixar a minha visita para outro dia.
Então, preferi, caminhar lentamente, naquele mesmo andar, voltando pela minha direita, na direção da sacada que termina na rua 24 de Maio. Fui olhando todas as vitrinas e, lá no fim, quando cheguei na sacada, voltei olhando as vitrinas das lojinhas do outro lado.
Logo encontrei uma loja bem pequena, forrada de CDs. Esta loja, era tão pequena que se 5 pessoas entrassem nela, pareceria lotada. Não vou citar o nome dela, porque nem vale a pena. A loja estava vazia exceto pelo dono que com um cotovelo na mesa, apoiava a sua cabeça na mão enquanto, aparentemente enfadado, lia no balcão, uma revista ou coisa parecida.
Puxando conversa, de fora da loja perguntei-lhe à quantos anos ele tinha aquela loja. Ele olhou para mim com uma expressão séria e soberba e respondeu que, tinha esta loja já à 35 anos. Então, eu o parabenizei pela sua obstinação e disse que, se não fosse por ele e poucos outros lojistas, a Galeria nem poderia mais ser chamada de Galeria do Rock.
"Eu faço o que eu posso". Foi sua resposta séria e cheia de orgulho. Então, entrei e me apresentei. Quando falei meu nome, ele disse que já me conhecia de nome e começamos uma conversa.
Ele imediatamente fez questão de deixar claro que só vendia rock do estilo Trash em diante. Ele falou com aquele tom radical de quem sabe o que é melhor e até pareceu que era uma mensagem para mim por ter trabalhado principalmente com o Hard Rock e Heavy Metal.
Perdoem-me, mas já fico suspeito de quem polariza e acredita cegamente em qualquer verdade.
Continuamos a conversa e de repente o dono, sempre com aquele orgulho exagerado, como se ele fosse um grande empresário, o que contrastava brutalmente com o fato de ele ser o dono de uma lojinha com uma área de mais ou menos 3 metros quadrados vendendo CDs, um produto que se não já está morto está com os dias contados, começou a levantar a voz e, do nada, defender este governo corrupto e desumano no poder.
Procurando não lhe ofender, lhe perguntei:
"Você não acha que o Brasil deveria ser dono do seu petróleo e assim ter sua auto-suficiência energética?" A sua resposta, com desdém, olhando para o chão foi:
"Talvez..." Ao que eu incrédulo, em bom tom, devolvi:
"Talvez? Você ainda tem dúvidas?" A sua resposta foi rápida:
"Se a Petrobras é corrupta, melhor que outros a administrem!" Não resisti e tive que responder:
"Quer dizer, para evitar a derrubada de todas as árvores vamos por fogo na floresta? Se existe corrupção na Petrobras, não seria melhor reorganiza-la ou passarmos leis que corrijam os problemas de corrupção, do que darmos a Petrobras, de mão beijada, para os Norte Americanos! Você não entende que se subir o preço gasolina, também subirá nos mercados, o preço da comida! Você é brasileiro ou não é?" Em vez de ele responder, ele desviou a conversa para outro "meme" que ele deve ter lido, e com a confiança de um Ministro da Economia desumano como Guedes, disse:
"Se deixasse na mão do PT eu não poderia mais mandar ninguém embora! ESTA LOJA É MINHA!" Ele abriu os braços como se estivesse dentro de um grande supermercado e continuou:
"A verdade é que funcionário brasileiro é tudo vagabundo! Só trabalha sobre pressão! Se eu não estou aqui não se vende nada! Eu tenho um funcionário que trabalha aqui à mais de 20 anos! Se me der na cabeça eu chego um dia aqui e falo para ele 'Vá tomar no seu cu! Você está no olho da rua!' Você vai dizer que eu não posso?" A minha resposta foi imediata:
"Você não pode fazer isto! Você tem que ter uma razão justa para demissão e seu funcionário tem que ser tratado com dignidade, com respeito e justiça! Se o funcionário não está trabalhando direito, conversa com ele, se não funcionar, advirta ele oficialmente por escrito e se depois de 3 cartas, seu desempenho não melhorar, demita por justa causa. Convenhamos, se o funcionário já está com você à mais de 20 anos é porque ele não é tão mal assim! Por outro lado se você estiver falindo e não puder mais paga-lo, uma conversa honesta e sincera, se para o funcionário não for obviamente satisfatória, pelo menos não será desmoralizante, principalmente se você prometer fornecer uma carta de referência."
Bom, nem preciso dizer que o homem já estava subindo as paredes e já parecia querer partir para violência. Me senti como sendo um alien num país estranho, cutucando um dinossauro com vara curta.
Aproveitei que alguns jovens entraram na loja, rapidamente me despedi, lhe dei as costas e o abandonei, mentalmente falando para mim mesmo:
"Você tem o país que merece!"
Confesso que sai dali, sem sentir o chão, como se tivesse visitado um lugar maligno e cheio de ódio. Foi com se tivesse estado em frente de um estômago cheio de uma billy preta e gosmenta, se contraindo e expandindo, lentamente contaminando tudo e todos. Caminhei cego, imaginando que o Brasil entrou num buraco sem saída onde existe o "gado" do Bolsonaro e o "gado" do Lula. Os dois lados contaminados por um emocional obscuro, vingativo e polarizador. Nenhum dos dois lados é capaz de fazer uma autocrítica e pior, a esquerda parece não ter tirado nenhuma lição do seu passado recente e continua cometendo os mesmos enganos, os mesmos acordos com a direita, como se toda vez que apertamos a mão do Diabo não teremos que pagar a dívida depois (exatamente como estamos pagando agora).
No Budismo se diz que Deus está acima do "bem" e do "mal". Isto porque, o "bem" e o "mal" são criações humanas e portanto são coisas ligadas à questão do "livre arbítrio". Da mesma forma, é fundamental, procurarmos estar acima dos conceitos de "direita" e "esquerda" para assim, podermos ter uma visão mais ampla da realidade social e, consequentemente criticarmos com inteligência e propriedade.
Bom, a verdade é que sai tão perdido, tão emocionalmente drenado que, quando dei por mim, já estava na Avenida São João, um pouco acima da Galeia do Rock exatamente em frente do entrada do antigo Cine Olido que agora pertence ou pertencia (não estou certo) à Secretaria de Cultura. Só voltei à realidade porque um senhor bem magro sentado no chão com as costas encostadas na porta de aço do ex cinema apontava o dedo para mim e gritando dizia:
"Veja! Não existe mais cultura neste país! O Olido está fechado! Não produzem mais shows gratuitos! Tá tudo uma merda! Você não acha?"
Olhei para ele e como percebi que ele usava uma camiseta preta da banda punk inglesa Discharge e seu discurso parecia tipicamente anarquista, respondi:
"Concordo com você! E tem mais, gostei da sua camiseta do Discharge!"
"Ele levantou-se com dificuldade, meio arcado e puxando o peito da camiseta na minha direção disse:
"Eu sou muito punk! Tá sabendo? Neste momento uma mulher jovem passou por ele e ele, ainda puxando a camiseta falou a mesma coisa para ela, fazendo-a acelerar o passo.
Aparentemente, como percebi depois, para ele não havia o conceito de "pessoa conhecida" e "pessoa desconhecida" pois, ele tomava liberdades, se dirigindo e falando com intimidade com todas as pessoas que passavam. Quando o "velho punk" voltou seu olhar para mim, eu o provoquei:
"O 'Discharge' é bom, mas eu prefiro 'Olho Seco'..." Nem terminei de falar e ele gritou:
"...e Cólera...!" Ao que rapidamente acrescentei:
"... e Ratos de Porão! ...e Restos de Nada!" Ele, com uma expressão saudosa, lembrando o líder da banda Restos de Nada continuou:
"Há me fez lembrar do Ariel..." Aí sentou-se novamente e, batendo a mão no chão, convidou-me para sentar ao seu lado.
Conscientemente, sabendo que estava entrando na sua realidade de "morador de rua", como velhos amigos, sentei-me ao seu lado e começamos um papo amigo que, era frequentemente interrompido pela suas pequenas intervenções, falando sempre alguma coisa para transeuntes que ali passavam. Foi o que aconteceu quando um belo casal de jovens passaram abraçados e ele falou para o rapaz:
"O amor é lindo! Trate esta mulher com todo o carinho do mundo!" Ao que o rapaz com um sorriso, lhe respondeu:
"Sim! Com certeza!"
Ali sentado, ao lado de um punk já meio idoso, claramente não totalmente são, já me sentindo parte de um universo paralelo onde a lógica daquele lugar paradoxalmente parecia mais normal do que a do universo reacionário de onde havia acabado de sair, fomos abordados por um jovem rapaz humilde, de boa aparência carregando uma bolsa a tira-colo e um violão:
"Posso tocar uma música para o senhor..." Ao que o velho punk já se antecipou ordenando ao rapaz:
"Toca aí meu!" Falou ao mesmo tempo que já foi anunciando para umas pessoas que passavam e totalmente o ignoraram:
"Ele vai tocar uma música para nós!"
Ao rapaz, que agora, já tinha se sentado ao meu lado e acertava o seu violão, perguntei:
"Qual é o seu plano? O que ganha com isto? O rapaz em voz baixa todo tímido me disse:
"Se você gostar da música eu te oferecerei a letra dela e se você gostar e quiser ficar com uma copia dela, poderá me pagar com o que puder." Ao mesmo tempo que falava, da sua bolsa tirou uma fotocópia da letra que tinha sido originalmente escrita à mão num pedaço de papel. Confesso que fiquei com dó! O seu trabalho de divulgação, não poderia para ser mais primitivo...
O rapaz começou a tocar e cantar e rapidamente deu para perceber que ele tinha talento e sua poesia era de primeira. Eu olhava para ele e me perguntava qual seria o seu grau de insanidade...
Enquanto ele tocava, apareceu um senhor bem branco, ainda mais velho do que o punk, mas mais jovem do que eu, vestindo calça azul marinho, sapato preto e camisa branca, carregando um mala modelo executivo, bem velha e surrada. Sua aparecia era a de que ele também era um morador de rua que vinha usando aquela roupa à um bom tempo.
Ele tentou interromper o jovem dizendo que era um "empresário e produtor artístico". Ele não conseguiu porque o "velho punk" lhe deu uma dura. O "empresário" revoltado, com pompa, lhe disse que não permitia que lhe levantassem a voz. Com o dedo na frente da boca em sinal de silêncio, fiz pararem o bate-boca e deixarem o rapaz terminar de executar a sua música.
Sinceramente me senti como o personagem daquele livro chamado O Grande Mentecapto escrito por Fernando Sabino. Me senti, dentro de um sanatório cheio de loucos, com o personagem "Giramundo" . Ao mesmo tempo, como acredito na "sincronicidade", que "coincidências com significado" são formas de comunicação com "o outro lado" qualquer que seja ele, podia ver naquele "velho punk", no pseudo "empresário e produtor artístico" e no "jovem músico", várias facetas de mim mesmo, vi possíveis universos mentais, numa visão de um possível futuro ou universo paralelo. Onde numa outra realidade me dei muito mal! Eu me vi como um "velho anarquista", "um eterno músico adolescente" e finalmente um "velho produtor de shows", aprisionado por suas próprias memórias!
Apesar de ser agradecido por estar vivo e conseguido me estabelecer em Londres, talvez devesse ser mais agradecido porque poderia já estar morto ou vagando como um louco pelas ruas de SP.
Divagações à parte, assim que o rapaz acabou de executar sua música, imediatamente o "velho punk" pediu que eu cantasse e tocasse uma música.
O Rapaz, rapidamente, me passou seu violão e ali mesmo, em meio às pessoas passando e com o barulho do trânsito, cantei e toquei o meu "Blues da Cigarra" que, aliás, acho que casou com toda a loucura daquele dia. Ali, ninguém estava preocupado com perfeição!
Para finalizar e ser justo, agradeci, elogiei e comprei uma das poesias do rapaz. Ele levantou-se e se foi, não antes de receber do "empresário" o seu cartão de visita; um pedacinho de papel, preenchido na hora, usando uma das 10 canetas que ele carregava no bolso da camisa. O Papelzinho continha o seu nome e número telefônico. Se era verdadeiro, isto já é outra questão!
Eu tinha comprado, para mim, um par de sapatos novos e já os estava "amaciando". Na sacola da loja eu carrega o par de tênis velho que, para falar a verdade, estava mesmo na hora de aposenta-los. Então, num impulso, ofereci-o para o "velho punk":
"Estou aqui com um velho par de tênis, com todo respeito, lhe interessa?"
Ele pegou rapidamente a sacola da minha mão, abriu, olhou dentro e falou: "É meu!" Então, rapidamente levantou-se e, com a sacola na mão, à passos largos, quase correndo, sumiu! Enquanto eu o via desaparecer no meio do povo, lembrei-me com surpresa, que já conhecia o conceito de "velho hippie", de "velho roqueiro", de "velho headbanger" e agora acabara de conhecer o de "velho punk". A verdade é que, todos nós envelhecemos juntos!
Bom, fiquei ali, só o com o "empresário", na frente da entrada do ex Cine Olido. Ele, o tempo todo, tinha ficado em pé. Já, também em pé, olhei para ele e fui me despedindo ao que ele disse que eu não poderia ir porque eu tinha muito talento e tínhamos que discutir o futuro da minha carreira. :-)
Tentando me livrar dele, informei-lhe que já estava atrasado, dizendo-lhe que pretendia atravessar o viaduto Santa Efigênia para pegar do outro lado, o metrô São Bento. O "empresário" insistiu que estaria indo na mesma direção e portanto me acompanharia. Com ele me seguindo, ameacei atravessar a rua, mas voltei, pedi desculpas e disse que tinha me esquecido que tinha que visitar um cliente próximo da Praça da República e rapidamente o abandonei. Ele ficou muito puto, me deu as costas e chingando, desceu a avenida São João...
Este foi definitivamente um SÁBADO PUNK! Voltei para casa perdido no limbo da insanidade mental! Aliás, nesta estada por SP, com algumas excelentes excessões, aconteceram outros encontros que me fizeram questionar a minha própria realidade mental e o estado, nem diria mental, mas moral de certas pessoas.
Finalizando, quero deixar claro que reconheço que não sou e que aliás, ninguém é perfeito, mas fiquei com aquela sensação de que SP está passando por momentos muito difíceis! Parece que o mal esta ganhando em quase todas as esferas!