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A juventude não é um simples prólogo!
50 anos da invasão do Beatles nos Estados Unidos
Escrito por Guilherme Rodrigues
Entre os que vivenciaram os anos 60, rola um ditado mais ou menos assim: “se você se lembra de como foram os anos 60, então você não esteve lá.”
Certamente eu não estive nos ‘60s (pelo menos conscientemente), no entanto eles estão em mim, não só por ser oriundo da década e de suas “revoluções” (no meu caso, a ausência da revolução que foi a “pílula”), mas pela fissão que aquele lapso temporal trouxe para a chamada civilização ocidental, como se os anos 60 fossem um artefato com uma ogiva sócio-cultural que explodiu, abrindo uma dobra, um portal no tempo (“Sinto como se os ‘60s ainda estivessem por acontecer. Eles me parecem um período mais no futuro que no passado”, como Paul McCartney diz em “Many years from now”, citado por Barry Miles), dando o fugidio vislumbre de uma “história paralela” e cativando para sempre o imaginário das gerações posteriores numa espécie de banzo hipnótico e/ou espontâneo.
A abertura deste "portal no tempo" está completando 50 anos exatamente hoje, e alguns dos maiores responsáveis pela sua abertura foram uns certos Beatles e suas perucas e canções inofensivas.
Cinqüenta anos atrás, 9 de fevereiro de 1964, num domingo como hoje, os Beatles fizeram sua apresentação no Ed Sullivan Show para uma audiência de aproximadamente 73 milhões de telespectadores nos USA e no Canadá (façanha superada apenas 18 anos depois, no Super Bowl XVI, em 1982, um evento esportivo), tornando-se, instantaneamente, lendas vivas. Naqueles minutos históricos na TV, eles gravaram seus nomes na História da cultura popular, transformando um fenômeno essencialmente britânico numa verdadeira epidemia social, a Beatlemania.
À 50 anos atrás os Beatles chegavam triunfantes nos Estado Unidos!
É complicado traduzir em palavras o que era a Beatlemania, porque qualquer exagero vernacular não chegará perto da realidade do que foi aquele fenômeno sócio-cultural. Ela talvez tenha sido o primeiro (bom) viral de marketing da História. Para se ter uma idéia, foi a envergadura do fenômeno Beatlemania que fez todos os marketeiros comerciais mudarem o foco, passando a investir no jovem como alvo preferencial do mercado consumidor, algo que perdura até os dias atuais.
Sob o aspecto negocial, a aparição dos Beatles naquele palco da CBS, e, em seguida, em seus primeiros shows na América, foram o rito de passagem do Rock, o momento em que o gênero deixou a adolescência e entrou na idade adulta, largando os clubes e inferninhos para trás, passando a ter como habitáculo preferencial os estádios. Se hoje você vai a um show do Muse, do Red Hot Chilli Peppers, do U2, ou mesmo dos Stones, e fica extasiado com as megaestruturas de som (algumas com mais de 100.000 watts de potência sonora), com palcos em 3D, hologramas, bonecos infláveis, etc. e tal, tudo começou com a lendária apresentação daqueles cabeludos no Ed Sullivan Show, e aqueles shows caóticos, quando, pela primeira vez, os empresários e promotores de espetáculos começaram a entender as enormes possibilidades financeiras daquele “tal de roquenrou”, com o que formularam-se conceitos básicos como “turnê mundial”, “videoclipes”, “concertos em estádios”, “mercado consumidor de bens ligados ao rock” (camisetas, pôsteres), “equipes de profissionais e aparelhagens adequadas para shows em larga escala”, e por aí vai.
A recepção calorosa dos fãs no aeroporto!
Aliás, falando em aparelhagem, infelizmente, os Beatles pagaram um alto preço pelo pioneirismo. O fato é que não existiam, à época, equipamentos de som capazes de fazer com que a Banda fosse audível a dez metros dos palcos de estádios superlotados de gente gritando a plenos pulmões. Então, era mais ou menos o seguinte, os caras cantavam simplesmente as melhores canções de todos os tempos, em amplificadores de 100 watts, e ninguém ouvia nada!
Mas isso parecia não ter importância pra quem ia a um show deles. O que importava era a experiência de “estar lá”, “de ser parte daquela festa”, de “viver aquele êxtase coletivo”. Era o "happening" que importava. “Eles não ficam se sacudindo como Elvis”. (...) 'Eles batem os pés e balançam naturalmente ao som de sua música, e, oh, Deus, eles simplesmente passam uma energia contagiante.” (Newsweek, 18/10/63). “Naquele aeroporto, ou diante da TV, vendo aqueles quatro caras no Ed Sullivan, de alguma forma eu sentia que algo importante estava acontecendo. A gente vivia entediada e de alguma forma sentia que aquilo era o começo de algo grande, como se alguém chegasse pra você e colocasse nas suas mãos as chaves da loja de doces." (Stark, Steven D., “Meet The Beatles: A Cultural History of The Band That Shook Youth, Gender, and The World”, Ed. Harper, 2005. p. 15). "Os Beatles eram quatro rapazes da vizinhança (...). Essa era a essência de sua comunicação pessoal com o público. As pessoas se identificavam com eles imediatamente." (Hunter Davies, "A vida dos Beatles”, Ed. Expressão e Cultura, 1968, p. 255)."
A ascensão de John, Paul, George e Ringo ao topo das celebridades mundiais foi o coroamento da ética do cidadão comum, dos "moleques" que faziam travessuras na pracinha do fim da rua e, súbito, viraram reis; monarcas, contudo, que, sem saber viver de outra forma, transformaram os "velhos palácios de uma nobreza austera" em “esquinas dançantes” de onde continuavam a fazer as mesmas estripulias, convidando todos (todos mesmo!) a participarem de suas aventuras, desgovernando o stablishment - uma elite arcaica e bélica, que ditava as regras do "bom-gosto" e decidia "quem ia morrer e quem ia ser bem-sucedido" - com o mote “a imaginação e a juventude no Poder!"
A beatlemania toma conta!
Era Isso. Com o sucesso sem paralelos dos Beatles, pela primeira vez o jovem viu que era possível ter alternativas, que ele podia ser criativo e inteligente e engraçado e bobo e genial e bem-sucedido fazendo aquilo que gostava (sem imposições), e tudo isso “ao mesmo tempo AGORA!”. Eles, inconscientemente, sintetizaram um conceito musical E imagético de juventude. Aqueles Beatles da fase Perucas, ainda significam muitas coisas pra muita gente de muitas gerações porque foram - são e sempre serão! - um flash cristalizado do que a juventude pode oferecer de melhor, em toda sua glória irresponsável, em toda sua originalidade bruta, em toda sua majestade de bobo-da-corte, em toda sua irreverência intelectual/comportamental. E esse ainda é o ideário que o jovem do século XXI continua a buscar (e arrisco dizer que continuará a buscar, enquanto o mundo existir como o conhecemos).
Foi o enorme sucesso midiático que fez a irreverência liverpoodliana dos Beatles - os cidadãos de Liverpool eram considerados os "rudes e ignorantes" do Reino Unido - ser aceita e abraçada, primeiramente pelos jovens da Inglaterra, onde fez ruir toda uma estrutura de classes, coração do sistema social britânico desde a época Vitoriana, e, depois, pela juventude norte-americana, onde veio a calhar num momento em que os universitários começavam a questionar a moral e a ética do "american way of life" apenas para alguns "brancos" abonados, enquanto o que restava para todos os demais era cumprir ordens como "vá morrer no Vietnã pelo Tio Sam".
Outro lance importante para a cultura pop, decorrente do sucesso daquela aparição dos Beatles no Ed Sullivan Show, foi a abertura das portas do mercado americano para outros artistas ingleses, como os Rolling Stones, Os Animals, o Who, Os Kinks e tantos outros geniais (e outros nem tão geniais assim), no que ficou conhecido como "a invasão inglesa", mudando o epicentro do Planeta Rock dos USA para Inglaterra, e injetando "sangue novo" de novo no Rock (mas essa é outra estória, pra outra ocasião).
Os Beatles fazendo história no programa de Ed Sullivan.
Mas os sintomas dessa "febre de juventude" não se restringiram apenas ao hemisfério norte; se disseminaram pelo mundo inteiro. Inclusive pelo Brasil, onde um tal de Roberto Carlos largou mão de copiar João Gilberto e desandou a "correr demais só pra ver seu bem" a bordo de uma “máquina quente nas curvas da estrada de Santos”; sem falar num certo Caetano Veloso, que, de promessa de artista, tirou “carteirinha de muderno”, se muniu de cabeleira, coragem e passou a perguntar “por que não? por que não?” ao som de guitarras e órgãos elétricos! No nosso contexto, enquanto os jovens daquele “Brasil varonil” ou eram sérios candidatos à tortura nas mãos dos "super-amigos do DOPS", ou eram múmias que defendiam a prevalência do banquinho e do violão e da canção "engajada" sobre a arte e a diversão, um Caetano desafiador, numa noite memorável de 1967, disse “vocês não estão entendendo nada, nada, nada”. E Caetano estava certo. Se eram tempos de “abaixo a ditadura”, também eram - como sempre é - tempos de gozar a vida intensamente, de se divertir, de sonhar e de se apaixonar.
E é aí que a gente entende a importância da aparição daqueles cabeludos "inofensivos" num show há cinqüenta anos (e os porquês de ainda estarmos falando desses caras tanto tempo depois).
Naquele 9 de fevereiro de 1964, os Beatles, supostos exemplos do bom-mocismo, chutaram, como ninguém, as portas do bom-mocismo, da ditadura do bom gosto e da “arte séria”, e espanaram essa estória do jovem ser uma simples versão-miniatura dos mais velhos, cantando para 73 milhões - e de quebra, para o mundo inteiro - a seguinte mensagem: "A JUVENTUDE NÃO É UM SIMPLES PRÓLOGO!"
Então, dito tudo isso, se você ainda se pergunta o porquê de tanto blábláblá em torno desses Beatles e desse tal dia 9 de fevereiro de cinqüenta anos atrás, só posso dizer o seguinte: aquela transmissão histórica daqueles caras bobo-alegres, balançando as perucas e cantando Ié-Ié-Ié, causando um frenesi quase sexual nas meninas, foi “apenas” o futuro metendo o pé na porta, fazendo de 1964 o primeiro ano do resto de nossas vidas.
E talvez, apenas talvez, isso ainda tenha alguma importância histórica, num mundo de assuntos tão mais importantes...
Domingo, 08 da noite, 09 de fevereiro de 2014.
Guilherme Rodrigues