Hélio Oiticica e a Arte do Agora

Hélio Oiticica
Hélio Oiticica
Hélio Oiticica e a Arte do Agora
Um fim de tarde esplêndido, num fim de verão carioca, o sol em positivo e negativo, num jogo de mostra-e-esconde pelos recortes sinuosos de céus e montanhas já se violetando-se. Pelas aléias do cemitério de S. João Batista, da capela do velório ao outro extremo da cidade dos mortos, uma fieira melancólica de vultos espaçados, ora dourados, ora cor de chumbo, ritmada pelo surdo de Mangueira, atrás do esquife recoberto pela bandeira: os parentes, os amigos, os conhecidos. Nem um repórter, nem um fotógrafo, nem um cinegrafista. Colhidos por informes telefônicos (amigos) no meio da noite, que foram entre cortando a angústia até que ela se espraiasse pelos corações com a notícia da morte, naquela manhã de sábado, Haroldo de Campos e eu nos atiramos pelo ar e para o Rio, onde chegamos ainda em tempo de acompanhar o cortejo, não mais em tempo de rever o semblante de Hélio Oiticica, já anoitecido para sempre sob o tampo do caixão, abominável obra de arte penetrável.
Hélio Oiticica Arte
Nossas memórias e desmemórias, de Haroldo e minhas, eram iguais e desiguais - mas as melhores eram novaiorquinas. Não posso investir-me nas lembranças de Haroldo, mais ricas, fiéis e longas (desde os inícios da década passada), mas todos podemos investir-nos em suas idéias sobre a arte e o artista, que sobre eles se manifestou diversas vezes, a última das quais, se não erro, no texto que escreveu para o filme documentário que Ivan Cardoso realizou no ano passado. Pelo que Haroldo me conta, Nova York, então, ainda era uma festa, e Hélio, em pique luminoso, parecia abrir novos caminhos para além da arte. Quando chegou a minha vez, cinco ou seis anos depois, a cidade só não pôde deixar de ser uma festa também para mim graças, em boa parte, à generosidade de Hélio - na semana da chegada, na semana da partida e nas semanas intermédias, quando me telefonava, altas horas, para a Universidade de Indiana, em Bloomington, salvando-me, por um fio, de solidões noturnas que me emparedavam. Entre um e outro alarido rido e colorido da festa, especialmente em minha semana novaiorquina de despedida, discutíamos com alguma exaltação. Ele parecia espantar-se em silêncio com certas inflexibilidades minhas, eu me espantava com a impressão, que ia comigo ao fim dessas reuniões, de que eu sempre lhe ficava a dever alguma coisa.
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Não concluir
A morte de Hélio Oiticica provocou uma súbita premência ou precipitação de idéias ou meias-idéias em minha cabeça, na tentativa de compreender a sua arte, embora eu não possa afirmar que tenha acompanhado de perto toda a sua trajetória, ao longo de mais de vinte anos. Ocorreu-me então que a sua arte, após os períodos concretista e neoconcretista, se insere exemplarmente numa arte da secundidade, esta por sua vez parte do movimento ou revolução anti cultural que eclodiu na década passada e que poderíamos chamar de A Revolução da Secundidade.
Na visão fenomenológica de Peirce, o fundador da Semiótica moderna, as coisas deste mundo podem ser classificadas em três categorias dialéticas, que ele denomina, simplesmente, de Primeiro, Segundo e Terceiro. Ou: Primeiridade, Secundidade, Terceiridade. A possibilidade e a espontaneidade caracterizam o Primeiro (exemplos: a arte, a infância, o inconsciente freudiano); ação e reação, choque, o aqui-e-agora são as marcas do Segundo (exemplos: o amor, a adolescência ante o choque da puberdade, o jogo, o mundo dos negócios), enquanto que as idéias de generalização, norma e lei são inerentes ao Terceiro (exemplos: a ciência, a idade adulta ou "idade da razão", o consciente). O Segundo implica um Primeiro, mas jamais se conclui num Terceiro, embora possa ou pareça tender para ele; é o momento presente, momento de tensão entre um passado de possíveis e um futuro de previsíveis (projeção, planejamento); é o mundo dos eventos, das coisas que pintam, dos acasos. Por força da evolução da ciência e da Revolução Industrial, muitos movimentos artísticos do século passado e do atual apresentaram uma tendência à normatividade, a um Terceiro, portanto (impressionismo, cubismo, futurismo, neoplasticismo, concretismo), dentro da visão ocidental da arte, de onde decorrem as tentativas de formulação das muitas Estéticas, de onde decorrem os manifestos e as doutrinas - mesmo sabendo, com Peirce, que a arte é um Primeiro que aspira inutilmente a um Terceiro, pois que este não é de sua natureza. A primeira grande reação a toda idéia de sistema artístico é Dadá (Satie, Duchamp,Picabia, Oswald), fonte e matriz de toda a arte de Secundidade deste século.
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Não posso precisar a ordem das aparições, mas foi na ESDI - Escola Superior de Desenho Industrial - do Rio de Janeiro, aí por 67 ou 68, que vi pela primeira vez os seus "penetráveis", através de uma projeção de slides que ele próprio realizou: eram objetos ou miniambientes vazados e coloridos, que convidavam à intrusão corpórea; animavam-se como caramujos, propiciando a surpresa do uso inútil - para um só, para poucos, para muitos, para todos. Tinham ainda a marca do durável, como um equipamento possível de play-ground. Esse traço desaparece com a aparição seguinte, a da arte ambiental a que denominou de "Tropicália", verde coreto "Kitsch" de folhas, signo-amb!ente de uma recuperação primeva. E a arte do precário que só se completa com o precário do uso, surpresa contra surpresa. Aí, como nos "ninhos" que se seguem (e que também só conheci por registros fotográficos), de repente percebe-se que o que se exalta é o envolvido e não o envoltório, exalta-se o corpo em sua projeção simbólica de aspirações físicas, ultrafísicas, metafísicas. Percebe-se que Hélio, o Solar, caminha para a roupa e para a fantasia - talvez a grande arte da Secundidade. E ela chega, a roupa-fantasia, com os "parangolés", o espaço interno em que o corpo se sente nu, não vestuário, mas estuário do corpo, um manto não seriado, sempre em estado de prova, não de corte e costura - mas de corte e curtição. Ou de "porte e postura", como diria Augusto de Campos.
Os parangolés são vôos em estado de pouso, ave movendo-se sob as penas. Todo lugar vira camarim, todo terraço vira palco quando alguém enverga um parangolé - a idéia da fantasia para uso instantâneo, fantasia de fantasias, onde todo gesto se"torna amplo e majestoso. O parangolé recupera o quimono: o sentimento do corpo nu sob a roupa. ~ uma não-roupa que pensa todas as roupas :
Erté, Chanel, Dior, Rabane. Não deixa de construir, o Hélio.
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Ninho Parangolé
Em Nova York, quando a pólvora prateada· do sonho já virara rastilho de fuligem, Hélio Oiticica tentou a síntese de tudo.
Em sua casa, em torno de um beliche, montou um penetrável ambiente de ninho parangolé - uma teia-labirinto bricolada de todas as colagens, acrescida de toda uma parafernália informacional ao alcance da mão: do lápis ao arquivo, do aparelho de som à televisão, um sempre ligado, outra sempre sem som; frases-lema pelo teto. E ele lá em cima, deus e pássaro. Livros. Leituras. Risos. Sonhava um grande vôo.' Um dia, com wna turma maravilhosa, ia embarcar num jumbo, descer no Rio, dar à noite um show fantástico no Maracanãzinho, e embarcar de volta a Nova York, na manhã seguinte. Seu ídolo era Mick Jagger. De fato, o momento artístico supremo da Secundidade é o espetáculo, o entretenimento, o show - o aqui-e-agora da glória. Os. artistas da música pop s.ão o modelonirvana da arte da Sêcundidade. Mas não sonhava apenas. Sofria. Um mundo se fora. Chegado aos 40 anos, sentiu que não tinha apreço nenhum pelo papel de representante da vanguarda brasileira" em Manhattan. Era artista do precário e do prazer. E do fazer. Desses fazeres que só se cumprem no ato, não nas histórias da arte. Sacudiu teias e ninhos. E voltou. Ao sol carioca, e espicaçado pela acupuntura, recobrou novo alento. Às vezes, sentindose ainda um new-yorker, esnobava - e os mais snobs não entendiam. Há um ano, quando o vi pela última vez, estava ótimo. Transformara o seu apartamento num ninho de projetos. O que mais o entusiasmava era o dos ambientes ao ar livre, para o Parque Ecológico do Tietê, projeto do Ruy Othake. Ele próprio montava as maquetes. Sozinho, sem fala, mal se movendo no mesmo lugar, aí agonizou por três dias, fulminado por um derrame:
Não queria saber da arte, mas a arte nunca vai deixar de querer saber dele.
Décio Pignatari
Artigo publicado na Revista Código 4
Salvador/Bahia (Agosto 1980)
Texto selecionado por Barbieri

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Comentários

jayme firro posted a comment in Rock Brasileiro (1974/1976): Parte III
Oi Gil. Boa lembrança !. O Alpha Centaury era formado pelo Edu Rocha - percussão , (Ex Brasões), pelo Sergio Bandeira - Violão e voz (ex Albatroz) e mais duas vocalistas. ( Creio que atuaram no grupo a Clarita , Walkíria e Vera Lúcia mas não lembro a ordem de participação delas.) Assisti uma apresentação do grupo em 73 ou 74 levado pelo Edu Rocha. Eles tocavam música progressiva de altíssima qualidade entre elas lembro de uma chamada "Tunel dos Ventos" Na época eu frequentava um restaurante e antiquário chamado " Solar Dom João V " no Itaim Bibi, onde o Edu Rocha ir jantar com a Bibi Vogel que era sua parceira em um trabalho paralelo de música sul americana. Tinha um palco com piano e instrumentos onde os clientes podiam tocar após o jantar. Além da bateria e percussão ele tocava violão e assisti canjas dele nessa casa e apresentações em casas noturnas do Bexiga. Seu trabalho individual era também de altíssima qualidade assim como o do Sergio, enfim, vamos pedir para que a música deles não se perca na névoa do tempo e surja algum registro da época. Um abraço a você e a todos.
Joomla Article about 2 years ago
Barbieri, querido! Muito obrigado pelas palavras de incentivo. Super abraço do amigo Pevê.
Joomla Article about 3 years ago
Excelente lembrança Barbieri! Apesar de minha geração ter sido “a próxima da fila” sinto me beneficiado pelo movimento pro rock que esta discussão causou. Pra galera que curte as histórias e desdobramentos, e pq não dizer “desbravamentos” desta época vale recomendar o seu livro auto biográfico e o obviamente, o Livro Oculto do Rock.
Joomla Article about 3 years ago
Legal a matéria, mas Baribieri toquei no Kafka de 85 a 90 não eramos "pop rock" e nem tinhamos amigos influentes ...rs ! abrx
Joomla Article about 3 years ago
o pepe melhorou muito (TSC!) essa semana ele estava propagando (sim, de propaganda) que o talibá é a grande força anti-imperialista e revolucionária de toda história moderna... um verdadeiro fantoche de neo-fascistas euroasianos. Só uma pessoa desonesta intelectualmente defende talibã para contrapor imperialismo americano. e ele faz isso porque recebe muito bem de seus patrões de mídias estatais chinesas. Que não passam de um outro império, e este tem campos de concentração e vigilância digital totalitária sem precedentes
Joomla Article about 3 years ago
Jefferson Ribeiro Basilio posted a comment in Soul of Honor
Muito muito louco esse som amigos,tenho o cd que comprei numa loja de CDs usados a uns 20 anos atrás,nunca cansei de escutar essa sonzeira mano, que que isso cara !!! Sem palavras para esse cd,som pensarão guitarra arrastada,bateria empolgante , vocal show muito show mesmo....
Joomla Article about 4 years ago
O cd "As cores de Maria" veio num lote de cd´s misturados... como brinde. Escutei hoje e achei sensacional esse trabalho.
Joomla Article about 4 years ago
Gostei muito da história dela, cheguei até essa página porque achei o tarot dela na rua, e fui investigar de quem era. Parabéns
Joomla Article about 4 years ago
Dimensões parelalas podem existir, estamos mais perto de descobrir do que nunca
Joomla Article about 4 years ago
Penso muito parecido com voce. Sempre bom de ouvir e ler!
Joomla Article about 4 years ago
Muito bom esse material sobre essa grande banda brasileira!!! Goste muito,sensacional!! longa vida ao rock progressivo brasileiro!!!
Joomla Article about 4 years ago
Roberto Giovani posted a comment in Karisma
Um sonho so e bom quando se sonha junto. Ola Heli! Ola Rudi! Realmente vocês foram the best! Beijos e abraços de seu eterno amigo Roberto!! Rock & Roll jamais morrera pois o Karisma é uma das bandas que não deixam isso acontecer ! PAZ & AMOR SEMPRE!!!!
Joomla Article about 4 years ago
Gil Souto posted a comment in Rock Brasileiro (1974/1976): Parte III
Muito bom ! Quero ler e reler . Importantíssimos registros! Tava procurando algo sobre o Sérgio Bandeira ( do Bexiga e me deu o primeiro ácido! ) e de uma Banda que se chamava Alpha Centauri !!! Bons tempos de intensa e prazerosa loucura!
Joomla Article about 4 years ago
Caras.... estudei com ele no início dos anos 90 e com certeza um grande músico e mestre , tive a honra de acompanhar algumas sessões de gravação de seu primeiro CD e foram lições de profissionalismo e talento!!!!! Abraço Indio Manuel Marquez Prior
Joomla Article about 5 years ago
Rodolfo Ayres Braga posted a comment in Raimundo Vigna: Memórias de um b(r)oqueiro
Querido Irmão Vigna conterrâneo,amigo desde 1970...Superb batera!
Joomla Article about 5 years ago
Ouvi pela primeira vez aos 16 anos ( em uma fita k-7 que foi copiada pela molecada roqueira da cidade de Cataguases, no começo dos anos 90). Quatro anos depois consegui um CD também pirata... somente hoje aos 44 anos consegui o CD original ( presente atrasado do dia dos pais - meu filho tem 17 anos)... Simplesmente fantástico, talvez o mais rock and roll de tudo que já foi lançado no Brasil...
Joomla Article about 5 years ago
Nathan Bomilcar posted a comment in Scarlet Sky
Saudoso primo Guto Marialva. Deixou sua marca!
Joomla Article about 5 years ago
Eliana posted a comment in Tony Osanah: Um argentino bem brasileiro
Olha só... A Internet é uma mãe... Eu era superfã da Banda Raíces de América... Sou coetânea do Tony. Não sabia que ele tem essa história de vida tão linda. Eu gostaria de desenvolver um projeto desse tipo mas não sou boa o suficiente nisso. Fiquei emocionada com a história dele dando aula de música para os jovens presos. A música faz esse milagre. É por isso que amo uma boa música e, se eu pudesse, seria uma... Deus o abençoe!
Joomla Article about 5 years ago
Matéria bacana! Uma pena perder material das bandas e do evento...
Joomla Article about 5 years ago
Meu nome é Sérgio, eu sou o baterista da banda Vienna ( atualmente BLACK VIBE) e gravamos a música Sexo Arrogante, que foi feita 2 horas antes de entrarmos na sala de gravação.
Joomla Article about 5 years ago
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