Barbieri: O ensaio do Grito Primal!
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Barbieri cantando. Todas as fotos são de Andrea Barbieri.
O ensaio do Grito Primal!
Escrito por Antonio Celso Barbieri
Sábado, 31 de agosto de 2013
O que, para uns seria apenas mais um ensaio, transformou-se para mim, numa experiência estranha!
Tenho mais de 60 anos e, desde que me lembro, sempre vivi a música intensamente. Entretanto, como músico, nunca tinha ensaiado com outra pessoa numa sala especialmente alugada para isto. Nunca sai de casa, sempre fiz música sozinho.
Já fazem mais de 10 anos que tenho uma guitarra Jackson mas, só à alguns anos atrás, quando consegui meu primeiro violão Fender, foi que comecei praticar com mais frequência. Desde o começo, interessei-me mais pelos solos do que pelos acordes e como resultado, assim como no piano, sou muito fraco harmonicamente mas, passeio com uma certa desenvoltura, tanto pelas teclas como pelo braço da guitarra. Tenho muitos problemas para "escutar" o ritmo e, tocar juntamente com outra pessoa, para mim, foi sempre um grande desafio.
A verdade é que, quando você vive uma coisa intensamente, quando a coisa é orgânica, tipo parte do seu ser, não ha como evitar o inevitável. Sabia que um dia teria que enfrentar ao lado de outra pessoa, minhas limitações e, travar esta batalha com este "monstro enigmático", com este "tempo" que nunca escuto ou esta "nota" que nunca alcanço.
O duro é perceber que, para muitas pessoas, a música vem tão naturalmente. Este povo nem percebe a importância e a sorte de terem nascido com este dom mágico. Mais triste ainda, é ver muitas delas desperdiçarem seu talento com mensagens pobres, puramente comerciais e apenas visando lucro. Sempre que isto acontece, lembro-me daquela frase: "Deus só dá asas para quem não sabe voar". Como Antônio Salieri no filme Amadeus sinto a confirmação de que o inferno é aqui mesmo na Terra e se existe algum ser "todo poderoso" ele é realmente muito cruel! Imaginem só, dar para uma pessoa o coração do artista mas não a habilidade! Isto é a maior maldade que um "Deus" poderia fazer!
É uma apunhalada direto no coração do artista. É uma dor que só pode ser sentida por aquele que sofre. Nada poderia ser mais solitário do que isto. Como disse Huxley: "Os mártires penetram na arena de mão dadas mas morrem sozinhos!", "os amantes tentam em vão unir seus êxtases isolados". Nestas horas, me sinto como uma ilha!
Marcelo e Barbieri no ensaio, em processo de aquecimento...
Tenho aqui em Londres um amigo músico de longa data, chamado Marcelo Carvalho. Ele é um bom baterista que, também toca um pouco de guitarra, baixo e até sax. Ele tem esta grande habilidade para "multitasking" típica dos bateristas que podem fazer várias coisas ao mesmo tempo. Além disso ele tem uma noção de tempo muito boa. Então, conversei com ele e pedi para ele acompanhar-me nesta aventura onde alugaríamos uma sala de ensaio para tocarmos juntos.
Apesar de ter um bom equipamento aqui em casa, queria "abrir o gás" e escancarar o volume da guitarra. Montei uma pedaleira para a guitarra muito legal que inclui um wah-wah Cry Baby (Dunlop), uma Distoção MXR M-1-4 (Dunlop), um Compression Sustainer CS-3 (Boss) e um Noise Supressor NS-2 (Boss).
Preparei-me com ansiedade para este dia. Imprimi várias letras que andei escrevendo. Juntei um arsenal de equipamentos para levar: A guitarra Jackson , meu violão eletro acústico Fender, o estojo como os pedais, meu teclado de palco Yamaha DX100 e o TC-Helicon que é um harmonizer para a voz e criador de loops muito útil.
O estúdio fica bem perto de casa e foi alugado por 4 horas (um sábado, das 11 às 3 da tarde). Aliás, o pagamento do aluguel da sala de ensaio, acabou sendo um presente do Marcelo (Thanks man!).
O estúdio é realmente muito bom...
A sala já tinha 3 caixas Orange equipadas com dois cabeçotes da mesma marca e um cabeçote Marshall. Além disto, também já tinha uma bateria e um P.A. para o vocal. No final, gostei mais do cabeçote Marshall.
Nem preciso dizer que, abri mesmo o volume e fiz o maior barulho. Estava realizando um sonho de toda um vida mas, ao mesmo tempo batendo de frente com minhas próprias limitações.
Uma vez um psicólogo me disse que aqueles que tem a emoção mais aflorada, que sofrem as dores do mundo, que sabem mais, naturalmente também sofrem mais. Pior ainda é quando temos um senso de autocrítica mais aguçado! Bom, nem preciso dizer que quem sofre estas emoções caminha rapidamente para a depressão...
No filme Matrix um dos "acordados" desabafa dizendo: "Eu sei que este bife não existe, eu sei que esta realidade é uma fantasia mas… como este pedaço de carne está delicioso! IGNORÂCIA É UMA VIRTUDE! Me liga de novo, não quero saber de nada, lembrar nada, quero "voltar" como um ator famoso ou coisa parecida!"
Bom, só posso concordar! Também acho que, em certos casos, ignorância é uma virtude pois saber o que é perfeição mas nunca conseguir alcança-la é realmente trágico!
Mas, voltando ao ensaio, no final, já sem a camiseta, pluguei o teclado Yamaha DX100 na pedaleira e como ele é pequeno e tem uma alça comecei toca-lo e usa-lo como se fosse uma guitarra. O som que saia das caixas era incrível! Saia naturalmente, sem nenhum esforço e com o volume no talo, casando perfeitamente com os rítmos que Marcelo tocava.
Como o microfone já estava ligado e bem perto, comecei gritar: "Where is my baby?" (Onde está a minha garota?). Quando digo gritar, eu quero dizer gritar mesmo! Gritei como nunca gritei antes, com desespero como se estivesse perdido. Na verdade, naquele momento, "Onde está a minha garota?" significava qualquer coisa mais profunda tipo, "onde está a minha vida", "o que estou fazendo aqui", etc.. Agora mesmo, toda aquela emoção ainda esta presente dentro de mim, se fecho os olhos, parece que vejo o sangue correndo desesperado pelas minhas veias, o suor escorrendo na testa, cheiro de suor forte, como se não tivesse tomado banho à uma semana, físico, brutal, tribal, eu viajando para um tempo primitivo, tenho medo e preocupo-me se Marcelo vai achar que estou louco, ou doente, mas, não posso mais parar, grito, gemo e solto a dor do blues que eu nem sei bem de onde vem e porque sofro tanto!
Quando terminamos, estava totalmente acabado, física e emocionalmente. As pernas estavam moles, me sentia fraco e sentia que se eu tivesse continuado por mais uns minutos teria desmaiado. Lembrei-me dos adeptos do Grito Primal e de John Lennon fazendo seus experimentos vocais com Yoko Ono. Quando saímos do estúdio, já ia esquecendo o estojo com a guitarra fora do carro e, já dentro do carro, quando fui beber a água da garrafa plástica, tremendo, molhei toda a camiseta. Claramente, a experiência, de alguma forma dificil de colocar em palavras, acertou em algum ponto fraco que andava bem escondido...
Cheguei em casa passado, rouco e com a garganta ardendo. Almocei como um autômato e fui para cama dormir algumas horas. Ainda hoje de manhã acordei "torto" com a experiência do dia anterior. Como disse, o que para uns seria apenas um simples ensaio, para mim foi uma experiência onde a vida e a morte, a dor e o prazer, a sanidade e a loucura, pareceram estar separados por uma linha muito tênue. O incrível é que eu não estava sobre o efeito de nenhuma droga!
Gostaria de ensaiar e enfrentar este "monstro" novamente mas, confesso que fiquei é com um certo receio de enfrentar este "Barbieri" outra vez! Tem por aí, álgum psicólogo de plantão que possa me explicar o que foi que aconteceu?
Antonio Celso Barbieri
Vamos lá! Que é tudo rock'n'roll...