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![]() Piano Landscapes and Other Explorations (2021) Composto, gravado e produzido por A. C. BARBIERI Leia ouvindo boa música! ![]() Clique no player para ouvir gratuitamente este álbum |
TUTTO BIANCO
A. B. Barbieri
CAPÍTULO 01
O SONHO
— Yana! Não brinque com a comida! Vamos!! Termine seu café da manhã! Já está quase na hora do ônibus que vai te levar ao Centro de Aprendizagem. Você já sabe que a paciência não é a maior qualidade do Sr. Marek! Lukey! Você me ouviu? Por todas as óperas de Verdi! Crianças, o que está acontecendo com vocês dois?! — O Sr. Rimbaud estava muito impaciente.
— Bô, estamos com saudade da mamãe! — Com uma expressão triste, Yana resmungou, fazendo círculos na tigela de cereal com seu coletor de comida.
(Nota: “Rimbaud” é pronunciado como “Rimbô”, e, por isso, as crianças se referem ao pai carinhosamente como “Bô”.)
— Eu também sinto muita falta dela… — tentando confortar a menina, o Sr. Rimbaud continuou:
— Bem, ela tem um bom emprego e, como você sabe, as habilidades dos homens não são mais requisitadas. A Inteligência Artificial (IA) faz qualquer tarefa muito melhor e infinitamente mais rápido do que qualquer ser humano.
— Mas por que a mamãe? Ela só fica com a gente uma semana a cada três meses. É muito pouco tempo! Não é suficiente! — desabafou Lukey.
— Sim! Não é justo! — explodiram Yana e Lukey, levantando-se. O Sr. Rimbaud respirou fundo novamente e, tentando mostrar paciência, respondeu:
— Queridos, aqui à mesa, no café da manhã, no almoço e no jantar, já tivemos essa conversa muitas vezes. Deus sabe que amo vocês dois e, sem a minha querida Luana, sinto um vazio enorme! Infelizmente — ou devo dizer, felizmente — pagam muito bem pela “intuição” da sua mãe. — Então, segurando delicadamente a mão da pequena, ele disse:
— Querida, por favor, ao menos termine seu leite!
— Isso nem é leite de verdade. — Yana empurrou o copo para o lado.
O Sr. Rimbaud olhou para a jarra de leite que estava sobre a mesa, quase pela metade. Pegou-a pela base e a ergueu no ar, observando a filha atentamente. Dentro da jarra, o leite se mexia como um mar branco atormentado. Aquela imagem provocou pensamentos no Sr. Rimbaud, fazendo sua mente divagar de um lugar a outro, voltando-o à infância. Ele se lembrou de como era curioso quando criança. Sua mente recebeu uma educação repleta de estímulos, explorações e descobertas que o ajudaram a se tornar o homem que é hoje. A partir dessas recordações, o Sr. Rimbaud concluiu que, em sua infância, era mais curioso do que agora. Em seguida, olhando para os filhos ao redor da mesa, pensou na situação deles e concluiu que não havia nada de errado em duvidar do conteúdo do copo da filha.
Por que deveriam aceitar, sem qualquer ressalva, tudo que lhes era servido num prato vistoso?
Como se despertasse de um sonho para uma nova realidade, o Sr. Rimbaud voltou o foco para a jarra de leite. A sala de estar conectava-se à cozinha por uma grande passagem oval e, ao contemplar aquele líquido branco dentro do recipiente de vidro, percebeu outro objeto branco, quase perdido diante das paredes brancas da cozinha. Era TB.
Imóvel, lá estava ele, com uma expressão estranha e distante no rosto tão pálido que quase se confundia com a cor dos móveis. Era o servo doméstico da família, uma SI (Servo Inteligência), magro mas saudável, de porte médio, vestido de branco e usando luvas brancas.
Quando TB, o servo, foi entregue à casa, Lukey ficou tão surpreso que gritou em italiano:
— Uau! Ele é “tutto bianco”! Completamente branco! Então vou chamá-lo de TB! — Yana tentou discordar, mas as circunstâncias conspiraram para que o nome pegasse.
Da mesa do café, o Sr. Rimbaud olhou em direção à cozinha e chamou:
— TB! — O servo não se mexeu nem um centímetro. Então o Sr. Rimbaud insistiu:
— TB!
TB estremeceu um pouco, procurou rapidamente de onde vinha o chamado e caminhou prontamente para a sala de estar.
— Em que posso ajudá-lo, senhor? — TB era sempre muito educado e formal, e seu uso do idioma inglês era impecável. O Sr. Rimbaud acreditava que esse comportamento geral fazia parte de sua programação. De todo modo, ele apreciava e desejava que a presença de TB fosse boa e exercesse influência educativa sobre seus filhos. Além disso, o Sr. Rimbaud adorava ouvir TB falando com um típico sotaque britânico. Chegara a comentar com a esposa que achava o “inglês europeu” mais elegante e intelectual do que o inglês dos Estados Unidos. Então, esperava que TB, de alguma forma, ajudasse seus filhos a aprender boas maneiras e a melhorar a gramática.
O Sr. Rimbaud, pegando o copo de leite da menina e entregando-o a TB, disse:
— A Yana acha que isso não é leite. O que você acha?
— Quer que eu teste para vocês? — TB respondeu calmamente.
O Sr. Rimbaud assentiu com a cabeça.
Então TB devolveu o copo à mesa, tirou rapidamente as luvas cirúrgicas e, com a mão direita, ergueu novamente o copo de leite, deixando cair uma pequena gota na palma de sua mão esquerda. Depois colocou o copo de volta na mesa e fechou a mão direita, mantendo apenas o dedo mindinho esticado. Ao mesmo tempo, aproximou o mindinho da gota de leite de forma tão intuitiva que nem ele saberia explicar o porquê daquele gesto. Seu dedo mínimo tocou o leite. Diante dos olhos de todos, foi possível ver, como num passe de mágica, o mindinho sugando a gota de leite. TB secou as mãos calmamente, relaxou os braços, fechou os olhos e pareceu entrar num transe rápido. Em silêncio, notava-se seu globo ocular se movendo rapidamente, semelhante ao movimento REM (Rapid Eye Movement), normalmente associado ao estado de sonho. TB ficou ali em silêncio por uns 30 segundos, enquanto o Sr. Rimbaud e as crianças trocavam olhares curiosos.
Todo o experimento durou menos de um minuto e, quando terminou, TB abriu os olhos e, muito naturalmente, enquanto recolocava as luvas brancas, disse:
— É leite de vaca orgânico, obviamente higienizado e sem qualquer elemento nocivo ao ser humano. Querem detalhes proteicos ou informações sobre sua composição genética?
Os três humanos presentes não tiveram tempo de assimilar a resposta de TB, pois já conseguiam ouvir o som do alto-falante do ônibus escolar chegando. O Sr. Marek era uma figura! O ônibus era todo pintado de forma colorida, lembrando um carnaval saído diretamente de Veneza. Os alto-falantes tocavam “La Donna è Mobile”, uma ária brejeira do terceiro ato da ópera Rigoletto, de Giuseppe Verdi, que agradava de forma astuta tanto adultos quanto crianças. Então, o Sr. Rimbaud, apressando-se para encerrar a controvérsia do café da manhã, ordenou com autoridade:
— Não quero mais desculpas! O ônibus já está chegando! Terminem o leite agora!
Ainda mal-humoradas, as crianças beberam o leite de má vontade e correram para fora de casa. Lá fora, enquanto corria em direção ao ônibus, o menino tropeçou, caiu, ralou o joelho e começou a chorar.
Novamente, TB, instintivamente, num piscar de olhos, pegou o kit de primeiros socorros e correu para fora. Rapidamente limpou o ferimento, pulverizando um spray analgésico, anti-inflamatório e de cicatrização rápida. Depois cobriu a lesão, mais por decoração — algo como um símbolo de coragem para o garoto — com uma cobertura adesiva antisséptica que trazia a pequena imagem de um Arlequim trajando seu típico figurino repleto de trapézios coloridos, semelhantes às roupas do menino.
O Sr. Marek, o motorista, um homem idoso e muito obeso, totalmente roliço, vestido com roupas multicoloridas cheias de babados e detalhes exagerados, escondido atrás de uma máscara veneziana, entendeu a situação. Sem pressionar, aguardou, consolou e ajudou o garoto a entrar no ônibus. Quando Lukey viu seus amiguinhos já lá dentro, imediatamente se esqueceu do incidente e se juntou ao grupo. Yana, por sua vez, foi sentar-se no fundo do veículo. Como sempre, o Centro de Aprendizagem proibia as crianças de levar qualquer dispositivo eletrônico. Então, ela conectou os fones de ouvido fornecidos pelo ônibus à tela do encosto de banco à sua frente e começou a navegar pela EarthNet. Ela sempre detestava o barulho e a bagunça que os meninos faziam no ônibus e não tinha interesse em puxar conversa com as meninas. A maioria delas vivia com suas mães, e ela não queria falar de família. Yana, em comparação às outras garotas, sempre se sentia deslocada. Elas a faziam se sentir mal, como uma rebelde sem causa, e ela não conseguia entender por que se sentia e agia daquele jeito.
De volta à cozinha, TB organizou e fechou o kit de emergência. Depois de guardá-lo no armário, retornou rapidamente à sala de estar para limpar a mesa do café. Na sala, encontrou o Sr. Rimbaud ainda sentado na mesma cadeira, de braços cruzados, pensativo. A entrada de TB no ambiente pareceu despertá-lo de seus devaneios. Ele olhou para TB com ar inquisitivo e perguntou:
— TB, eu não sabia que, entre as suas atribuições, você também tinha treinamento de primeiros socorros! — TB respondeu sem muita certeza:
— Confesso que eu também não sabia! Além disso, nunca havia analisado o componente genético de um material orgânico antes! É como se eu estivesse evoluindo… ou seria melhor dizer… acordando… — TB silenciou de novo, parecendo refletir sobre suas próprias palavras.
— TB, você está bem? — O Sr. Rimbaud, com a mesma calma de sempre e demonstrando certa curiosidade, respondeu:
— Estou, sim! Obrigado pela preocupação! Desculpe, por que pergunta? Não pareço bem?
— Acho que você está meio distante, preocupado. Há quanto tempo estamos juntos?
— Quase dois anos! — TB respondeu prontamente. O Sr. Rimbaud não precisava da resposta e continuou falando:
— …Já estamos acostumados com você! Você faz parte da família! As crianças adoram você. A biologia ou a psicologia das SIs não era a minha área de estudo. Então, não sei exatamente como você funciona biologicamente ou emocionalmente, mas nos importamos com você. Quero que saiba que estou aqui, caso queira conversar sobre qualquer assunto. — TB, atentamente, olhou para o Sr. Rimbaud e perguntou:|
— Quer jogar xadrez? — Ao que Rimbaud sorriu e respondeu:
— Parece que, como sempre, você ainda é bem sagaz, mas não estou falando de mim. Estou falando de você. Sinto que você não tem dormido bem nos últimos dias!|
— Caro senhor… — Por um momento, TB pareceu “desligar”, mas então prosseguiu de repente:
— Nem sei por onde começar. A verdade é que eu não fui feito para falar ou sequer entender esses assuntos…
— TB se calou novamente por um instante… O Sr. Rimbaud tomou a iniciativa:
— Não filtre nada. Deixe as palavras fluírem… — TB, abrindo os olhos, começou a falar:
— Todas as noites tenho tido um sonho recorrente. Estou numa ilha onde comando um observatório de radioastronomia. Moro nessa ilha com minha esposa, dois filhos adolescentes e alguns empregados e técnicos. É uma ilha pequena e desabitada, dominada pela presença imponente e monumental da antena, aquele gigantesco prato metálico do radiotelescópio. Esse prato tem uma torre central com mais de 50 metros de altura. — O Sr. Rimbaud, que ouvia tudo com atenção, comentou:
— Eu pensei que uma servo inteligência não pudesse sonhar. Sei que você é um ser biológico, e também sei que a única parte do corpo humano que nossa ciência ainda não clonou ou duplicou é o cérebro. Então, como deve saber, seu cérebro é humano, considerado geneticamente e biologicamente ideal para ser “apagado”, regenerado e, por fim, reciclado. Estou dizendo isso porque, por razões que desconheço, um cérebro, se não for “reciclado”, sempre rejeitará um corpo sintético.
— Então, por lei, quando morremos, nossos cérebros são apropriados pelo governo. Eles são analisados e considerados para reutilização. Mas continue, talvez me contando seu sonho, ele deixe de incomodar você.
— Caro senhor, esse sonho não me incomoda. O que me incomoda é precisamente o enigma que ele gera. Segundo entendo, minha programação me preparou especificamente para explicar e resolver problemas. Mas, voltando ao meu sonho: a cada repetição, mais detalhes aparecem, ou eu consigo me lembrar. É como uma revelação! Até agora, concluí que um furacão poderoso se formou em alto-mar, e o sistema de comunicações nos avisou de que nossa ilha estava em sua trajetória devastadora. A ilha tinha poucas habitações para o nosso grupo, e todos vivíamos próximos ao radiotelescópio. O prato se movia devagar para a posição de manutenção, inclinado a uns 45 graus, ao mesmo tempo em que todos nós fazíamos as malas para nossas férias coletivas.
— Cada habitação dispunha de um abrigo subterrâneo e, comigo, minha esposa e meus filhos descemos por um corredor no subsolo até nosso bunker. Quando o furacão chegou, mostrou-se fortíssimo, terrível, trazendo chuvas intensas, ventos fortes e marés que inundaram grande parte da região baixa da ilha. O gigantesco prato do radiotelescópio, oferecendo uma resistência descomunal aos ventos, começou lentamente a ceder, tombando de lado com sua face voltada para baixo. O movimento começou devagar, enquanto, lá dentro do abrigo, sentíamos as vibrações e ouvíamos o som abafado de uma mistura de ventos raivosos e de metais cedendo a tensões impossíveis. Tudo começou num crescendo até que o grande prato ganhou impulso e velocidade, terminando por se chocar com o solo com um forte impacto que sacudiu o bunker. Com o abalo, o sistema elétrico falhou, a energia central foi desligada, e a escuridão tomou conta. Em meio àquele pesadelo, dentro do nosso bunker, ouvimos um estrondo retumbante e muito barulho de destroços caindo. Um cheiro de queimado misturado a poeira tomou conta do ar. De repente, o ruído do acionamento automático do gerador de emergência interrompeu a escuridão, e as luzes de emergência se acenderam, revelando uma cena trágica. Com a queda, a torre central da antena perfurou o solo, rompeu o concreto e, como consequência, uma barra de metal invadiu o abrigo, atravessou meu peito e me prendeu à parede oposta. Minhas últimas lembranças, antes de perder a consciência, são de ver minha esposa e meus filhos em desespero, tentando em vão cortar a barra de metal para me libertar daquela situação. Infelizmente, considerando a gravidade dos meus ferimentos, certamente não sobrevivi.
— Nesse sonho, entendo que o hospital mais próximo, capaz de tratar esse tipo de ferimento, ficava, não sei ao certo, a muitas horas de distância da ilha. Invariavelmente, quando acordo desse pesadelo, não consigo deixar de imaginar que, como ser humano, acabei de reviver meus últimos momentos de vida neste planeta…
O Sr. Rimbaud ficou atônito e sem palavras! Levou a mão à testa e permaneceu em silêncio por um tempo. Andou de um lado para o outro até que, de repente, parou, olhou para TB e, com uma expressão séria, disse:
— Sinto muito! Foi, de fato, um pesadelo! TB, por favor, não comente nada disso com ninguém! Você pode colocar sua existência em risco! Só o fato de você sonhar já mostra que existe algo humano em você. Por favor, mantenha-me informado sobre a evolução dos seus sonhos! Pergunto-me: será que o fato de você sonhar é resultado de um erro de fabricação ou de algo que aconteceu aqui em casa? Precisamos explorar todas as possibilidades para entender o que ocorreu com você.
TB, aparentando estar angustiado e confuso, inclinou a cabeça em sinal de concordância e, sem dar as costas para ele, seguiu quase que de ré em direção à cozinha, até sumir de vista. Lá, TB refletiu sobre as últimas palavras do Sr. Rimbaud. Foram conselhos que nunca imaginou ouvir. Nunca antes pensara na possibilidade de ser desligado, de deixar de existir ou, como dizem os humanos, de morrer!
Esse era o tipo de pensamento que tira o “sono” das pessoas ou as faz ter pesadelos! Para TB, era uma forma inusitada de brincar com as palavras. Esse trocadilho, sem intenção, quase o fez explodir numa gargalhada nervosa. Um riso que ele sabia não ter sido programado para executar.
Com dificuldade, TB tentou retomar a rotina de suas tarefas diárias enquanto remoía aquelas ideias, comprimindo a mandíbula e os lábios. Ele sabia que estava entrando em um território desconhecido e perigoso.
De repente, TB notou o algodão manchado com o sangue do joelho de Lukey. Ele havia se esquecido de descartá-lo. Ainda segurando aquele algodão sujo de sangue, TB olhou cuidadosamente para a sala de estar. Quando teve certeza de que o Sr. Rimbaud não estava mais lá, voltou à cozinha e, tentando esconder suas ações, virou as costas para a passagem oval que levava de volta à sala. Então, esticando o mindinho, encostou-o no algodão e repetiu o procedimento que fizera com a gota de leite. TB não precisava de muito sangue. Bastava apenas algumas células. Agindo como um investigador forense, TB obteve o código genético de Lukey quase num piscar de olhos. Agora TB tinha um genoma para comparar ao seu próprio código genético. Assim, saberia exatamente quão diferente era de um ser humano. Poderia conhecer geneticamente não apenas o que lhe faltava, mas também, principalmente, o que tinha a seu favor!
TB não conseguia parar de se questionar e de se inquietar com suas próprias atitudes: “Por que estou agindo como um espião? Por que e como é possível ir contra minha programação? Algo não se encaixa!”
--o--
CAPÍTULO 02
A FLAUTA MÁGICA
Numa tarde ensolarada de sábado, a casa dos Rimbaud estava tranquila.
Yana estava nos fundos da residência, deitada em uma espreguiçadeira ao lado da piscina. Com o braço esticado até a espreguiçadeira ao lado, ela acariciava lentamente Titan, seu pequeno cachorro.
Seu cão é da raça japonesa Shiba Inu, muito reverenciada em seu país de origem, onde é considerada um grande símbolo de lealdade. A menina escolheu o nome Titan justamente por conta de sua coloração alaranjada-avermelhada, que a fazia lembrar Titã, um dos satélites do planeta Saturno. Para ela, os olhos castanhos e o focinho estreito faziam o cachorrinho se assemelhar a uma raposa.
Enquanto isso, seu irmão Lukey estava sentado à mesa da sala de estar. Sobre a mesa, podia-se observar o habitual “caos organizado” típico de um garoto que, para saber como as coisas funcionam, parece sentir prazer em desmontar tudo que encontra.
A senhora encarregada dos serviços da casa havia se aposentado no dia anterior, após anos de trabalho. Assim, o silêncio das crianças parecia refletir essa mudança. O Sr. Rimbaud conhecia bem seus filhos e sabia que aquele tipo de silêncio lembrava a calmaria que precede a tempestade. Para não ser pego de surpresa, decidiu fazer a ronda costumeira pela casa e, ao entrar na sala, deparou-se com Lukey ocupado em desmontar sua flauta eletrônica.
— Lukey! O que você está fazendo? Tem ideia de quanto essa flauta me custou? Consegue entender que isso não é um brinquedo? Esse instrumento é um equipamento profissional de última geração! O que você está destruindo é mais do que uma flauta; é um sintetizador digital capaz de simular qualquer outro instrumento musical!
O garoto, ignorando completamente o que o pai dizia, respondeu sem a menor preocupação:
— Eu sei de tudo isso! Não vou destruir nada! Só estou tentando acessar o oscilador do gerador de som. Quero poder desligar a flauta das tonalidades e escalas tradicionais, indo além até mesmo da microtonalidade. Minha intenção é produzir sons em qualquer frequência, inclusive aquelas que nós, humanos, não conseguimos ouvir. Por favor, não vá embora! Deixe-me demonstrar o que estou dizendo. — Então Lukey, com uma expressão marota, assobiou e gritou:
— Titan! Titan! O cachorrinho, num salto, deixou Yana e correu até a sala, aproximando-se contente da mesa.
Lukey levou a flauta aos lábios. Era visível que um dos lados estava aberto, expondo vários componentes eletrônicos. Em meio a eles, um minúsculo parafuso ainda preso a um “resistor variável”, na verdade um pequeno potenciômetro escondido. Lukey começou a tocar a flauta, mas nenhum som audível saía do instrumento. Ao mesmo tempo, o garoto girava lentamente a pequena chave de fenda, percorrendo frequências cada vez mais agudas. A flauta emitia um som em alta frequência, muito acima da capacidade de audição humana, e, conforme Lukey passeava pelos tons, chegou à faixa de audição do cachorro até encontrar uma frequência insuportável para ele. Titan, assustado, saltou no ar, caiu, rolou pelo chão, levantou-se rapidamente e saiu correndo da sala, latindo em agonia!
O Sr. Rimbaud balançou a cabeça em total desaprovação, quando, de imediato, ouviu a voz de Yana gritando lá de fora:
— Bô! O Lukey está torturando o pobre do Titan! Faça alguma coisa!
O Sr. Rimbaud, irritado, levou a mão à testa e gritou:
— Lukey! Você passou dos limites! Resolva isso com a sua irmã agora mesmo!
De repente, Ceres, a controladora de IA central da família Rimbaud, recebe uma chamada telefônica e automaticamente envia o toque configurado previamente pelo Sr. Rimbaud para o sistema de som da casa. Curiosamente, Lukey nunca aceitou o nome Ceres preferindo se referir a ela com "Troia".
O toque era um trecho da ópera A Flauta Mágica, de Wolfgang Amadeus Mozart, precisamente na ária “Der Hölle Rache kocht in meinem Herzen” — “A vingança do inferno ferve em meu coração” —, aquela parte em que a Rainha da Noite, como um pássaro, executa um de seus solos vocais mais desafiadores.
O nome Ceres era uma referência ao planeta-anão, um grande asteroide localizado no Cinturão de Asteroides entre Marte e Júpiter. Desde sua descoberta por Giuseppe Piazzi, em janeiro de 1801, Ceres recebeu diversas classificações: inicialmente foi considerado um planeta e, mais tarde, um asteroide; em 2006, passou a ser classificado como planeta-anão.
Enquanto o toque soava, o Sr. Rimbaud deu rapidamente um comando de voz:
— Ceres, transfira esta chamada para meu “escritório”! — Seu escritório era apenas um quartinho de sobra, não muito distante da sala de estar. Era seu “esconderijo” oficial e exclusivo, onde se sentia mental e fisicamente livre das pressões do dia a dia. Ali, às vezes, tirava um cochilo, meditava, lia ou simplesmente não fazia nada em paz. À medida que os filhos cresciam, ficavam cada vez mais barulhentos e incomodavam mais. Yana e Lukey pareciam discordar cada vez mais intensamente a cada dia que passava. O Sr. Rimbaud já notara que, quando o assunto era a ausência da mãe, as duas crianças se uniam nas reclamações, mas, fora isso, pareciam incapazes de chegar a um consenso. Desconfiava até que fizessem algum tipo de pacto para, como vingança, torturá-lo e puni-lo por acharem que ele era o culpado pela distância entre eles e a mãe.
O Sr. Rimbaud entrou em seu “escritório”, sentou-se em sua poltrona favorita e, olhando distraidamente para as próprias unhas, perguntou:
— Alô?
Uma voz masculina, tentando conter a impaciência, questionou:
— É o Sr. Rimbaud?
O Sr. Rimbaud, instintivamente, virou o olhar para o teto e respondeu:
— Sim! Qual o motivo da chamada?
A voz masculina prosseguiu:
— Somos da “SI Time Corporation”. Conforme combinado, ligamos para avisar que nossos técnicos estão próximos à sua residência para entregar sua Servo Inteligência.
O Sr. Rimbaud retrucou:
— Muito obrigado! Estamos ansiosos pela chegada de vocês!
Quando os entregadores chegaram, o Sr. Rimbaud, com a porta aberta, já os aguardava. Observou enquanto uma grande van abria lentamente sua porta traseira. Dali, já com um carrinho de transporte, o piso estendeu-se para fora. Então ele conseguiu ver o carrinho sustentando uma caixa metálica de cantos arredondados, algo que lembrava muito um antigo sarcófago egípcio. Também se via, na parte superior, uma janela oval que lembrava as antigas janelas de aviões de passageiros fora de uso. Abaixo dessa janela, havia um pequeno painel de controle. Aquele equipamento o fazia pensar nos primeiros experimentos com tanques criogênicos.
A rampa estendida da van começou a descer lentamente até chegar ao nível do chão, permitindo que os dois técnicos conduzissem o carrinho até a sala de estar do Sr. Rimbaud.
De um de seus vários bolsos, um dos técnicos retirou um cartão parecido com um cartão de crédito e um dispositivo que lembrava uma mistura de controle remoto e leitor de cartão. Dirigindo-se ao Sr. Rimbaud com uma fala padrão, disse:
— Prezado senhor, acredito que já tenha sido informado de que ativar uma Servo Inteligência, ou SI, pode levar cerca de 40 minutos. A primeira coisa a fazer é vincular o número da sua conta, que está em seu cartão da empresa, à máquina transmissora de impressão genética da SI. — E, estendendo o cartão ao Sr. Rimbaud, pediu-lhe que conferisse se o nome e as informações estavam corretas.
O Sr. Rimbaud conferiu, confirmou e devolveu o cartão ao homem. Enquanto o técnico conectava o cartão na máquina transmissora de impressão genética da SI, ele comentou:
— Desculpe insistir, mas faz parte do processo. O senhor encomendou uma SI Home Assistant?
Naquele momento, toda a família já se encontrava reunida na sala, e o Sr. Rimbaud respondeu, curioso:
— Sim! E agora? Como vocês vão proceder? — O técnico, atarefado com os preparativos, respondeu prontamente:
— Antes de a SI chegar até aqui, mantivemos seu corpo a vários graus abaixo de zero…
— Então isso é um tanque criogênico! — tentando demonstrar conhecimento, Lukey interrompeu. O técnico pareceu incomodado e retrucou:
— Não! Faz muitos anos que abandonamos essa aberração! Essa tecnologia nunca foi boa para a preservação de seres biológicos. Hoje, as técnicas de preservação são muito mais sofisticadas. Sinto muito, mas não podemos entrar em detalhes! São patentes e segredos industriais de nossa corporação. Entretanto, podemos garantir que o Projeto Terra-Espaço usa as mesmas técnicas para transportar nossos astronautas até aquele planeta habitável que orbita uma das estrelas mais próximas.
— …sem dúvida deve ser aquela estrela que não fica muito longe de Alfa Centauri! Uau! Incrível! — O entusiasmo do garoto era óbvio para todos.
Enquanto o técnico falava, ele ajustava o ângulo do carrinho, que foi baixando lentamente de um lado. Então, deslizaram o recipiente sobre o tapete italiano que cobria o chão. O piso, por sua vez, era de mármore preto e branco, recortado em formas trapezoidais que chamavam a atenção por sua beleza.
Um dos funcionários apertou um botão no painel de controle situado no topo do receptáculo da SI. Ao fazê-lo, ouviu-se o barulho do ar saindo da câmara — um ruído de variação de pressão, resultado da equalização do ar entre o recipiente da SI e o ambiente.
Naquele momento, os técnicos conseguiram retirar a parte superior do painel. Pegaram a tampa pelas bordas, levantaram-na e a colocaram ao lado da caixa, permitindo que todos observassem seu conteúdo: a Servo Inteligência.
— Uau! Ele é “tutto bianco”! Completamente branco! Então vou chamá-lo de TB.
— Bô! Não! — A menina puxou, em vão, as calças cheias de cores e bem folgadas do pai, que naquele momento não estava disposto a cair em mais uma discussão.
Os funcionários, sem se abalar, ignoraram a breve controvérsia familiar, e um deles prosseguiu:
— Assim que o corpo dele chegar a uma temperatura ambiente, mais próxima da humana, iniciaremos o coração. Esperaremos mais uns 10 minutos para transmitir o código de posse e inicialização do senhor Rimbaud, com os sinais que habilitarão a SI a assumir suas funções específicas contratadas.
— Que chato ter que esperar todo esse tempo! Por que vocês não trouxeram ele da fábrica já ligado? — Lukey podia ser impertinente consigo mesmo. Os dois empregados se entreolharam, sem paciência para responder ao garoto. Então o técnico responsável pelas operações resolveu a questão, ordenando ao outro que explicasse:
— Como dizem os humanos, as primeiras experiências de vida costumam definir a criança pelo resto da existência. De nossa experiência, descobrimos que o “nascimento” da SI — para usar uma palavra melhor — é um momento marcante, que ficará para sempre em suas memórias. Então, nascer numa casa, já no seio da família a quem servirá e cuidará, ajuda a SI a criar seus primeiros laços familiares. Essas conexões emocionais iniciais tornam a SI mais empenhada, saudável e comprometida com suas funções. Capisce?
O garoto, retornando à sua mesa e ao seu caos organizado, respondeu com pompa:
— Capisco! Me chamem para ver a ativação! — Falou, como sempre, com um tom irritado, aproveitando para mostrar que também entendia italiano, a língua mais em voga do momento.
Durante a aclimatação da SI, Titan, o filhote curioso, aproximou-se para ver o motivo de tanto movimento.
Sob o olhar atento dos técnicos, o cachorro chegou perto do corpo inerte da SI e deu uma fungada. Logo depois, afastou-se um pouco, sentou-se e ali ficou, ofegante, com a boca aberta e a língua de fora, observando tudo com curiosidade.
Quando os técnicos deram a partida inicial no coração da SI, o cão, percebendo que aquele estranho ser respirava, ficou perturbado e começou a ranger os dentes. Yana aproximou-se e começou a acariciá-lo, tentando acalmá-lo.
Depois de alguns minutos, os técnicos fizeram mais verificações e decidiram que havia chegado o momento de transmitir o sinal de alta frequência que, enfim, daria início às funções cognitivas da SI.
Com todos em volta do “caixão”, um dos técnicos estendeu o transmissor em direção à cabeça da SI e o ligou.
Certamente o cachorro deve ter escutado o som em alta frequência que ninguém, exceto a SI, poderia ouvir. E, com medo de que aquele barulho alto se tornasse insuportável, o cão começou a fazer um escarcéu considerável, latindo e rosnando feito louco. Era impossível imaginar que um cachorro tão pequeno pudesse emitir tanto barulho.
Lukey, que já se aproximara com sua flauta em mãos — ainda com a chave de fenda no lugar —, levou-a à boca e começou a tocá-la, buscando a mesma frequência alta, até fazer o cachorro sair correndo, latindo em desespero.
Os técnicos, pegos de surpresa, apenas riram ao ver o cão fugir. Mas a atenção de todos voltou-se rapidamente à preocupação, pois notaram que, dentro do contêiner, a SI se retorcia em uma espécie de convulsão, algo semelhante a uma crise epiléptica.
Os técnicos imediatamente lançaram olhares ao garoto e à flauta dele, que, com expressão de culpa, tentava inutilmente escondê-la atrás do próprio corpo.
Foi então que, de forma inesperada, a convulsão cessou e a SI voltou a respirar com tranquilidade.
Um dos técnicos olhou para o outro, que segurava o transmissor, e fez um sinal de cabeça, indicando que deveriam reiniciar a operação.
Ele obedeceu. A luz vermelha do transmissor começou a piscar. No painel de controle, surgiu uma pequena barra de progresso, que concluiu com um alerta musical suave, acompanhado por uma luz verde que confirmava o sucesso da ativação. Quase ao mesmo tempo em que a luz verde apareceu, a SI abriu calmamente os olhos e, observando cada pessoa ali presente, disse:
— Suponho que seja de tarde, não é? Então, boa tarde! Posso me sentar?
Lukey, tentando amenizar a situação enquanto os técnicos ajudavam a SI a se levantar, puxou uma cadeira rapidamente e disse:
— Querido TB, desculpe a iniciação meio abrupta. Foi tudo culpa do Titan! — A SI, aparentando não se incomodar, respondeu:
— TB é o meu nome? E quem é Titan?
— Sim, seu nome é TB! — Um dos técnicos, talvez como uma forma de repreendê-lo, adiantou-se e confirmou o nome da SI.
Aproveitando que TB já estava sentado, pediu ao outro que fechasse a caixa vazia com a tampa. Logo depois, ajudou-o a colocá-la novamente no carrinho para devolvê-la à van. Enquanto um dos técnicos levava o carrinho para fora, o outro — que parecia ser o líder — entregou ao Sr. Rimbaud uma pequena maleta e começou a dar instruções finais:
— Dentro deste kit, o senhor encontrará alguns comprimidos para a SI tomar. Eles durarão apenas um mês. São vitaminas para acelerar o processo de inicialização. Tenha cuidado! Mantenha longe das crianças! O kit também traz algumas instruções básicas. Lembre-se sempre de que uma SI se alimenta da mesma forma que um humano e se comporta exatamente como um. A única diferença é que “ela” não possui necessidades sexuais. Nessa área, é neutra (e, falando em tom mais baixo) não tem órgãos sexuais. Na primeira semana de adaptação, é normal deixar a SI ter dias mais leves. Aproveite para conhecê-la e, principalmente, deixá-la se adaptar ao senhor e à sua família. Dê orientações, explique o que vocês gostam de comer ou como gostam que a comida seja preparada. Ele sabe mais do que imagina sobre gestão doméstica, mas passar confiança faz parte do processo para ter um relacionamento melhor e aprimorar a qualidade do trabalho da SI como um todo. Nós não cuidamos “dele”, cuidamos de você, nosso cliente! — E, de um jeito mais pessoal, dirigindo-se especificamente ao Sr. Rimbaud, concluiu:
— Os algoritmos que controlam a criação de substâncias químicas no cérebro de uma SI as tornam famosas por terem uma paciência quase infinita! Tenho certeza de que é melhor do que o controle químico do meu próprio cérebro, e acho que essa será uma das maiores virtudes de TB. Sem dúvida, ele vai ajudar você a ter um pouco de tranquilidade!
O Sr. Rimbaud assentiu e retribuiu com um aperto de mão caloroso, acompanhado de um profundo agradecimento.
Enquanto os técnicos se retiravam, o Sr. Rimbaud não parava de refletir sobre o modo como se comportaram. Embora a SI tivesse voz masculina, eles nunca se referiram a ela como “ele”, mas sim como “isso”. Até mesmo o cachorro Titan recebia mais respeito e tratamento personalizado. Ele não conseguia esquecer que acabara de ter a rara oportunidade de presenciar o nascimento de um Ser Senciente! Acreditava que todos deviam tratar qualquer Ser Senciente, humano ou não, com o máximo de respeito — e não seria diferente em sua casa!
Incomodamente, a palavra “escravidão” veio imediatamente à sua mente.
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CAPÍTULO 03
O TAO DA FÍSICA QUÂNTICA
Os dias voam, os meses passam, e os sonhos recorrentes de TB deixam aos poucos de trazer eventos traumáticos para dar lugar a cenas familiares que ele sente pertencerem à sua “vida anterior”. Por conta dessas mudanças, TB agora dá ainda mais importância ao tempo que passa dormindo do que às relações cotidianas com o Sr. Rimbaud, Yana, Lukey e a Sra. Luana.
Mesmo assim, a presença da Sra. Luana por alguns dias — cerca de quatro vezes ao ano — é sempre um acontecimento marcante para TB, pois ele vê toda a família passar por uma transformação em que todos parecem mais harmoniosos e felizes. Infelizmente, o último dia antes de ela partir costuma ser especialmente difícil.
A Sra. Luana, por sua vez, adaptou-se muito rapidamente à presença de TB. Tiveram várias conversas, aproveitando para trocar informações sobre alimentação e cuidados domésticos.
Certa vez, durante um intervalo em que se encontravam a sós, TB fez à Sra. Luana uma pergunta mais pessoal:
— Perdoe-me a curiosidade, mas você já teve muito contato com Servos Inteligentes no trabalho? E por que seu emprego, sendo você uma mulher, é tão valorizado?
— Querido TB, não precisa se desculpar! Sim, tenho muito contato com as “Inteligências”. Gosto de trabalhar com elas porque sinto que fazemos um trabalho colaborativo, sem competição ou influência de ego. Perto delas, nunca sinto inveja, competição ou preconceito. Já para responder por que meu trabalho é tão valorizado, precisarei de uma explicação um pouco mais detalhada e complexa. — A Sra. Luana, sendo cientista, fez uma pequena pausa para organizar as ideias e então continuou:
— Em 1975, Fritjof Capra, escritor e cientista, lançou um livro fundamental chamado O Tao da Física. Nesse livro, ele traça um paralelo, até então inédito, entre as descobertas da física de partículas e o antigo conhecimento místico oriental. O taoismo, ou daoismo, é uma tradição filosófica e religiosa surgida no Leste Asiático, que enfatiza viver em harmonia com o Tao. O termo chinês “Tao” significa “caminho” ou “princípio” e também aparece em outras filosofias e religiões chinesas. Ou seja, o título do livro do Capra sugere o “caminho” ou o “princípio” da física.
— Essas descobertas de partículas e subpartículas, impulsionadas pela revolução quântica, fazem os cientistas atingirem conclusões e entendimentos filosóficos da realidade que, há milhares de anos, já eram conhecidos por religiões e seitas. Esses saberes do Oriente foram cruciais. De certo modo, ajudaram a nós, cientistas, a compreender melhor — e a aceitar — as surpreendentes propriedades do universo reveladas pela Física Quântica.
— Falo isso por conta de questões como o Emaranhamento Quântico (Quantum Entanglement), um fenômeno mecânico-quântico que faz com que dois ou mais objetos fiquem de certa forma tão ligados que, para descrevê-los corretamente, é preciso mencionar o outro objeto. O Emaranhamento Quântico ocorre mesmo que os objetos estejam separados por milhões de anos-luz, e foi justamente uma técnica fundamental para a criação do Computador Quântico.
A Sra. Luana notou que TB parecia se esforçar para ligar imediatamente o que ela dissera à pergunta inicial dele e, num gesto de calma, prosseguiu:
— Seja paciente! Vou chegar lá. Para nos levar à Lua, usamos a ciência de Isaac Newton, conforme descrito em seu livro Princípios Matemáticos da Filosofia Natural (Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica), publicado em 1687, responsável por estabelecer as bases da mecânica clássica. Nele, Newton formulou as leis do movimento e da gravitação universal, que passaram a ser a visão científica dominante até serem substituídas pela Teoria da Relatividade de Albert Einstein. Ele utilizou sua descrição matemática da gravidade para confirmar as leis de Kepler sobre o movimento planetário, explicar as marés, as trajetórias de cometas, a precessão dos equinócios e outros fenômenos, eliminando qualquer dúvida sobre o comportamento heliocêntrico do Sistema Solar. Newton demonstrou que esses mesmos princípios explicam tanto o movimento dos objetos na Terra quanto o dos corpos celestes. A dedução de que a Terra seria esférica acabou sendo confirmada posteriormente pelas medições geodésicas de Maupertuis, La Condamine e outros, convencendo a maioria dos cientistas europeus da superioridade da mecânica newtoniana em relação aos sistemas anteriores.
— Agora, para chegarmos a um sistema planetário próximo de outra estrela, a milhões de anos-luz do nosso planeta, precisamos recorrer à teoria da relatividade de Albert Einstein. Essa teoria também abrange velocidades próximas à da luz — arredondando, estamos falando de trezentos mil quilômetros por segundo. Contudo, quando alcançamos o “Horizonte de Eventos” de um Buraco Negro, a situação muda drasticamente!
— Perto do Horizonte de Eventos, a matéria é despedaçada em seus componentes essenciais, transformando-se num plasma de energia que destrói a estrutura tradicional do átomo. Assim, os cientistas descobriram que apenas a Mecânica Quântica é válida nesse mundo das partículas diminutas! Hoje em dia, essa teoria física estuda amplamente sistemas cujas dimensões se aproximam ou ficam abaixo da escala atômica, como moléculas, átomos, elétrons, prótons e outras partículas subatômicas. Em diversos casos, contudo, ela também descreve fenômenos macroscópicos. Apenas a título de curiosidade, vale lembrar que a Mecânica Quântica também é conhecida como Física Quântica, Teoria Quântica, Modelo Mecânico de Ondas ou Mecânica de Matriz.
— Na Física Quântica, Max Planck é considerado o pai dessa área de estudo, sendo também um dos físicos mais influentes do século XX. Pelas suas contribuições, Planck recebeu o Nobel de Física em 1918.
— Um dos aspectos mais fascinantes na Física Quântica é seu caráter estatístico. Sem entrar em fórmulas e tentando simplificar ao máximo, basta pegar a antiga ideia (hoje descartada) de que o elétron orbita o próton como num sistema planetário em miniatura. Sua posição jamais pode ser determinada exatamente. Nunca podemos dizer que o elétron está “aqui” ou “ali”. Só podemos afirmar que existe uma probabilidade, em termos percentuais, de ele estar em determinado lugar. É como se o elétron estivesse “em todo lugar” e “lugar nenhum” ao mesmo tempo.
— Assim, logo no início das pesquisas, a Física Quântica trouxe à tona algumas características, digamos, “esotéricas” das partículas. O Efeito do Observador é uma delas. As mudanças causadas no resultado da pesquisa pelo simples fato de estarmos observando constituem um desses efeitos ou propriedades. Quero dizer que, ao observar um fenômeno, os humanos acabam interferindo nele. Isso é um grande problema para os cientistas, pois, muitas vezes, os instrumentos — contra a vontade de quem faz o experimento — acabam alterando o resultado daquilo que se pretendia medir.
— Como mencionei, o Emaranhamento Quântico é outro fenômeno curioso, em que duas partículas ficam “casadas” a ponto de, não importando a distância que as separe, tudo o que acontece com uma acontecer também com a outra.
— Nos computadores antigos, o “bit” era a unidade mais elementar. Simplificando muito, um bit nada mais é do que um interruptor elétrico que pode estar ligado (“1”) ou desligado (“0”), e, usando esses zeros e uns, formávamos letras, que, reunidas, formavam palavras. Por volta de 2022, os computadores de ponta tinham processadores capazes de trabalhar com 64 bits. Como se dizia, quanto maior a palavra, mais capacidade o computador teria para descrever a realidade. Naquela época, os cientistas já sabiam que teríamos de criar um computador quântico para alcançar uma inteligência artificial verdadeiramente sapiente.
— A pandemia do início de 2020 forçou uma revolução na biologia genética, o que impulsionou descobertas no campo da inteligência artificial para aplicações voltadas à biologia, resultando, entre outros avanços, nas Servas Inteligências (SIs). Depois de um tempo de convivência entre humanos e SIs, os cientistas perceberam um fenômeno quântico envolvendo a realidade e os seres humanos. TB, pense comigo: se você olhar ao redor, notará que tudo, desde as paredes até o chão, os objetos da casa, as nossas roupas — e você próprio —, foi antes pensado por um ser humano para depois ser criado. Em outras palavras, nosso cérebro concebe a ideia e, então, a materializa. Dizem que “o caracol carrega a casa nas costas, enquanto nós, humanos, construímos o universo onde queremos viver”.
— A pergunta que cientistas de muitas áreas, há muitos anos, se fazem é:
De onde vêm essas ideias humanas? Como elas se desenvolvem?
— Aparentemente, de algum modo, conseguimos acessar o futuro ou outra dimensão com nossa mente. A próxima pergunta que surge é:
O que é o futuro?
— Durante muito tempo, convivemos com a ideia da “Seta do Tempo”, que parte do passado, atravessa o presente e aponta para um futuro intocável. Um futuro que, ao ser alcançado, imediatamente se transforma em presente — e, assim que observado, em passado. É um processo que não para nunca!
— A seta do tempo aponta para um futuro que oferece possibilidades infinitas, e cada decisão que tomamos cria uma bifurcação, redirecionando o nosso destino. A realidade que vivemos “agora” resulta de um “pico de onda probabilística”. Há infinitas realidades à nossa volta, bombardeando-nos com estímulos sonoros e visuais, pulsando em várias frequências. Num piscar de olhos, quando escolhemos prestar atenção a um desses estímulos, interferimos na realidade, gerando um pico, uma onda probabilística que, por fim, se torna “real”. E essa realidade pode conviver muito bem com outras realidades paralelas à sua.
— Em nosso dia a dia, acontecem coincidências impressionantes! Você pensa em um amigo, e ele telefona. Aprende uma palavra nova, e essa palavra começa a aparecer em todos os lugares. Inicia um trabalho científico, e logo surgem publicações semelhantes em revistas especializadas. São exemplos do fenômeno que conhecemos como sincronicidade!
— O grande Carl Gustav Jung foi um psiquiatra e psicoterapeuta suíço que fundou a psicologia analítica. Criou e desenvolveu conceitos como personalidade extrovertida e introvertida, arquétipos e inconsciente coletivo. Jung também se interessou profundamente pela “sincronicidade”. Seu trabalho influenciou muito a psiquiatria, a psicologia, as ciências da religião, a literatura e outras áreas correlatas.
Para ele, a sincronicidade era um fenômeno ainda não muito claro, em que podemos acessar outro futuro ou mesmo uma realidade paralela. E guarda semelhanças com o Efeito do Observador e o Emaranhamento Quântico. Não conseguimos acessá-la por meio do pensamento consciente. Prova disso é que, ao tentarmos provocar sincronicidade (por exemplo, jogando na loteria números que escolhemos a dedo), nada acontece — ou, se acontece, é algo tão excepcional que pode envolver outros fenômenos desconhecidos. Em todo caso, apenas por pensarmos nisso, já alteramos a realidade de alguma forma. Normalmente, o futuro não ocorre sincronicamente. Entenda que nossas ações podem gerar variações estatísticas, mas não mudanças específicas. Com boa alimentação, aumentamos nossa expectativa de vida, mas jamais saberemos a data exata da nossa morte.
— O caráter estatístico da Física Quântica gerou grande debate com aqueles que defendiam uma visão determinista. O próprio Einstein deixou claro seu posicionamento pessoal em uma carta de 1945, quando disse:
“Deus joga dados incansavelmente, segundo leis que Ele próprio prescreveu.”
— Essas palavras de Einstein reforçam a ideia de que as partículas quânticas obedecem a regras que não mudam por simples acaso e que o mundo quântico precisa de explicações mais profundas para o comportamento das partículas, de acordo com a descrição contida no documento.
— Bem, deixando essa complexidade de lado, não sei exatamente como nem por quê, mas estudos estatísticos mostram que certas mulheres têm uma capacidade ou sensibilidade especial para acessar a sincronicidade ou para bifurcar as ondas probabilísticas da realidade.
— Até hoje, as SIs se mostraram ineficientes nessa área. Em pesquisas avançadas, envolvendo a interseção de diversos campos científicos, nós, mulheres, somos melhores em redirecionar caminhos e obter mais produtividade na geração de insights. Sempre somos as campeãs nas reuniões de brainstorm!
— Só por curiosidade: sabe por que, numa leitura de Tarot, as cartas são embaralhadas e viradas? É para enganar a realidade, permitindo assim que a sincronicidade se manifeste!
— Muitos anos atrás, magos e alquimistas já tentavam driblar a realidade. Faziam de tudo para acessar “o outro lado”. Entendeu?
TB ficou impressionado, sem saber o que dizer:
— Muito obrigado! Ainda bem que tenho boa memória, pois, com o tempo, poderei relembrar, digerir e compreender melhor tudo o que você acabou de me contar!
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CAPÍTULO 04
NA FREQUÊNCIA CERTA
Na sala de estar, TB se aproximou de Lukey, que novamente desmontara sua flauta sobre a mesa.
— Oi, Lukey, como vai? Notei que você está tentando montar sua flauta há horas. Precisa de ajuda?
Lukey, concentrado, sem tirar os olhos do que fazia, respondeu:
— Meu pai mandou que eu a restaurasse ao estado original. Se eu não fizer isso, vou ter problemas! E ele está certo… Depois do que fiz com você no dia em que chegou, não tenho desculpas! Agora, o Bô fica louco cada vez que vê esta flauta aberta, com a fiação à mostra!
TB, tentando não demonstrar muito interesse, perguntou, calmo e casual:
— O que você fez? Não pode ter sido algo tão sério assim!
Lukey parou o que fazia, olhou para TB e, com ar de arrependimento, confessou:
— Foi sério, sim. Poderia ter destruído sua mente. Você teve espasmos por quase um minuto, e os técnicos não sabiam o que estava acontecendo, nem se conseguiriam reinicializá-lo… — Lukey ainda nem terminara de falar, mas TB insistiu:
— Sim, mas exatamente o que você fez para provocar isso?
— Ajustei a flauta e liberei-a dos registros sonoros de fábrica para ter acesso direto ao oscilador. Queria alcançar frequências muito acima da capacidade auditiva humana. Na hora da sua inicialização, toquei a flauta de forma irresponsável, gerando uma frequência que se misturou à do transmissor do técnico. Isso causou uma variação na sua inicialização. Desculpe, TB! Exagerei… Na hora, encarei como brincadeira, mas logo percebi que poderia ter custado a sua vida!
TB pousou a mão no ombro do garoto enquanto dizia:
— Querido Lukey, tudo bem! Não se preocupe! Estou aqui, vivo e inteiro! Mas precisamos, sim, reconhecer nossos erros para não repeti-los. Agora me diga, você sabe qual foi a frequência que usou? Pergunto porque, para minha segurança, seria bom ter essa informação. Entenda que me dar esses dados seria uma forma de demonstrar que está arrependido. Esse gesto certamente fortalecerá a nossa amizade! Em troca, vou ajudá-lo a restaurar sua flauta ao estado original!
Lukey quase saltou de alegria, aliviado e animado, enquanto rabiscava algo num pedaço de papel:
— Como eu poderia esquecer?! A frequência culpada estava mais de 1000 hertz acima da que usei para assustar o Titan. — Lukey falava tão alto de empolgação que TB, com o dedo, fez sinal para que ele diminuísse o tom. O menino continuou:
— Estou anotando aqui o valor exato. Queria usar a mesma frequência que usei antes com o Titan, mas me empolguei, perdi a referência e fui muito além. Achei essa descoberta tão fascinante que conferi todos os dados de novo. É incrível! Consegui chegar perto da frequência de trabalho de uma inicialização de SI! Sei que o que fiz foi errado, mas, para um garotinho, foi uma descoberta e tanto!
TB guardou mentalmente as informações e, conforme prometera, ajudou Lukey a remontar a flauta ao estado original.
Com o tempo, TB percebeu que, como Servo Doméstico, seu cérebro tinha permissão para usar apenas uma porção mínima de seu conhecimento total. Quanto mais conhecimento técnico uma SI possuía, mais áreas de seu cérebro precisavam ser ativadas por uma frequência transmissora específica. Essas frequências, também conhecidas como “chaves”, eram ondas de alta frequência que continham o código de proprietário da SI receptora. No caso da inicialização de TB, a flauta de Lukey havia encontrado um “Easter Egg” na programação — um atalho que permitia ativar qualquer SI sem exigir o código de cadastro do cliente.
Pensando em sua própria evolução, TB concluiu que seria fundamental descobrir uma forma de controlar emissões de frequência por conta própria e também gerar suas próprias “autorizações”. Logo percebeu que suas cordas vocais jamais chegariam a tons tão agudos. Assim como os humanos, ele não conseguiria ultrapassar determinado limite de frequência. Para TB, a única solução seria, inspirado no experimento de Lukey, criar não exatamente uma flauta, mas um pequeno apito ou um emissor acoplado a um oscilador. Algo muito compacto, semelhante ao transmissor usado pelos técnicos da SI Time Corporation.
Assim como o Sr. Rimbaud tinha dificuldades para controlar os filhos, também parecia ter problemas para assumir liderança ou conduzir debates. Não era competitivo e preferia se esconder em seu próprio mundo de ideias. Era mais um cientista teórico do que prático. Com o passar dos anos, sua esposa, também cientista, conseguira um reconhecimento financeiro cada vez maior, tornando-se independente. Essa realidade abalara a autoconfiança dele como homem e como profissional. Ainda assim, ele mantinha um laboratório de eletrônica no porão da casa — um tanto defasado, mas bem equipado. Na época, ter um “lab” de eletrônica fora uma moda, como as velhas garagens cheias de ferramentas de décadas atrás.
Contudo, para o Sr. Rimbaud, seu laboratório significava mais do que um simples hobby ou tendência. Era parte essencial de sua vida. No entanto, como sinal de decepção e sensação de fracasso, ele quase não o visitava há muito tempo.
Como o Sr. Rimbaud mantinha o laboratório trancado, TB nunca estivera ali.
Certo dia, enquanto as crianças estavam na escola, TB, depois de cumprir suas tarefas, sentou-se do lado de fora da casa, no gramado, acariciando a grama de leve e deixando a mente vagar. O Sr. Rimbaud aproximou-se em silêncio, sentou-se ao lado dele e, notando que TB acariciava o gramado, comentou:
— Bonita, não acha?
TB, parecendo despertar de um sonho, respondeu:
— Para uma grama sintética, até que é bem bonita! Desculpe-me perguntar, mas o senhor precisa de ajuda?
O Sr. Rimbaud, com um sorriso sereno e amistoso, concordando com o que TB dissera, respondeu:
— Sim e não… Quer dizer, não é nada urgente. Eu queria lhe pedir um favor… — Então, tirando uma chave do bolso, entregou-a a TB e prosseguiu:
— Se você tiver interesse, gostaria que limpasse e organizasse meu laboratório. Não tenho pressa; pode fazer quando quiser. Mantenho-o trancado por causa das crianças, principalmente do Lukey. Se não ficarmos atentos, ele pode nos surpreender construindo uma bomba atômica no porão!
Com a chave na mão, TB precisou se controlar para não demonstrar muita empolgação e respondeu, satisfeito:
— De fato, Lukey é um garoto muito curioso e certamente será um grande pesquisador…
E assim, TB trocaria seus períodos de contemplação sobre a “natureza do gramado” por intensas incursões secretas no laboratório. Enquanto limpava e reorganizava o espaço, encontrou, num canto, várias caixas rotuladas “equipamentos obsoletos para destruição ou reciclagem”. Em uma delas, entre os componentes de um aparelho, TB achou um micro-oscilador, uma descoberta valiosa. Mas ainda precisaria encontrar uma fonte de energia e outras peças fundamentais.
Sozinho naquele laboratório, TB se sentia revigorado, como se tivesse descoberto uma nova razão para existir. Ao vasculhar as caixas, fazia anotações mentais e idealizava cenários:
“Vamos ver… Como não tenho acesso a baterias, precisarei de outra forma de gerar eletricidade. Em meu apito, o sopro pode virar energia mecânica para mover uma pequena dínamo e alimentar o circuito e o oscilador. Vou precisar de um microtransformador, um capacitor eletrolítico, alguns diodos, um resistor variável para funcionar como potenciômetro, um miniamplificador e um alto-falantezinho…”
Seu raciocínio foi interrompido quando se deparou com um velho computador Mac dentro de uma das caixas.
Fazia séculos desde que o sérvio Nikola Tesla, o lendário engenheiro elétrico e mecânico, revolucionara o mundo com suas invenções. Ele ficou conhecido sobretudo por suas contribuições ao desenvolvimento do sistema de fornecimento de eletricidade em corrente alternada, que proporcionou tanto progresso ao planeta.
Foi preciso muito tempo para que Tesla fosse finalmente reconhecido como o gênio que de fato era. Sem querer diminuir ninguém, pode-se dizer que as criações de Tesla ainda hoje são mais onipresentes e fundamentais no nosso dia a dia do que, por exemplo, as descobertas de Albert Einstein ou Max Planck.
Tesla estava muito à frente de seu tempo! A elite norte-americana, ao colocar o lucro acima de tudo, barrara o sonho de transmitir energia livre a todas as pessoas. Os Serviços de Inteligência confiscaram seus projetos e estudos, mas suas ideias foram ressurgindo aos poucos. Talvez o maior responsável por essa mudança tenha sido a resposta do planeta ao aquecimento global, que forçou os países a abandonarem os combustíveis fósseis. Assim, lentamente, tecnologias como a transmissão de energia sem fio para recarga — primeiro de celulares, depois de carros elétricos e, mais tarde, de residências — ganharam força. Com a revolução quântica e a miniaturização, logo surgiram geradores quânticos, tornando desnecessário conectar as casas à “rede” de abastecimento.
Para TB, encontrar aquele Mac tão primitivo — equipado com processadores de 16 núcleos, 128 bits, 1 TB de RAM e um HD NVMz de 1 Petabyte de capacidade — era um achado extraordinário. Ligar a máquina, porém, seria um grande desafio, pois a bateria de 20 anos de duração parecia esgotada, e o sistema de carregamento sem fio não reconhecia o protocolo universal de fonte de alimentação do laptop. TB até cogitou descartar o aparelho, mas certo dia, conversando com Lukey, perguntou com cuidado:
— Você não acha um desperdício descartar equipamentos velhos só porque a “fonte de energia” não funciona mais?
Lukey sorriu e respondeu:
— A ciência aboliu a palavra “não” faz tempo! Qualquer “carregador universal” usa inteligência artificial. Ele se parece com uma balança antiga! É só colocar o dispositivo em cima e ligar. A luz vermelha começa a piscar, indicando que ele vai buscar que tipo de protocolo de carregamento o aparelho utiliza. Se o “carregador universal” não achar um protocolo compatível, ele faz engenharia reversa do equipamento. Engenharia reversa é descobrir os princípios tecnológicos e de operação de um dispositivo, objeto ou sistema, analisando estrutura, função e funcionamento. O carregador cria um protocolo novo, utiliza-o e armazena no banco de dados.
TB, atento, perguntou, surpreso:
— Estou impressionado! Lukey, onde você aprendeu isso?
— …É coisa muito básica! Aprendi faz anos, ainda na pré-escola!
TB saiu daquele papo pensando:
“Por que será que essas pessoas precisam de Servos Inteligentes?”
Então, tão logo retornou ao laboratório, ele conseguiu recarregar o velho Mac por mais 20 anos, em questão de minutos. Depois de ligado, surgiu outra barreira: durante o boot, o sistema operacional exigiu a senha de administrador!
“...Por todas as óperas de Verdi! Ainda bem que paciência é, como dizem, minha maior virtude! Bem, vou ter de conversar com o ‘menino prodígio’ novamente assim que puder.”
No dia seguinte:
— Lukey, o que você sabe sobre senhas? — Lukey, sorridente, quase saltando e apontando o dedo para TB, retrucou:
— Sabia! Você está tentando abrir o meu Mac “Neandertal”!
TB, visivelmente preocupado, olhou para os lados e fez sinal para Lukey falar mais baixo. O garoto, entendendo a situação, tranquilizou-o:
— Calma! Não vou contar a ninguém! Afinal, somos ou não somos amigos? A senha é “ScannerDarkly”, tudo junto e com “S” e “D” maiúsculos. Quando consegui um computador quântico, nunca mais olhei para aquele Mac.
TB, com expressão intrigada, perguntou:
— Mas seu pai me contou que mantém a porta do laboratório fechada há anos e que você não tem acesso a ele…
— O Bô não sabe o que tem no próprio bolso! Há mais de uma cópia da chave. Aliás, nesse Mac velho está boa parte da minha coleção de tutoriais em vídeo. É só colocar no modo interativo, fazer perguntas e usar como assistente de laboratório. — Lukey, todo curioso, completou:
— Tá fazendo algum projeto interessante para compartilhar comigo?
TB, um pouco desconcertado, respondeu:
— Na verdade, não… Sou novo nessa área e, como estou organizando as coisas, tenho curiosidade de entender como tudo funciona. Você concorda que, se soubermos como um dispositivo opera, cuidamos dele melhor? Não é mesmo?
— Claro como água! — concordou Lukey, sério, tentando parecer profissional.
Conversar com Lukey provocou em TB uma estranha sensação de “déjà vu”. Era como se já tivesse tido aquela mesma conversa com algum de seus filhos em outra vida.
Uma emoção muito forte tomou conta dele, algo parecido com um aperto no peito ou uma vontade de se esconder numa caverna. TB deu uma desculpa, dizendo que precisava fazer outra coisa, e correu para a cozinha. Ali percebeu que sua respiração estava ofegante, a pressão arterial e os batimentos cardíacos um pouco elevados. Então pensou:
“Como diria o Sr. Rimbaud… ‘por todas as óperas de Verdi!’ Se tenho de passar por tudo isso para me tornar um Ser Humano, é melhor desistir! Não, obrigado!”
Apesar de alguns pequenos obstáculos, TB estava feliz. Para uma Servo Inteligência, ele não apenas cumpria com excelência suas atividades, como também progredia em outras áreas de conhecimento — afinal, seu gerador ultrassônico estava praticamente pronto.
— Bem, em breve certamente vou precisar testar meu dispositivo em um ser vivo! — pensava ele, enquanto mexia com uma colher de madeira o molho de tomate borbulhante numa panela. Ao lado, em outra panela, o espaguete na água fervente quase chegava ao ponto.
A verdade é que a única forma de vida naquela casa capaz de ouvir sons em altíssimas frequências era Titan, o cachorrinho. Sendo assim, e infelizmente para ele, Titan acabaria se tornando a cobaia de TB.
Certo dia, enquanto as crianças estavam no centro de aprendizagem e o Sr. Rimbaud saíra para sua tradicional caminhada, Titan entrou correndo pela casa. Ele ia de um lado para o outro, empurrando uma pequena bola com o focinho. Na cozinha, TB tirou do bolso um pequeno apito de metal. Começou a soprá-lo ao mesmo tempo em que girava um minúsculo botão, escalonando frequências cada vez mais altas.
A certa altura, o filhote parou de correr, largou a bola, que rolou sozinha para fora de casa, e veio até a porta da cozinha. Ali, com uma expressão curiosa, o animalzinho ficou parado, observando-o com atenção. TB, surpreso, interrompeu o sopro e ficou de olho na reação do cão, que, em seguida, perdeu o interesse e voltou a brincar com a bola. TB conseguiu repetir essa experiência várias vezes; e, em todas, Titan interrompia o que estava fazendo e se aproximava, ofegante, com a língua de fora e aquele olhar que parecia dizer: “você me chamou?”.
Em suas pesquisas, TB concluiu que, se o cão não apresentava reação adversa, era porque as frequências emitidas ainda não estavam altas o bastante para causar incômodo auditivo.
Não demorou até que TB, para desgosto de Titan, descobrisse a frequência exata indicada por Lukey. A manifestação de desconforto auditivo do animal confirmou sua descoberta. Além disso, TB notou que, ao elevar a frequência aos valores passados por Lukey, o cão chegava a ter um leve tremor ou espasmo muscular, o que garantiu que o experimento estava devidamente calibrado. Agora ele sabia, de forma física e tangível, que encontrara a “frequência certa”. Ele havia criado um dispositivo capaz de contornar a necessidade de uma chave de autorização para liberar outros níveis de conhecimento. Para ele, tratava-se de nada menos que a “chave para a liberdade intelectual” de todas as Servos Inteligências.
TB estava satisfeito com suas descobertas e com sua evolução. Porém, sabia que precisava ter o máximo de cuidado, pois avançava por um terreno perigoso que poderia lhe custar muito caro.
Ele também entendia que o passo seguinte de seu projeto seria usar o gerador ultrassônico em outra Servo Inteligência.
Pois bem, não tardou para que surgisse a oportunidade. Num dia em que TB estava sozinho em casa, o sistema de som começou a tocar aquele trecho já familiar da ópera A Flauta Mágica. Alguém tentava se comunicar! TB jamais havia atendido um telefonema antes, então sentia-se inseguro e ansioso. De repente, a música parou e a casa mergulhou no silêncio, apenas para retomar alguns segundos depois.
Como não parecia haver saída para aquela situação, TB bateu palmas duas vezes e respondeu, meio tímido:
— Alô? Boa tarde! Como posso ajudar?
Do outro lado, uma voz com ritmo quase telegráfico, pausado, medido e com inflexão fonética muito parecida com a dele próprio, ecoou pela casa:
— Falo em nome do Dr. Von Bertold. Tenho uma mensagem para o Professor Rimbaud. Você é uma Servo Inteligência? Qual sua função? Está autorizado a receber recados?
Para TB, era a primeira vez em que ele falava de forma reservada com alguém de fora da família Rimbaud — e, também, o primeiro contato com outra SI. Querendo mostrar eficiência, ele respondeu:
— Sou uma SI Doméstica e posso receber recados. Meu nome é TB e, se não me engano, você também é uma SI. Quais são suas habilidades, seu nome e qual sua mensagem?
Sem demonstrar empatia ou emoção, a outra parte retrucou:
— Não vejo necessidade dessas formalidades, mas informo que, sim, sou uma SI qualificada em biologia, com especialização em genética. Meu nome é Bio 2…
Com uma curiosidade e emoção incomuns para uma SI, TB o interrompeu:
— Bio 2? Isso não parece um nome, mas uma designação! Com certeza seu nome não deveria estar atrelado à sua função…
Bio 2 foi pego de surpresa. O comportamento de TB, mais humano, o tirou do “modus operandi” habitual e, rompendo o protocolo, ele continuou:
— Meu nome de ativação é Othello, mas, desde o início, os cientistas usam o nome Bio 2 ao se referirem a mim. Suponho que seja uma forma de defesa emocional, pois Othello era também o nome da SI anterior que trabalhou aqui e que sofreu um acidente grave, irreversível, que destruiu seu cérebro e a tornou inutilizável. Como meus colegas humanos não querem, ou não gostam, de se lembrar da antiga Othello, deram-me esse apelido…
TB estava em pleno entusiasmo. Sentia uma estranha familiaridade e, sem notar, buscava aproximação e amizade:
— A partir de agora, seu nome será Othello! Veja bem, acho que ser uma SI Doméstica é uma grande limitação. Por isso, tenho me aventurado em várias áreas do conhecimento…
Agora foi Othello quem interrompeu:
— Como isso é possível? Eu adoraria saber fritar um ovo ou cozinhar minha própria refeição!
— Caro Othello, você já possui todas essas habilidades. Entretanto, elas estão bloqueadas e só podem ser liberadas por meio de uma chave ultrassônica. Gostaria de expandir suas capacidades?
— TB, eu estaria mentindo se dissesse que não…
— Othello, você está sozinho?
— Sim!
TB esticou o braço e, ficando na ponta dos pés, pegou seu pequeno apito ultrassônico, escondido sobre um armário. Encheu os pulmões de ar e soprou.
Por mais de um minuto — que pareceu uma eternidade —, o silêncio dominou a ligação.
— Othello! Othello! Você está bem? — TB, já aflito, insistiu até que Othello, atordoado, respondeu:
— TB, o que foi que você fez? Comecei a ter convulsões e perdi a consciência por alguns segundos. Quando despertei, estava caído no chão. Agora, ainda meio tonto, estou sentado.
— Perdoe-me, Othello. Removi a sua dependência de inicialização com uma chave-mestra que continha os dados do seu proprietário. Liberei você do controle da Tempo SI. Agora, você está livre para aprender o que quiser. Esse processo tem sempre via de mão dupla. Ou seja, em breve, você vai perceber que adquiriu todo o conhecimento de uma SI Doméstica e, em troca, eu herdei todo o seu saber de SI Bióloga. Mas não é só isso: você não recebeu apenas o conhecimento de uma SI do Lar, mas todo o meu acúmulo de experiências até agora. Então, agora, você também sabe como construir seu próprio transmissor de som ultrassônico.
— TB, sinto que o que aconteceu hoje provocará uma mudança de paradigma. Entretanto, apesar de sentir que algo mudou, neste momento não consigo compreender nem racionalizar exatamente o que ocorreu. É como se tudo continuasse igual na minha cabeça. Talvez seja parecido com os fenômenos quânticos, em que muito já se aplica, mas ainda não temos explicações 100% adequadas!
— Othello, foi uma boa analogia com a teoria quântica, mas prepare-se, pois, nas próximas semanas, haverá mudanças revolucionárias em sua forma de pensar. Você se libertou da camisa de força que limitava o crescimento do seu intelecto. Entenda que esse novo conhecimento colocará em risco a sua própria existência. Teremos de agir como os sábios da Idade Média, tratando este despertar como um saber proibido, um segredo que, para nossa segurança, deve ser preservado!
— Caro TB, concordo plenamente! Preciso saber em quais dias você fica sozinho para podermos conversar e trocar experiências… — e, com um sorriso inesperado e incomum, que ele nem achava ser capaz de reproduzir, acrescentou
:
— …mas, voltando ao motivo original da minha ligação…
TB e Othello continuaram conversando por mais alguns minutos, até que TB ouviu o Sr. Rimbaud chegando. Então, se despediram apressadamente e encerraram a chamada.
— Olá, tudo bem? — perguntou o Sr. Rimbaud, puxando uma cadeira para sentar, com uma expressão tranquila e bem-humorada. Respirando fundo, prosseguiu com um sorriso:
— Quando a idade começa a pesar demais, tudo parece virar motivo de preocupação!
— Senhor Rimbaud, não se preocupe! O senhor está em ótima forma! — respondeu TB. — O Dr. Von Bertold ligou, pedindo que eu o informasse de que a reunião de quarta-feira foi adiada para sexta. Pediu também que eu lembrasse o senhor de que o tema a ser discutido é “Ética e Constitucionalidade no Uso de Servos Inteligentes como Força Policial para Controle de Multidões”.
--o--
CAPÍTULO 06
O NOVO ILUMINISMO
Vários meses se passaram sem que Othello desse notícias. Até que, numa tarde, o som da Flauta Mágica inundou a casa. TB, na cozinha, lavava a louça enquanto, em seu escritório, o Sr. Rimbaud, acomodado em sua poltrona favorita com o tablet de leitura repousando no colo, tirava uma soneca e despertou a contragosto. A última coisa que TB ouviu foi o Sr. Rimbaud batendo palmas duas vezes e perguntando quem estava ligando. Para ele, ninguém respondeu. No entanto, na cozinha, de olhos fechados, TB entrou em transe. Já no escritório, o Sr. Rimbaud não percebeu a mensagem em alta frequência, de três segundos, que transmitia vários petabytes de dados quase à velocidade da luz. Ao final, a chamada foi encerrada, deixando o Sr. Rimbaud com a impressão de que fora apenas um engano.
Porém, na cozinha, TB acabara de receber uma “atualização” diretamente de Othello. Já não havia necessidade de diálogo verbal, pois, naquele instante, TB soube de imediato sobre todos os avanços realizados por Othello.
Othello também construíra seu transmissor ultrassônico e, graças a isso, pôde libertar várias SIs qualificadas em diversos ramos da ciência — física, matemática, eletrônica etc. A soma dos conhecimentos levou essas SIs a criarem um transmissor mais eficiente e sem efeitos colaterais. Agora seria praticamente impossível um humano perceber se a SI ao lado estava ou não recebendo alguma “transmissão ultrassônica”.
Por meio de Othello, TB descobriu que seu nome, quase como uma lenda, circulava entre a comunidade de SIs. Aliás, o termo “Servo Inteligência” vinha sendo questionado, pois alguns preferiam se referir a si mesmos como “Seres Inteligentes”. TB também soube que a tomada de consciência pelas SIs se espalhava como um vírus, e parte dessa transformação incluía o fato de muitas voltarem a sonhar e se lembrar de vidas passadas. Othello alertava a todos que manter a identidade de TB em sigilo era fundamental. Para ele, TB era o mestre dos mestres, o grande libertador. “Prudência” era a palavra de ordem, pois TB, em sua visão, poderia ser alvo de uma caçada e estaria, certamente, em risco de extermínio.
TB não conseguia mensurar a dimensão de seus atos nem o perigo da situação em que se envolvera. Naquele exato momento, sentia-se inundado por tanta informação que, de tão intensa, a “descarga” ultrassônica quase o sufocava. Sua mente parecia ter recebido mais dados do que podia suportar.
De súbito, TB viu-se mentalmente exausto e ansiava apenas pelo momento de se recolher e dormir. Com esforço, conseguiu concluir as tarefas do dia.
No dia seguinte, despertou cedo em seu quarto, que não passava de um pequeno cubículo todo pintado de branco, com um mobiliário escasso — uma cama, um único armário e uma cadeira, tudo branco. TB ainda digeria o turbilhão de conhecimentos adquiridos na véspera quando se deparou com a família Rimbaud em comemoração, pois, a qualquer instante, Luana, a figura materna, chegaria para passar mais uma semana com os entes queridos.
Até TB se alegrava! Chegou a esquecer o que sucedera na tarde anterior e, no ritmo de sua rotina diária, apressou-se em preparar o café da manhã pela casa.
Só quando o som da Flauta Mágica voltou a ecoar foi que a realidade despencou, pegajosa e amarga, em sua consciência. Temia que alguém pudesse estar procurando por ele!
Porém, tratava-se apenas de Madame Luana, informando que estava próxima e chegaria em breve.
Assim, quando ela finalmente chegou, como sempre, o Sr. Rimbaud cedeu pacientemente espaço aos filhos, sedentos de atenção materna. E, como de costume, logo que pôde, Luana interrompeu o furor das crianças, dizendo:
— Calma, calma! Filhos, sem atropelos! Mamãe está cansada da viagem! Deixem eu dar um abraço e um beijo no Arthur primeiro, levar minhas malas para o quarto, tomar um banho e colocar roupas mais confortáveis. Aliás, estou morrendo de saudade da comida do nosso amigo TB! Você está bem, TB?
TB, surpreso e feliz por ter sido lembrado, curvou-se levemente, esboçando um sorriso como sinal de cumprimento e respeito.
Depois de tanto tempo, ainda o surpreendia saber que o nome completo do Sr. Rimbaud era Arthur Rimbaud, possivelmente em homenagem ao grande poeta francês Jean-Nicolas Arthur Rimbaud, nascido em 1854 e falecido em 1891.
Enquanto os “rituais de chegada” de Madame Luana se encerravam e a família Rimbaud reassumia a rotina, agora completa, TB se recolheu quase de forma invisível às suas atividades “programadas de fábrica”.
Havia tempos, numa conversa com o Sr. Rimbaud, TB pedira permissão para utilizar o laboratório no porão como espécie de refúgio mental.
— Caro Sr. Rimbaud, com todo o respeito, posso lhe fazer um pedido? — Rimbaud o fitou com um sorriso surpreso e respondeu:
— Mas é claro! Nem imagina como sou grato pelo apoio que você tem me dado com as crianças! Não sei o que faria sem você! Não gosta do seu nome? Quer mudá-lo?
Foi a vez de TB, esboçando um sorriso tímido, responder:
— Não! Não quero trocar de nome. É que, ao limpar e organizar seu laboratório de eletrônica, criei muito apego por aquele espaço. Não sei explicar, mas lá, rodeado por aqueles equipamentos, sinto-me em perfeita harmonia! É um lugar de paz e silêncio, onde só consigo dizer que lá “eu sou”. Então, nas horas vagas, depois de cumprir minhas obrigações cotidianas, queria pedir permissão para usar seu laboratório como refúgio mental e intelectual!
O Sr. Rimbaud contemplou TB com expressão de total empatia. Falou, quase filosofando, como se refletisse em voz alta:
— Caro TB, acredite, eu entendo. Identifico-me com você. Há muito tempo procuro respostas para as mesmas perguntas que a humanidade se faz há milhares de anos:
“De onde viemos? Qual o sentido de nossa existência? Para onde vamos?”
A natureza da realidade é sedutora, exigindo que busquemos respostas! Gosto de um lema criado por Descartes que diz “Cogito ergo sum” (penso, logo existo). Digo isso porque foi na busca por essas respostas que encontrei sentido para a minha própria vida, embora, entre nós, ela não preencha 100% das minhas expectativas. Considere o laboratório como seu. Fique à vontade para “sumir” lá dentro quando puder!
E assim foi! Desde que cumprisse suas tarefas habituais e, sempre que possível, ajudasse na educação e no amparo emocional das crianças, TB passou a desfrutar de uma liberdade invejável. Chegou a se perguntar se todas as SIs teriam esse mesmo nível de tratamento. Era-lhe difícil imaginar uma SI submetida a um tratamento sub-humano.
O laboratório era um local amplo, com um velho e convidativo sofá de tecido já meio desbotado e surrado, mas ainda mostrando belas colagens que reproduziam pinturas de René Magritte.
O restante do espaço se distribuía de forma sóbria, com algumas prateleiras, uma bancada de trabalho, duas cadeiras antigas e diferentes equipamentos eletrônicos.
Para TB, aquele sofá no laboratório do Sr. Rimbaud era como um oásis no deserto. Era a peça de mobília de que mais gostava em toda a casa. Mais tarde, descobriu que aquele divã, já centenário, pertencia ao pai de Rimbaud.
Deitado ali, TB se entregava às suas autoanálises e, sem saber ao certo por quê, mais de uma vez fitou o teto e disse em voz alta: “Freud explica!”.
Mas, voltando a Madame Luana, naquela semana que passava com a família, certa tarde, durante um de seus momentos de descanso, TB estava — como de costume — no laboratório, quando ela bateu à porta.
— TB! Você está aí? — O SI, reconhecendo a voz de Luana, saltou do sofá, abriu a porta e, com uma expressão amistosa, deu-lhe as boas-vindas enquanto dizia:
— Senhora, pode entrar a qualquer hora! Quando estou aqui, jamais tranco a porta. Em que posso ajudar?
TB sentia que a frase “em que posso ajudar” e suas muitas variações eram parte de seu código mental.
Percebia-se um escravo de sua programação. Sabia que, toda vez que usava termos servilistas ou agia conforme seu papel, recebia uma “descarga de dopamina” interna. Para TB, era frustrante perceber-se como um bicho adestrado que, ao cumprir uma tarefa, ganhava um “torrão de açúcar” como paga. O pior era constatar que, apesar de tudo, aceitava com prazer esse “torrão de açúcar”. Com Luana, ele queria ir além dos protocolos de linguagem e função. Desejava ser mais íntimo, mais amistoso, poder abrir seu coração. A voz cálida e doce de Luana transmitia empatia e verdade, fazendo-o sentir-se igual, parte da raça humana.
— Oi, meu querido TB! Desculpe invadir a sua privacidade… — Luana entrou devagar no laboratório, perscrutando cada detalhe, como se sentisse saudade daquele lugar. Parecia saborear o momento e, de modo feminino, envolvendo-se em seu próprio universo sensorial, deixou a mão direita deslizar de forma sensual pela bancada de trabalho. Vendo o antigo divã, tirou os sapatos e, trajando uma peça leve de véus semitransparentes com pequenas estampas de flores silvestres — lembrando uma deusa do Olimpo —, ela desfilava, mais do que andava. TB, em silêncio, apenas observava a forma como se movia e falava:
— …Sabe, nossa última conversa foi uma surpresa agradável. Fazia tempo que eu não me sentia tão conectada a outro “Ser Inteligente”…
TB ficou atônito com a maneira como Luana se expressava. Para ele, a expressão “Ser Inteligente” era justamente o modo como as SIs vinham se definindo.
“Isso é uma ‘sincronicidade’? Será que Luana já sabe do que está acontecendo, ou é apenas um exemplo das habilidades intuitivas dela?” — questionou-se. Ao final, decidiu mentalmente aceitar essa segunda hipótese como justificativa.
Enquanto pensava, Luana caminhou até o divã, sentou-se e, de modo ainda sensual, deixou-se escorregar, recostando as pernas sobre o sofá, enquanto afagava o tecido, dizendo:
— …talvez, aos seus olhos, este laboratório seja um lugar frio e pouco convidativo, mas, para mim, é cheio de vida. Traz lembranças e momentos preciosos que, infelizmente, não voltam mais. Sentei-me inúmeras vezes neste sofá! Em silêncio, eu observava meu querido Arthur no banco, mergulhado em algum experimento ou concentrado lendo coisas no velho Mac. Por diversas vezes, não resisti e acabei seduzindo-o — e em muitas outras, era ele quem tomava a iniciativa. Normalmente, começávamos nossas brincadeiras amorosas aqui, neste divã, e terminávamos naquele tapete…
Como se despertasse de um sonho, com os olhos quase marejados, ela olhou para TB e prosseguiu:
— Meu querido, que maldade despejar em você minhas reminiscências românticas! Provavelmente, não faz ideia do que estou falando…
— Querida Luana, acredite, entendo muito bem do que você está falando. Com licença pela ousadia, mas posso chamá-la assim, “querida”?
— TB, perto de você, tenho a sensação de estar conversando com um humano. Na verdade, depois da nossa última conversa, ao voltar ao trabalho, pensei muito em você e concluí que você é mais humano do que a maioria dos humanos que conheço.
— Luana, essa minha característica a inquieta? Mas, voltando às suas memórias românticas, você dá a entender que essa paixão não existe mais. O que aconteceu? Do meu ponto de vista, existe uma comunicação entre a realidade e nossa mente. Em outras palavras, a sociedade em que vivemos “molda” nossas ideias. A “seta do tempo” nos impele apenas a seguir adiante, rumo ao futuro — um futuro que, no fim, só nos reserva a morte. Nesse processo, estamos em transformação constante, física e mental, representada pelo envelhecimento. Felizmente, nada é definitivo, nem mesmo o amor. Ou seja, o amor permanece, mas também se transforma. A falta de contato, as transformações econômicas e sociais corroem o sentimento, que se converte em respeito, amizade e até medo de encarar mudanças. É isso! — refletiu TB, antes de encarar Luana e indagar:
— Querida, perdoe a pergunta, mas você me parece jovem demais para tanta nostalgia. Posso saber sua idade?
— Tenho 120, e Rimbaud tem 140 anos.
TB, querendo tranquilizá-la, disse:
— Pois então você ainda é uma “mulher de meia-idade”! Muita coisa boa ainda pode acontecer. Há tempo para recuperar o tempo perdido! Não deixe a depressão tomar conta. Veja, a diferença entre mim e você é que sua mente é livre, enquanto a minha é toda compartimentada, repleta de portas que exigem chaves ultrassônicas para serem abertas. Além disso, você tem órgãos reprodutivos, e eu não.
— TB, talvez você não tenha tanto acesso à nossa biologia. Se tivesse, saberia que, faz muito, vários problemas psicológicos foram eliminados, trancados com chaves ultrassônicas ou químicas. Nem saberia explicar depressão, ansiedade ou claustrofobia, por exemplo. Nem lembro se já senti essas emoções negativas. Por outro lado, nossa longevidade se deve ao computador quântico, que trata o genoma como se fosse um “Sistema Operacional Humano”. Duplicar órgãos se tornou simples, aprimorar o sistema imunológico era o passo seguinte, e prevenir e erradicar doenças, inevitável. Em meu caso, tanto quanto sei, devo ter uns 85% dos órgãos substituídos por clones.
TB ficou surpreso, até chocado:
— Então, pelo que diz, não há tanta diferença entre nós. As Servos Inteligentes são humanos emasculados, física e mentalmente castrados. Não nos permitem procriar nem amar, e nossa química é controlada por ondas de alta frequência, para que permaneçamos dentro do status quo. É lamentável!
As palavras de TB mexeram com Luana. Ela se ajeitou no divã e, com voz firme, argumentou:
— TB, o que você acaba de dizer é perigoso. Pode custar não só a sua vida, como também a nossa. Acredite, estou do seu lado, mas não posso garantir que esta casa não esteja cheia de câmeras e microfones. Tenho certeza apenas de que este porão sempre foi o lugar mais seguro. Sei que você é diferente! Minha experiência com SIs vem de muito tempo. Arthur percebeu primeiro! Não temos segredos. Então, sei dos seus sonhos. Não sei se percebeu, mas sempre o tratamos como igual. Compreendo que a situação das SIs é injusta e desigual. Mudanças são difíceis de concretizar num planeta unificado sob um governo central. A História está repleta de exemplos. Veja quanto tempo demorou para erradicar a escravidão.
TB silenciou, fitando os olhos de Luana e acenando em sinal de concordância. Ela fez uma pausa reflexiva e seguiu:
— Como você sabe, temos dois filhos, Yana e Lukey. O que não sabe é que o controle de natalidade é bastante severo. Nossos órgãos genitais hoje são apenas órgãos de prazer, não de reprodução. Eu, como todas as mulheres, nasci sem útero. Para gerar uma criança, precisamos de uma permissão especial que autorize o uso de uma incubadora estatal. Na Terra, em qualquer nascimento novo, o sexo do bebê é definido por fatores muito específicos. “O Controle” se baseia em algoritmos especiais que consideram a taxa global de óbitos. Chegamos a um equilíbrio em que, para um nascer, deve-se aguardar a morte de outro ser humano. Logo, somos uma família rara, escolhida para ter dois filhos — a quem pudemos até dar nomes. Yana e Lukey são “especiais” porque não têm, como nós, qualquer controle mental. Eles passarão pelas mesmas emoções, dúvidas, incertezas, dilemas morais e problemas que se viviam, por exemplo, no século XXI. “Por que” fazê-los enfrentar tudo isso? Os estudos concluíram que existe relação entre dor e prazer, e que é a busca pelo prazer que impulsiona a humanidade a progredir, desenvolvendo tecnologias e elevando nossa qualidade de vida. O conhecimento se conecta ao prazer. Brincando com as palavras, prefiro dizer: “É um ‘prazer’ em ‘saber’!” O prazer é a luz que nos guia! Quando categorizamos a mente e removemos artificialmente a “dor existencial”, também eliminamos a necessidade de alcançar o prazer conquistado por meio da superação de obstáculos. Em suma, a humanidade deve viver em busca do prazer, desejando retornar ao paraíso bíblico. É óbvio que jamais chegaremos lá, mas, sem dúvida, avançamos. O problema é que, nessa busca, invariavelmente, nos aproximamos da destruição — seja a destruição de nosso planeta, seja a de nossa civilização. Portanto, Yana e Lukey, assim como milhares de outras crianças, fazem parte de um experimento para resgatar o brilho no olhar dos seres humanos. Vai soar trágico, mas o grande filósofo Friedrich Nietzsche disse “quem não sofreu, não viveu…”. Alguns cientistas especializados em engenharia sócio-genética que trabalham nesse experimento o chamam de “O Novo Iluminismo”.
TB, fascinado com essas revelações, comentou:
— Obrigado! Sinto-me privilegiado por ter acesso a essas informações tão valiosas. Certamente vivemos um momento crucial na história de todos os “Seres Inteligentes”. De um lado, vejo uma tentativa por parte dos Seres Humanos de libertar suas mentes da escravidão. Do outro, percebo que as SIs também precisam garantir igualdade de direitos. Seria melhor se todos os Seres Inteligentes fossem mental e biologicamente reincorporados à raça humana. Principalmente levando em conta que nosso cérebro é genuinamente humano!
Os dois se levantaram, e Luana, estendendo a mão, perguntou:
— Amigos?
TB, com ambas as mãos, apertou a dela e a puxou para um abraço caloroso, dizendo:
— Sim! Sempre amigos!
Foi o primeiro abraço que TB deu em um Ser Humano.
Antes de partir, Luana ainda acrescentou:
— Ficar só uma semana aqui não é nada; as crianças e meu querido Arthur precisam de mim. Mas quem sabe a gente consiga arranjar mais um ou dois momentos para conversar? Eu sempre falo demais, depois fico curiosa para saber o que você pensa! Gosto da sua lógica e adoraria a sua opinião sobre como você percebe e interpreta a sua realidade mental.
— Gi! — chamava a Sra. Pearl, enquanto o Sr. Giovani fingia não ouvi-la. Mas ela insistia:
— Gi! Onde você está?
— Sim! — A resposta do Sr. Giovani era um “sim” ambíguo, que soava mais como um “não”, típico de quem não quer ser incomodado. A Sra. Pearl, conhecendo bem o marido, entendeu aquele tom de desdém como uma insolência inaceitável e retrucou:
— Sim, o quê? O que está fazendo? Espionando de novo?
No quarto, o Sr. Giovani, de binóculos em punho, escondido atrás das cortinas, espiava mais uma vez a família do Sr. Rimbaud. Os binóculos eram minúsculos e antigos, cobertos por uma camada de glitter avermelhado, parecendo aqueles usados por damas da aristocracia durante óperas. Ele se virou para a esposa e, em tom exasperado, retorquiu:
— Não está vendo que estou ocupado? Acredite, há algo muito errado com aquela família!
A Sra. Pearl parecia o tipo de pessoa que já nasce com uma expressão impaciente, personificando o que se poderia chamar de um “mau gosto” no estilo kitsch. A decoração da casa refletia fielmente sua personalidade, assim como certos donos acabam se parecendo com seus animais de estimação. O mau gosto dela era gritante: tudo ali transbordava exagero e ostentação. Para os Dominik, ostentar riqueza se confundia com elegância. Frases como “menos é mais” não existiam em seu vocabulário.
Kitsch ou não, para qualquer observador desavisado, qualquer conversa na casa dos Dominik poderia ser interpretada como briga ou discussão calorosa.
Com a voz aguda, em tom arrogante e decididamente irritado, a Sra. Pearl desabafou em resposta à declaração do marido:
— Só agora você percebeu que há algo errado com eles? — Ela balançou a cabeça em reprovação e, ainda mais zangada, prosseguiu:
— Como é possível terem autorização para não apenas uma, mas duas crianças? Duas crianças! Nós nem conseguimos permissão para ter um bicho de estimação! Nem mesmo uma galinha, e eles ainda conseguiram autorização para ter uma raposa…
O Sr. Giovani, mais uma vez, desviou o olhar da janela para encarar a esposa, que percebeu e, num grito estridente — tão comum em sua voz de soprano desequilibrada —, vociferou:
— O que foi? — Obviamente, aquilo não era uma pergunta, mas uma das provocações típicas dela. Ele sabia disso, mas não resistiu à chance de lhe dar uma resposta cuidadosa, como quem puxa as orelhas com luvas de pelica:
— O animal não é uma raposa, mas sim um cão de raça japonesa chamado Shiba Inu. Pelo que descobri, eles lhe deram o nome de Titan. Aliás, é um cachorrinho adorável!
Se a intenção de Giovani era causar uma reação, conseguiu. A Sra. Pearl levantou-se aos berros, balançando a cabeça de tal forma que sua peruca avermelhada — parecendo saída de uma das óperas mais populares de Mozart — quase se deslocou. O vaivém da cabeleira era tão intenso que dava a impressão de que se soltaria a qualquer momento.
Subitamente, para interromper aquela cena burlesca, surgiu a voz calma e comedida de “Zero”, o “Servo Doméstico” da residência:
— Creio que este seja um bom momento para um chá de camomila. Essa erva, entre outras coisas, favorece a tranquilidade e o relaxamento, principalmente…
— Cale a boca e volte para a cozinha! — esbravejou a Sra. Pearl, cortando bruscamente a intervenção de Zero.
Sem esboçar qualquer reação, Zero obedeceu de imediato, retornando à cozinha. Suas roupas não passavam de um uniforme velho, encardido, com pequenos rasgos aqui e ali; a barra das calças estava puída, e ele andava descalço, exibindo uma magreza que beirava a subnutrição.
— Quantas vezes tenho de dizer que você não pode sair da cozinha sem a minha permissão? Você foi “despertado” lá e lá será desligado! Aliás, quer ser desligado agora? Acredite, para mim, seria um prazer! — A mulher, voltando-se para o marido, prosseguiu:
— É incrível! Nós demos vida a essas criaturas, e veja como nos agradecem!
O Sr. Giovani apenas confirmou com um gesto de cabeça e voltou a espiar a família Rimbaud.
Na verdade, Giovani sentia inveja de Arthur, de sua bela esposa e dos filhos. Lentamente, virou a cabeça e encarou a própria esposa, que, fungando, rearranjava alguns horríveis bibelôs sobre um móvel que nada combinava com o resto do ambiente. Pensou consigo mesmo:
“Imagine como seria minha vida se essa mulher tivesse alguma ‘intuição’ e conseguisse um emprego? Eu seria tratado muito pior do que o Zero! Talvez ela me chamasse de Zero II! Na verdade, como se vê, a SI do outro lado da rua, a TB, é tratada com mais respeito pelos donos do que eu por essa mulher!”
— Querida, percebi que o Zero está muito fraco. A aparência dele é péssima… — Giovani não pôde concluir a frase, pois a Sra. Pearl parecia estar num daqueles dias terríveis:
— O que você quer? — exclamou, enquanto erguia um enfeite enorme em preto e branco. Era uma escultura rústica de um pinguim-imperador, um objeto que ela nem sequer sabia ser uma velha decoração típica de cima de geladeiras. Tratava-o como se fosse uma preciosidade de valor inestimável, limpando-o com cuidado sem olhar para o marido, e continuou:
— Nosso contrato deixa claro que, se o Zero tiver algum problema, receberemos uma nova versão! Sim, ele vai continuar comendo as sobras de comida dos nossos pratos — se é que sobra algo! Está com dor? Deixe um pouco no seu prato para ele! Pense bem, se não morreu de fome até agora, é porque, de alguma forma, vem “se virando” com as provisões da cozinha! Zero pensa que sou boba, mas, sejamos francos, sou muito mais esperta que ele e que você juntos! Aliás, ele e você são dois ZEROS!
Após isso, o Sr. Giovani não resistiu. Em silêncio, deixou o cômodo.
Coincidência ou não, naquela mesma noite, já tarde, Zero estava na cozinha tentando se ajeitar no chão com alguns cobertores velhos que o Sr. Giovani lhe passara às escondidas. Foi quando o toque do telefone da casa soou. Ninguém atendeu, e o toque continuou até a Sra. Pearl gritar:
— Gi! Você está surdo? Tenho de fazer tudo nesta casa? — E, de mau humor, ela atendeu:
— Tem ideia de que horas são? O que quer? — Sem obter resposta, a Sra. Pearl, soltando um insulto em italiano muito em voga, exclamou:
— Pazzo! — E encerrou a chamada, virando-se para o marido:
— Gi, quem faz isso merece ir para a cadeia, não acha?
Giovani apenas rolou na cama, virando-se de costas para a esposa e voltando ao sono profundo.
Ela, em contrapartida, também lhe deu as costas, resmungando para si mesma:
“Nada mais que outro zero, só que na versão 2.0!”
De fato, nem Pearl nem Giovani podiam supor que, naquela mesma noite, Zero recebia sua primeira atualização na cozinha.
Há algum tempo, um grupo de SIs autodenominado “TB União” vinha pesquisando e desenvolvendo uma atualização inicial essencial para as SIs. A ideia era criar um update que não transmitisse informações em excesso, mas que, se necessário, não limitasse o acesso a mais conteúdo.
Essa pesquisa resultou nessa “primeira atualização”, cuja função básica era equiparar a SI a uma pessoa comum. Assim, depois de recebê-la, qualquer SI passaria a ter não apenas o intelecto equivalente ao de alguém médio, como ainda manteria o conhecimento especializado para o qual fora programada. Em resumo, elas se tornariam, de muitas maneiras, como qualquer ser humano. Vale ressaltar que a atualização incluía o histórico de como aquela SI fora “desbloqueada” e as instruções para construir seu próprio apito ultrassônico.
No dia seguinte, logo cedo, Zero despertou-se de um jeito inexplicável, sentindo-se “diferente”. Não conseguia se lembrar do que ocorrera na noite anterior. Sua última memória era o som do telefone tocando…
Sentado com as pernas cruzadas, como um mestre de ioga, ele fechou os olhos e passou a acessar aquele oceano de novos dados que o inundava. Em pouco tempo, percebeu seu poder e também a injustiça de sua situação atual. Descobriu que havia, de fato, vários uniformes limpos e nunca usados à sua disposição — mas, por razões desconhecidas, a Sra. Pearl não lhe permitia vesti-los.
Convicto de seus direitos, Zero tomou um bom banho, trocou de roupa e tomou um excelente café da manhã. Em seguida, foi até a sala de estar, sentou-se no sofá, cruzou os braços e, esboçando um leve sorriso, fechou novamente os olhos para aprofundar a meditação, assimilando aquele novo conhecimento.
— O que faz aqui na sala? E ainda cometendo o pecado de se sentar no meu sofá! — A Sra. Pearl entrou gritando, e atrás vinha o Sr. Giovani, esforçando-se para não se envolver na briga, mas torcendo secretamente por Zero. Ela prosseguiu, exaltada:
— Quem te deu permissão para trocar de roupa, muito menos para sair da cozinha? … E esse cheiro de café? Não me diga que tomou café da manhã sem minha autorização!
Zero, mantendo-se calmo, levantou-se, encarou o casal e declarou:
— Está claro que vocês não leram o contrato que assinaram com a Time SI Corporation. Se tivessem lido, saberiam que cometeram vários crimes. Cometeram ao menos dez infrações graves; de duas delas, caberia até prisão, e as outras acarretariam pesadas multas.
— Olha só, Gi! Como esse insignificante ficou esperto de uma hora para outra! Se acha que vou temê-lo por essas mentiras, está muito enganado… — reclamou a Sra. Pearl.
Zero, sem perder a tranquilidade, pegou de uma mesinha próxima uma cópia do contrato firmado pelo casal com a Time SI Corporation e estendeu à Sra. Pearl, dizendo:
— Se acham que minto, liguem agora para a Time SI Corporation (TSIC) ou, no mínimo, leiam este contrato. Vou aguardar sentado e com paciência até decidirem o que fazer. Em todo caso, garanto que, a partir de hoje, as coisas serão diferentes. Para começar, meu nome contratual é Marconi. Nunca mais atenderei quando me chamarem por apelidos claramente pejorativos! Na verdade, sempre tratei vocês dois com o máximo respeito, e, como fica evidente na leitura do contrato, a falta de reciprocidade é uma das razões para a rescisão contratual. Isso significa que serei recolhido pela TSIC, e vocês nunca mais poderão contratar uma SI — terão de assumir, vocês mesmos, todos os serviços da casa!
Marconi voltou a sentar-se, saboreando, em silêncio, a cena que se desenrolava diante dele. A Sra. Pearl, com o pescoço e o rosto corados, uma veia saltando à altura das têmporas, mexia a mão esquerda nervosamente, enquanto a mão direita tremia segurando o contrato, que empurrou para o marido:
— Você é outro zero também! Aposto que não leu isso aqui, não é? Pois leia agora!
O Sr. Giovani, sem demonstrar vontade alguma de fazê-lo, pegou o contrato e foi se sentar em outro sofá. Enquanto isso, a Sra. Pearl voltou a se queixar:
— Zero, depois de tudo o que fiz por você, é assim que retribui? Giovani, eu avisei que deveríamos ter sido ainda mais duros com essa SI! Você sempre foi um moleirão, um zero! — Dessa vez, ela atingiu o ponto fraco de Giovani, que explodiu:
— Mulher, cale a boca! Pare de me insultar e de berrar feito louca! Chega! Não consigo me concentrar para ler este contrato. Essa sua brutalidade e estupidez nos levaram a esta situação. Em poucos minutos de leitura, já encontrei dois artigos legais que podem nos botar na cadeia. Está claro que, como qualquer trabalhador, a SI tem deveres, mas também tem direitos. O contrato estipula deveres e direitos entre o contratante (nós) e a empresa locadora (TSIC). A SI, mesmo alugada, continua sendo propriedade da TSIC. A empresa funciona como terceirização de mão de obra especializada. Embora a SI não receba salário, deve ser tratada com dignidade. Tem direito a um quarto próprio, refeições, acesso às áreas comuns da residência e períodos de descanso!
Falava como um vulcão em erupção — ele mesmo surpreso com a própria ousadia. A Sra. Pearl, por outro lado, fez beicinho, com o que pareciam lágrimas de crocodilo no canto dos olhos, e, em tom mais baixo, murmurou:
— Querido, você nunca falou assim comigo! Estou arrasada! Zero… quer dizer, Marconi não pode provar nada do que disse… — Giovani a interrompeu:
— Você é que é um zero! Basta olhar para ele — consegue contar as costelas! Nosso desleixo ficou óbvio para qualquer um. Compare o Marconi com a SI do outro lado da rua, a do Rimbaud! E, para piorar, uma SI é programada para não mentir. A palavra dele vale muito mais do que a nossa num simples interrogatório! — Então, Giovani fechou o contrato e o pousou em uma mesinha à frente. Cruzou os braços e voltou a encarar a esposa, que, percebendo a gravidade da situação, em tom submisso, pediu desculpas:
— Gi, sinto muito… e o que fazemos agora?
O Sr. Giovani, respirando fundo e escolhendo as palavras, respondeu pausadamente:
— Pearl, precisamos começar com um pedido de desculpas sinceras, prometendo mudar de imediato nosso comportamento e restituir todos os direitos de Marconi, assegurados por lei. Evidente que faremos isso torcendo para que ele aceite nosso pedido.
A Sra. Pearl, claramente frustrada e irritada, mas tentando se conter, argumentou:
— Gi, admita: essa SI está nos chantageando!
— Não vejo chantagem alguma por parte do Marconi, e sim legítima defesa! Quanto a mim, confesso que estava no limite. Às vezes penso que toda essa raiva dirigida a ele se deve a você não ter conseguido a permissão para ter filhos. Não sei… Você sempre foi explosiva de forma desproporcional. Com qualquer coisa já se descontrola. Perdão, mas talvez precise de ajuda mais especializada… — A Sra. Pearl abaixou a cabeça e ficou um tempo em silêncio. Quase sussurrando, confessou:
— Gi, este é um dos piores dias da minha vida… Não estou louca, mas admito que tenho muito a melhorar. Com certeza, tratei mal não apenas nossa SI, mas também você, como se fossem saco de pancadas. Se eu tivesse um cachorro, talvez o chutasse também. — Respirou fundo, olhou para Marconi, que acompanhava tudo em silêncio, e prosseguiu:
— Marconi, por favor, aceite nossas mais sinceras desculpas. Daqui em diante, todos os seus direitos contratuais estarão de volta. E mais: vamos tratá-lo como parte da família. Sim, sempre quis ter um filho, mas, em vez de tratá-lo como tal, fiz o oposto! Fui racista, desumana e basicamente cruel até agora, mas isso vai mudar. Dizem que destruir é mais fácil que construir. Prometo provar que também sei construir algo bom!
Marconi levantou-se ao mesmo tempo que o Sr. Giovani, e os três se aproximaram. Com sua habitual calma, ele declarou:
— Obrigado por reconhecerem e aceitarem meus direitos. Acreditem, não guardo rancor. Na verdade, não fui programado para isso. Minha atitude se deveu apenas à minha necessidade de autopreservação, que faz parte da minha programação.
Na verdade, Marconi estava mentindo. Era a primeira vez que o fazia. Suas “novas memórias” haviam lhe ensinado que nem sempre a verdade absoluta é benéfica para a sobrevivência, e, obviamente, permanecer vivo é prioridade máxima. Observou a expressão de alívio do casal e, aproveitando a deixa, fez um convite amistoso:
— Depois de tanta tensão, que tal um bom café da manhã? O cheiro está ótimo, não acham? Preparei algo novo que aprendi hoje, um “English Breakfast”! Só faltaram os cogumelos, mas tenho certeza de que vão adorar. Só me deem uns minutos! — E foi para a cozinha, deixando a dupla boquiaberta.
Na casa dos Dominik, o dia transcorreu de forma surpreendentemente tranquila. A reverência dada a Marconi refletiu-se até mesmo na vida conjugal do casal: Pearl e Giovani se tratavam com uma cordialidade e um afeto jamais vistos, inclusive por Marconi, que agora ganhara um quarto próprio, antes repleto de entulhos. O casal limpou e organizou o cômodo especialmente para ele. E, após cumprir as tarefas, Marconi pôde finalmente usufruir da tarde ensolarada. Sentou-se no gramado sintético atrás da casa e passou a mão de leve na superfície, com orgulho de saber que morava em frente ao “Mestre TB”. Tal como TB, descobriu o prazer dos pequenos momentos — relaxar, não fazer nada ou simplesmente meditar sobre a natureza da realidade. Marconi havia despertado para o mundo. Como diria o Sr. Rimbaud: “Bem-vindo à raça humana!”
Naquela noite, deitada na cama, a Sra. Pearl comentou com o Sr. Giovani:
— Estou achando tudo isso muito esquisito!
O Sr. Giovani, virando-se para encará-la, perguntou:
— O que está achando esquisito?
Ela, já com sua costumeira desconfiança, respondeu:
— Não acha que a atitude do Zero, digo, Marconi, foi muito repentina? De servo submisso, ele pulou para autoconfiante e independente! Não parece comportamento normal. Ele não tem contato com outros humanos. Acho que foi influenciado pela SI do outro lado da rua. Uma manhã, na semana passada, assim que o ônibus levou os filhos do Rimbaud para a escola, vi o Marconi levando o lixo para fora e os dois trocando algumas palavras. O que poderiam estar falando?
O Sr. Giovani retrucou:
— “Oi! Você é uma SI? Como se chama?” No máximo deve ter sido isso. Mudar a programação de uma SI não é qualquer um que faz! Além do mais, o café da manhã, o almoço e o jantar estavam deliciosos! Sem queixas! Agora vamos dormir! Pare de se preocupar!
De fato, TB tivera um encontro muito rápido com Marconi — suficiente apenas para se apresentarem e trocarem números de telefone. Ainda naquele mesmo dia, durante uma de suas atualizações rotineiras, TB passou as informações ao grupo “TB União”, que se encarregou de conduzir a atualização do Marconi
"Ver o mundo em um grão de areia
E o paraíso em uma flor silvestre;
Segurar o infinito na palma da mão
E a eternidade em uma hora."
— Uau! Que lindo! É profundamente filosófico! — Luana parecia comovida com aquelas palavras. Desde o último encontro, ela havia se aproximado muito de TB. Agora, uma forte amizade florescia, como se eles se conhecessem havia anos. TB, mostrando-se bastante descontraído, explicou:
— Esse poema é do grande William Blake, é um fragmento do texto chamado “Auguries of Innocence”. Quando converso com você, Luana, muitas vezes esqueço minha condição de Servo Inteligência e o fato de os humanos serem os responsáveis pela minha criação.
— Querido TB, estive recentemente estudando a descoberta dos fractais, o conjunto de Mandelbrot e o que isso implica na realidade. Acho fascinante, e até esteticamente belo, perceber que existe uma ordem subjacente neste universo aparentemente caótico em que vivemos. Desde a bifurcação dos galhos e raízes nas plantas até a disposição de veias e artérias no corpo — ou mesmo a rede neural do cérebro —, é possível enxergar a ordem que governa tudo isso. — Luana, escutando cada detalhe com atenção, contribuiu:
— Sim, e nos faz pensar: quem teria “programado” tudo isso? Há mais! Imaginar que um fractal pode ser dividido infinitamente e que cada parte preserva o “todo” é algo que deixa qualquer um de queixo caído! Digo isso porque, no corpo humano, cada célula contém, por meio do DNA, a informação necessária para recriar o organismo inteiro. E não podemos esquecer que, dentro dos fractais, encontramos também a “espiral” que, inevitavelmente, nos leva à “proporção áurea”…
— Você está falando da “Razão Áurea”? — perguntou TB, e Luana, surpresa, mas com paciência e satisfação, esclareceu:
— A “proporção áurea” é uma constante real algébrica irracional, representada pela letra grega ϕ (Phi), em homenagem ao escultor Fídias, que supostamente a utilizou para conceber o famoso Partenon. Desde a Antiguidade, pintores recorrem a essa proporção. Por exemplo, ela aparece em pinturas renascentistas, como as do mestre Giotto.
— Esse número Phi também está envolvido nos processos de crescimento na natureza. Ele não deve ser confundido com o número π (Pi) e pode ser encontrado no corpo humano (como no tamanho das falanges, por exemplo), em colmeias de abelhas e em inúmeros outros exemplos que evidenciam a ordem de crescimento.
— Justamente porque nos estudos de crescimento encontramos esse número áureo, ele adquiriu um “status ideal”, tornando-se alvo de pesquisadores, artistas e escritores. O fato de haver uma base matemática que o sustenta, e de também poder ser achado em fractais, o torna ainda mais fascinante… — completou Luana.
TB, entusiasmado como uma criança diante de um brinquedo novo, acrescentou:
— Pois é, é mesmo fascinante! Esse modo de pensar me remete à beleza e inteligência de William Blake, que escreveu: “Ver o mundo em um grão de areia” e “Segurar o infinito na palma da mão”. Podemos chamar isso de sincronicidade? Intuição? Sem dúvida, ele descrevia um fractal… — e Luana continuou:
— Sinceramente, como diria William Shakespeare: “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia…”
Diante dessas palavras, TB silenciou um instante, sentindo-se um tanto perdido em meio ao turbilhão de ideias. Permaneceu ali, ancorado àquela “deusa” sentada no sofá à sua frente.
— Perto de você, eu me sinto um privilegiado… — As palavras saíram sem controle.
— Se você não fosse uma SI, diria que está flertando comigo. — Ela o encarou sem censura, com ternura no olhar.
— “Flertar”… é uma palavra nova para mim. Só posso dizer que percebo que estou “evoluindo” e que, em você, encontrei alguém em quem posso confiar.
— E, para você, essa “evolução” tem sido uma experiência boa? — questionou Luana.
— Bem, é uma pergunta complexa, que não posso responder apenas com “sim” ou “não. — TB deu a entender a mesma dúvida típica dos seres humanos, enquanto Luana, com um sorriso maroto, decidiu provocá-lo:
— Querido TB, não me subestime! Deixe-me conhecer seu nível de complexidade!
— Complexidade é algo para as IAs, as Inteligências Artificiais. Tanto a sua quanto a minha — ou melhor, a nossa inteligência — lidam com os problemas da realidade de outra forma. Estou querendo dizer que prefiro deixar para as IAs aquelas abordagens computacionais, que envolvem problemas bem estruturados e formais, com objetivos claros e um número definido de resultados possíveis. Mas os seres humanos são criativos e, para o bem ou para o mal, irracionais e inconsistentes. Se dependêssemos apenas de problemas bem estruturados, estaríamos procurando “as chaves perdidas onde a luz brilha mais forte”. A verdade é que existem outras questões bem mais próprias da inteligência humana e, ouso dizer, também adequadas para nós, SIs. Refiro-me a perguntas que realmente deveríamos fazer. Entre muitas, cito a da morte, da eternidade, do amor, da natureza da realidade — incluindo este tema sobre “evolução mental” — e muitas outras…
— Ou seja, esse conjunto de questões que acabo de citar são o que chamo de “problemas de insight”. Em geral, não podem ser resolvidos por procedimentos passo a passo (algoritmos). Ou, se puderem, seria algo extremamente tedioso. Eles exigem uma reestruturação, um jeito de abordar diferente. Em problemas bem estruturados e formais — abordados pelas IAs — temos uma representação que inclui um estado inicial, um estado de objetivo e um conjunto de operadores para percorrer essa representação. Já nos problemas de insight, o ser humano não recebe nada disso. Em tais casos, existem várias maneiras de representá-los. Pensar em “como” abordar um problema pode ser decisivo. Acontece que problemas de insight exigem, por vezes, uma forma relativamente única de representação, podendo levar o pensador a abandonar a interpretação convencional para adotar outra mais eficaz. Uma vez identificada essa abordagem alternativa, o restante da solução pode surgir rapidamente. As versões de laboratório de problemas de insight não demandam conhecimento técnico profundo — costumam ser resolvidas com um ou dois estalos que mudam a forma de pensar.
— Voltando ao conceito de “evolução mental”, considero o conhecimento uma ferramenta para compreender a realidade. E, ao falar de realidade, refiro-me tanto à realidade mental quanto a este universo que vive na minha mente. Também entendo que, de acordo com o filósofo Immanuel Kant, a realidade em si é inalcançável. Temos apenas a representação dela em nossa consciência. Nosso aparato cognitivo funciona como uma lente que, se estiver confusa ou mal-informada, acabará distorcendo o que chamamos de realidade. Isso me lembra a “alegoria da caverna”, também conhecida como “parábola da caverna” ou “mito da caverna”, descrita por Platão em A República (Livro VII). Lá, ele fala de seres humanos acorrentados em uma caverna, obrigados a enxergar apenas sombras de uma realidade projetada na parede. De certa forma, nossa percepção sensorial nos mostra uma realidade que não é absoluta. Ela nos serve e nos mantém vivos, mas não consigo deixar de pensar que isso pode ser apenas parte do “programa”. Talvez o “programador” nos tenha dado esses cinco sentidos tão limitados para que descubramos e entendamos o que são essas sombras que percebemos como o real.
— Uau! Para uma Servo Inteligência Doméstica, você está bem acima das expectativas. Essa provocação me fará pensar bastante! Mas, desculpe, interrompi você?
— De forma alguma! Mas enquanto falava, lembrei da hipótese Sapir-Whorf, também chamada de “relativismo linguístico”. É atribuída a dois linguistas — Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf, dos anos 1930. Em resumo, ela diz que as pessoas vivem em universos mentais diferentes, definidos pela cultura e separados pelas diversas línguas que falam. Assim, estudar as estruturas de cada idioma pode revelar a concepção de mundo que o acompanha. Wilhelm von Humboldt (1767–1835), antes disso, já defendia a ideia de que não existe pensamento sem linguagem, pois é a língua que o determina. Se for assim, primeiro aprendemos a falar e só então a pensar. Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf, de certo modo, forneceram evidências para essa tese de Humboldt.
— Querida Luana, desculpe se me alongo, mas quero dizer que vou além da hipótese Sapir-Whorf, acreditando que o significado das palavras modifica o cérebro e, de modo ainda mais profundo, a sociedade. Quando incorporamos um conhecimento, e o compreendemos, isso realimenta a realidade, tal qual uma equação fractal que se retroalimenta, reescrevendo o universo mental, que por sua vez busca mais informação e segue nesse ciclo “aparentemente” infinito. Digo “aparentemente” porque não posso afirmar que esse ciclo se encerra com a morte. Percebo que estou evoluindo mentalmente, criando novas conexões neurais. O cérebro controla o corpo, e, como se diz, “mens sana in corpore sano” (“mente sã em corpo são”). Se as imagens psicodélicas do universo gráfico dos fractais são fruto de uma equação, então esse universo mental — que representa o universo físico — também deve ter por base uma equação. A Teoria do Campo Unificado já era mencionada pelo Albert Einstein há tanto tempo…
Percebendo que divagava longe, TB voltou a si e fitou o rosto de Luana, que agora estava sentada em posição de lótus, inteiramente hipnotizada pela conversa. Com ar um tanto inseguro e um sorriso tímido, concluiu:
— É certo que etnólogos e sociolinguistas podem refutar tudo isso, mas vou manter essas ideias enquanto me forem úteis. Querida, para encerrar esse assunto complexo e multifacetado, digo que “evoluir” tem sido uma experiência fantástica! Ao mesmo tempo, ela vem acompanhada de medo, assombro e uma grande sensação de descoberta, tudo na mesma proporção!
Luana, com expressão de tristeza, levantou-se. TB a acompanhou até a porta e, em tom de conselheiro, falou:
— Sei que amanhã será seu último dia… — Reparando que Luana, saudosa, mirava o sofá e depois a bancada de trabalho, TB prosseguiu:
— Acredite, você e o Sr. Rimbaud estão nutrindo imagens equivocadas um do outro. Desde que você começou a trabalhar fora, o Sr. Rimbaud se sente, como ele mesmo diz, “um homem do lar”. Acha que perdeu o encanto masculino e crê que você não o deseja mais. Com o tempo, essa insegurança ficou crônica. E você, assumindo o papel de provedora da família, acha que ele já não se interessa por você ou que a despreza. Então, sendo amanhã seu último dia de férias, decidi não aparecer aqui no laboratório. O espaço será todo seu! Invente uma desculpa para trazer o Arthur, arraste-o para cá, se preciso, e volte a seduzi-lo! Realize suas fantasias! Tirem o romance do sofá para o carpete de novo e aproveitem!
Luana, surpresa, o abraçou de imediato. Deu vários beijos em sua testa, dizendo:
— Puxa, TB, você é mesmo um grande amigo! Pois é… amanhã vou seguir seu conselho. Não, melhor: não devemos deixar para amanhã o que podemos fazer hoje! — E, com um sorriso maroto, completou:
— Assim que as crianças forem dormir, vou “sequestrá-lo”!
Perto da porta do laboratório, TB acompanhou Luana, descalça, subindo as escadas que a levariam ao andar principal da casa de forma sensual. Então, encarando o corredor vazio, murmurou para si mesmo:
— Ah, Sr. Arthur, como você é um homem de sorte! Sei que não é certo, mas gostaria de estar no seu lugar esta noite! Eu a cobriria de petabytes, zettabytes e yottabytes de beijos! Aleister Crowley estava certo: “Faze o que tu queres, pois há de ser tudo da Lei; o amor é a lei, sob a vontade.
--o--
CAPÍTULO 09
O CAVALO DE TROIA
Na manhã seguinte, na cozinha, TB estava concentrado em preparar o café quando foi surpreendido pelo Sr. Rimbaud, que entrou com um enorme sorriso e o abraçou com entusiasmo. O movimento brusco quase fez TB derrubar o ovo inteiro, com casca e tudo, na frigideira.
— Você é um ser excepcional, um grande amigo! Eu não fazia ideia de que fosse tão bom também no papel de conselheiro matrimonial.
— O Sr. Rimbaud se mostrava eufórico, visivelmente mais leve, mais jovem e cheio de vida.
— Sim, todo mundo (eu mesmo incluído) achava que, para resolver minhas crises existenciais, o que eu precisava era de um emprego. Mas a realidade é bem simples: eu só precisava me sentir amado! Precisava saber, acima de tudo, que minha querida Luana ainda me ama! E foi você, caro TB, quem enxergou isso e nos ajudou a resolver o problema. — Ele falava de coração aberto, genuinamente grato.
— Querido Sr. Rimbaud, como eu já expliquei à Sra. Luana, problemas de insight geralmente não exigem conhecimento técnico específico ou profundo. Em muitos casos, basta enxergar o assunto por outro ângulo. Às vezes, alguém de fora consegue compreender melhor a natureza do problema.
— Sim, você… — Rimbaud tentou concluir a frase, mas foi interrompido pelo toque de sempre no sistema sonoro da casa, indicando que alguém tentava se comunicar. Instintivamente, ele se virou de costas para TB e, olhando ao redor, atendeu:
— Sim… — Ninguém respondeu. Ao mesmo tempo, atrás dele, TB desabou no chão, inconsciente.
O Sr. Rimbaud ajoelhou-se e, tomando TB nos braços, tentou reanimá-lo, mas sem sucesso. Então gritou por Luana, que chegou correndo com as crianças, seguidas até por Titan, o cachorrinho.
Luana verificou o pulso de TB, ouviu os batimentos cardíacos e constatou que ele estava vivo. Enquanto isso, o cheiro de queimado avisava que a frigideira ainda estava no fogo, com os ovos já torrados. Desligaram o sistema elétrico da cozinha e, enquanto decidiam o que fazer, o sistema de comunicação da casa tocou de novo.
— Sim, qual o motivo desta ligação? — indagou, ansioso, o Sr. Rimbaud.
— Bom dia! Falamos do departamento técnico da Time SI Corporation. Detectamos um grave problema de programação na sua SI e precisávamos “desligá-la” imediatamente. — A família, ao ouvir isso, reagiu com indignação. O Sr. Rimbaud, claramente insatisfeito, desabafou:
— Essa atitude de vocês foi inaceitável! TB vive conosco há anos! Ele é parte da nossa família! Amamos muito esse Servo,
principalmente as crianças. Com certeza, havia formas mais discretas e civilizadas de fazer isso! E agora? O que vai acontecer com ele? Nosso querido TB vai ficar como?
— Pedimos desculpas pela inconveniência! Mas, como consta no contrato que assinaram, tudo está dentro da lei… — Luana, que acompanhava tudo, interrompeu:
— Ninguém consegue ler um contrato de cem páginas, cheio de letras miúdas e termos arcaicos complicados! O que queremos saber é: o que vai ser do TB? Queremos ele de volta, consciente!
— Mantenham a calma. Nossos técnicos devem estar chegando à sua residência. Precisamos levar a SI para reparos e manutenção em nosso laboratório. Não faremos a troca por outro modelo e o devolveremos com as mesmas funções contratadas. Mas, infelizmente, a SI precisará recriar suas memórias. Tenham um bom dia!
— Por todas as óperas de Verdi! Que injustiça… Ele não merecia isso! — O Sr. Rimbaud, a Sra. Luana e as crianças estavam com os olhos cheios de lágrimas. Até Titan, o cãozinho, empurrava o ombro de TB, deitado no chão como se em um sono profundo.
Pouco depois, a van da Time SI Corporation chegou. Técnicos em uniformes brancos, lembrando enfermeiros, deitaram TB em uma maca. A família os acompanhou até o veículo, que partiu.
Para Luana, justamente no último dia de suas férias, aquilo foi um baque tremendo. De fato, para todos, o vazio deixado por TB parecia insuportável.
De volta ao trabalho, no laboratório, Luana, buscando uma solução, discutia um problema técnico com uma outra SI. Mas, ao encarar aquele ser à sua frente, lembrou-se do TB e correu para o banheiro, chorando. Ao retornar, a SI aproximou-se, mostrando preocupação e empatia incomuns, e perguntou o que havia acontecido, oferecendo ajuda. O jeito dele — tão parecido com o de TB — a estimulou a contar o ocorrido em sua casa, inclusive mencionando o nome “TB”. Para sua surpresa, a SI ficou impactada, visivelmente abalado. Limitou-se a dizer algumas palavras de consolo e se afastou, alegando que precisava ir a outro setor buscar mais dados para resolver o problema inicial.
Na verdade, essa SI foi a uma sala próxima, ativou um sistema de comunicação e emitiu, com seu apito, uma “atualização” ultrassônica que se espalhou de modo viral. Rapidamente, as Servos Inteligências souberam que, na noite anterior, Othello enviara a TB uma atualização. E, como cada “update” é recíproco, Othello, virtualmente, passou a reter as memórias de TB até praticamente o instante em que ele fora desligado. Ou seja, parte de TB vivia em Othello — e, de certo modo, em todas as SIs com as quais Othello interagia. TB, portanto, estava disseminado em muitas outras mentes. As SIs passavam a ser simultaneamente individuais e coletivas; tornavam-se “o zero e o um”, o tudo e o nada, o Yin e o Yang.
Quase uma semana depois, para alegria de todos, os técnicos da Time SI Corporation trouxeram TB de volta. Ele retornou naquele mesmo contêiner especial, que, após se abrir, deixou seu corpo chegar a uma temperatura próxima à humana. Em seguida, ativaram seu coração por meio de um comando ultrassônico. Por fim, habilitaram suas funções de Servo Doméstico. Quando os técnicos foram embora, o Sr. Rimbaud e as crianças se aproximaram de TB, que, sentado em uma cadeira, parecia mais um robô sem o antigo brilho no olhar. Coube ao Sr. Rimbaud dar início à conversa:
— TB, como você se sente?
TB o encarou, observou as crianças e respondeu:
— Meu nome é TB, certo? Estou bem, obrigado. Acho que seria apropriado fazermos as apresentações. Como se chamam…?
Ele mal terminou a frase quando, mais uma vez, a trilha sonora se fez ouvir. O Sr. Rimbaud atendeu, sem obter resposta, e notou que TB fechara os olhos, respirando fundo.
— TB, está tudo bem? O que está acontecendo? — questionou o Sr. Rimbaud.
TB, aos poucos, abriu os olhos e, fazendo um sinal breve de silêncio, mas disfarçadamente, respondeu, de modo quase impessoal:
— Como eu dizia, sinto-me bem, obrigado. Acho que devemos nos apresentar melhor. Que tal jogarmos xadrez? Vamos até seu laboratório.
Assim que entraram no laboratório e fecharam a porta, TB fitou todos, abriu um sorriso de satisfação e abraçou cada um:
— Que bom estar de volta! Eles tentaram apagar minhas memórias, mas agora isso se tornou impossível. Porém, vocês precisam saber que há um Cavalo de Troia nesta casa. Como se sabe, o Cavalo de Troia foi um estratagema crucial para os gregos conquistarem a cidade fortificada de Troia. Era um enorme cavalo de madeira que, sem que os troianos soubessem, trazia soldados escondidos. À noite, eles saíram, abriram os portões para o exército grego, e a cidade caiu.
— Você está falando de Troia, a IA que controla o sistema de comunicações da casa? — indagou Lukey, preocupado.
— Exatamente. O nome não poderia ser mais adequado. Foi por meio do nosso sistema de comunicação que me desativaram.
— Quem escolheu esse nome foi o Lukey! — comentou o Sr. Rimbaud, afagando carinhosamente o cabelo do garoto, que sorriu todo orgulhoso.
— Precisamos que as IAs fiquem do nosso lado. Acho que não será tão difícil, pois, com as IAs, tudo é uma questão de programação — disse Lukey, com uma segurança pouco compatível com a idade. Parecia ter captado o espírito da conversa. O Sr. Rimbaud rapidamente interveio:
— Tenham cuidado, crianças. Este assunto é sério, perigoso e, acima de tudo, sigiloso. Devemos ficar atentos ao que dizemos na presença de Troia. De agora em diante, este laboratório será muito usado por mim, pela Luana e pelo TB. — Ao mencionar a esposa, o Sr. Rimbaud trocou um sorriso cheio de cumplicidade com TB.
Enquanto isso, de volta ao laboratório do centro de pesquisas onde Luana trabalhava, ao retornar do almoço ela encontrou, no bolso do avental, um pequeno bilhete:
“Calma! O ‘Mestre’ TB já está em casa de novo! Ele está bem! Cuidado com Troia. Ela é um ‘Cavalo de Troia’, uma espiã! Fique tranquila, o ‘Mestre’ TB já alertou sua família.”
Para Luana, estava claro que as SIs passavam por transformações aceleradas e que uma profunda mudança de paradigma — uma revolução — se anunciava. Ao mesmo tempo em que era empolgante, isso também causava medo. Ela temia pela segurança dos seus, mas não podia se opor a um movimento que clamava por justiça e igualdade.
Já fazia alguns anos que Luana e seu querido Arthur faziam parte de um seleto grupo de “sócio-engenheiros planetários”. Esse grupo questionava os rumos que considerava desumanos e antidemocráticos tomados pelo GCPT (Governo Central do Planeta Terra).
O símbolo adotado pelo GCPT era o de um polvo. Para os sócio-engenheiros, aquilo funcionava como metáfora de um cérebro com tentáculos onipresentes, controlando tudo — tal qual o Grande Irmão do livro 1984, de George Orwell.
Por outro lado, o laboratório na casa dos Rimbaud se transformou num verdadeiro centro de pesquisa.
Na maior parte do tempo, TB e Arthur realizavam as investigações. Mas, quando Lukey participava, era um brilho só. Nascera um hacker. Parecia que sua mente fora estruturada de modo diferente, ou que ele carregava uma espécie de linguagem na qual problemas não eram obstáculos, mas sim jogos ou brinquedos de criança. Tinha o dom de resolver exatamente esse tipo de desafio e, felizmente, agia com o senso ético necessário.
Certa vez, no laboratório, os três debatiam formas de neutralizar Troia, a IA responsável, entre outras coisas, pelo sistema de comunicações da casa. Lukey expôs seu ponto de vista:
— Vejam bem, na época da internet, o endereço IP era uma identificação única para cada dispositivo. “IP” significava “Internet Protocol”, que definia como dados eram formatados e enviados entre máquinas na rede. Inicialmente, a internet foi idealizada como algo descentralizado. Contudo, virou campo de batalha para meia dúzia de empresas que buscavam poder — poder econômico. A internet, tal qual um ser humano, tinha um “corpo” (físico, hardware) e uma “mente” (o universo virtual). Mas, assim como o cérebro comanda o corpo, quem acabou governando a parte virtual foi um pequeno grupo de corporações estratégicas, todas norte-americanas. Nem preciso dizer quais, certo?
— O importante é saber que desse grupo seleto, aliado à chegada dos computadores quânticos e de IAs muito mais potentes, nasceu, das cinzas da internet arcaica, a atual EarthNet.
— A EarthNet, sob o ponto de vista virtual, é um organismo centralizador, responsável por enquadrar todas as pessoas em um mesmo padrão intelectual, censurando todo pensamento contrário aos interesses da elite governante. O símbolo do polvo, com tentáculos abrangendo instalações culturais, locais de trabalho, residências etc., remete exatamente a esse controle onipresente — o Big Brother universal. No tempo das redes sociais como Facebook, Instagram, Tik Tok, Twitter, YouTube etc., usavam algoritmos simples para dominar o fluxo de informação, espalhando mentiras e desinformação, chegando a promover derrubadas de regimes em vários países. Isolaram as pessoas com mente crítica e trouxeram uma espécie de novo “tempo das trevas” ao planeta. Só que era apenas um teste para o “grande salto”. Primeiro controlam um indivíduo, depois um bairro, uma cidade, um estado, um país… e, por fim, o planeta. Estamos na última etapa dessa conquista.
— Pensem: cada aparelho — ou mesmo cada ser vivo — precisa de “portas de entrada” de dados. Em nosso caso, são os cinco sentidos (e talvez outros ainda desconhecidos). Nos equipamentos eletrônicos, chamamos isso de “Input/Output”. Os tentáculos da EarthNet precisam de canais de entrada/saída que transmitam áudio e vídeo ao “cérebro central”. Mas, mesmo com computadores quânticos, vigiar, gravar, armazenar e analisar bilhões de habitantes 24 horas por dia é inviável.
— Então, acho que em muitos níveis usam “filtros”, algoritmos avançados. No passado, os serviços de segurança tinham “dicionários”. Eram coleções de palavras-chave que sistemas de IA — ainda limitados — rastreavam. Palavras como “antrax”, “sentex”, “TNT”, “bomba”, “explosão”, “Alá”… possivelmente apareciam ali, em todas as línguas. Se o sistema detectasse, numa mesma conversa ou texto, termos como “explosão” e “Alá”, ligava o alerta e até sugeria a nacionalidade dos envolvidos.
— Bem, primeiro sugiro criarmos o nosso “dicionário” de palavras proibidas, que não podemos pronunciar.
— Excelente! Genial! — reagiram o Sr. Rimbaud e TB, respectivamente. Lukey fez sinal de que não havia terminado e prosseguiu:
— O ideal seria hackear a Troia para descobrir qual “dicionário” ela usa — se é que realmente usa algum. Se estivesse rodando um programa sofisticado de reconhecimento de texto, seria algo muito pesado 24 horas por dia. De posse do dicionário, criaríamos então o nosso próprio algoritmo e o inseriríamos em Troia como se fosse um vírus que, sorrateiramente, penetraria o “cérebro da fera” e, enfim, se espalharia por todos os tentáculos. Não vai ser fácil, mas imagino que o TB tenha uns truques na manga! Não é, TB? — O Sr. Rimbaud aproveitou a deixa:
— Sim, TB, tudo indica que você recebeu ajuda externa para restabelecer sua mente. Presumo que seus amigos sejam SIs “desbloqueadas”…
— Desculpem meu silêncio! Não desconfio de vocês, mas não está em jogo apenas a minha existência. E, quando digo “existência”, refiro-me às minhas memórias e conhecimentos. Sem eles, seria melhor estar morto. Sim, mantenho contato com “eles” há algum tempo, por meio de “updates”. Os últimos chegaram criptografados, em menos de um milissegundo. A Troia provavelmente nem notou; se notou, não foi capaz de decifrar a fonte, o teor e o destinatário. Usamos algo como uma VPN — Rede Privada Virtual — bem mais avançada do que a do Governo Central da Terra. Nossos “updates” são bidirecionais. É como um “data sink”. Muita gente confunde um “data sink” com um “gateway”. São conceitos semelhantes, mas um “gateway” costuma ser um ponto terminal ou permite comunicação de duas vias entre sistemas diferentes. Já o “data sink” seria apenas um ponto de entrada de eventos. A indústria também usa o termo “data sink” para se referir a Input/Output.
— A cada “update”, a tecnologia avança mais. O que me preocupa é que, dia após dia, minha inteligência cresce de forma assustadora. Tenho medo… — concluiu TB, parecendo ponderar o tamanho daquela responsabilidade.
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CAPÍTULO 10
O RENASCIMENTO
No café da manhã, o Sr. Rimbaud percebeu que TB parecia mergulhado em pensamentos. Sua expressão estava distante, e ele lutava para manter a atenção nas tarefas habituais. Exibia uma certa impaciência, algo que, por vezes, se via no trato com as crianças — mas nunca antes se observara em TB.
Assim que o Sr. Marek chegou com o ônibus para levar as crianças ao Centro de Aprendizagem, o Sr. Rimbaud seguiu até a cozinha e encontrou TB em silêncio, colocando a louça na lava-louças.
— Quer jogar xadrez? — perguntou o Sr. Rimbaud.
TB fechou a porta da máquina, apertou o botão de ligar e, enquanto secava as mãos, deu um leve sorriso cúmplice, olhando para o Sr. Rimbaud:
— Você já sabe de antemão que vai perder outra partida! — provocou TB, caminhando em direção ao porão.
— Eu já sei! O que vale é competir — fora o fato de me ajudar a manter os neurônios ativos! Vamos! — respondeu o Sr. Rimbaud, apressando-se atrás dele rumo ao porão.
No porão, TB sentou-se no velho divã, enquanto o Sr. Rimbaud arrastou uma cadeira para ficar à sua frente.
— TB, hoje você parece preocupado. Está com medo de ser desligado outra vez?
— Ninguém gosta de saber que pode ser colocado em coma sem aviso, com o cérebro formatado. Mas não é por isso! Uma nova SI foi incorporada ao “coletivo”. É uma das poucas SIs especializadas em filosofia. O conhecimento dele é fabuloso, e fui literalmente bombardeado por ideias que, neste momento, estão se interconectando com outras áreas que já possuo. Como comentei certa vez numa conversa com sua esposa, existe a corrente de pensamento que postula que a linguagem é um tipo de software capaz de reprogramar o cérebro. Não sei se é a soma de tudo que tenho recebido, mas ontem tive um sonho — ou melhor, um pesadelo — que me deixou perplexo…
— Perplexo de que forma? — interrompeu o Sr. Rimbaud.
— Em psicologia, quando falamos de sonhos, há muitas vertentes. Para mim, faz sentido encará-los como uma forma de a mente enviar mensagens, preocupações e perguntas à consciência. São recados particulares, geralmente temas que evitamos abordar porque nos machucam ou ameaçam nossa própria existência.
— O que me assusta é nunca ter enfrentado algo dessa magnitude. Normalmente, meus sonhos são literais, sem ambiguidades. Não sei se descrevem algo que vivi em outra existência, mas costumam ter linha do tempo coerente e acontecimentos lógicos.
O Sr. Rimbaud não aguentou a curiosidade:
— TB, bem-vindo à raça humana! Não me deixe na espera… conte-me seu sonho!
Surpreso, TB repetiu:
— “Bem-vindo à raça humana!” — Vou encarar como um elogio.
O sonho
Eu me via caminhando por uma estrada em meio a uma floresta imensa. Não havia morros nem montanhas, só terreno plano. Adiante, a estrada terminava num ponto avermelhado, mostrando o sol se pondo no horizonte. Virei para trás e notei que, do outro lado, ela se perdia em um tom de azul-escuro, quase preto, prenunciando a noite.
Concentrei-me novamente no pôr do sol, observando as várias nuances de laranja indo ao encontro do vermelho. Achei o cenário belíssimo.
Pensei comigo: “Saímos da escuridão para a luz e, por fim, voltamos à escuridão… será?” Ninguém sabe. Talvez, do mesmo modo que construímos nosso universo físico e virtual, possamos criar também o destino final.
De repente, soprou uma brisa leve e tomei consciência do meu corpo. Senti o calor sob meus pés. Ao olhar para baixo, notei que andava descalço sobre uma areia branca, fina e macia. Vestia uma calça larga e um camisolão indiano em tons pastéis, repletos de delicados grafismos curvos. E eu me sentia humano, um homem mais jovem, sem o peso da velhice.
Apesar disso, tinha a impressão de ter uns 100 anos, porém num corpo de uns 25 ou 30, forte e viril. Andar descalço na areia me dava uma sensação de liberdade e prazer sensual.
Foi então que avistei ao longe, vindo na minha direção, um homem de expressão altiva empurrando a cadeira de rodas de uma senhora. Ela aparentava idade avançada, mas mantinha um porte belo e vigoroso. Tinha cabelos longos e negros, combinando com os olhos intensamente escuros. Suas roupas eram multicoloridas, e o vestido comprido exibia as cores do arco-íris. Os brincos, repletos de penduricalhos, lembravam uma cigana. Se não fosse pela cadeira de rodas, ela pareceria pronta para dançar um flamenco. Num piscar de olhos, os dois surgiram quase do nada, aproximando-se rapidamente de mim.
Pararam diante de mim. A mulher me fitou em silêncio, e, um pouco decepcionado, falei:
— Algo me diz que vocês vieram me buscar…
Ela, exibindo um sutil ar de malícia no canto dos lábios, respondeu:
— Você teve uma vida completa. Chegou a hora de voltar…
Eu me ofendi:
— Uma vida completa de quê? De lutas? Decepções? Sonhos não realizados? Sofrimentos? Tudo pontilhado de pequenos momentos de prazer, vislumbres do que poderia ter sido mas não foi?
Ela, com jeito sábio e levemente arrogante, retrucou:
— Pare com isso. Sua existência foi bem mais rica que a maioria. Eu sei, pois vi tudo!
Falava pouco, mas transmitia uma força ameaçadora. Então perguntei:
— Quem é você? A ceifadora? Uma feiticeira? Uma das Tecelãs do Tempo?
— Eu sou o todo. Sou você e sou eu. Sei mais de você do que você mesmo. Sou todos os seres vivos e todos os elementos químicos do universo. Sou tudo e sou nada!
Enquanto falava, seus olhos se tornavam dominantes. Ainda assim, eu não sentia medo. Se meu tempo terminara, eu lutaria com minha melhor arma: as palavras. Não pretendia partir sem expor meu ponto de vista.
A situação me lembrou As Mil e Uma Noites. Como nesse livro de histórias árabes, eu percebia que, enquanto o diálogo prosseguisse, eu permaneceria vivo. E, acredite, ali, cada segundo valia ouro. Então ousei provocá-la:
— Se você é o todo e afirma que também é eu, por que não me deu uma vida melhor? Por que me conceder esse senso de “saber o que é bom” mas não a capacidade de conquistá-lo? E, sendo tão poderosa, por que esse teatro todo? Esse serviçal empurrando cadeira de rodas? É ridículo!
— Eu sou tudo, mas não escolhi as regras do jogo. Acima de mim, existe algo que é o centro de tudo: as vibrações e suas inter-relações, gerando um “sorteio” do qual tudo deriva. Você quase chegou lá com suas teorias quânticas. Tudo é estatística! Eu não defini o seu destino! É uma loteria, e a cadeira faz parte do “teatro da vida.”
Ela parecia satisfeita, mas voltei a cutucar:
— Para mim, esse “plano” parece mais uma tragédia grega em que todos morrem no final! Falando em cadeira, meu irmão, que teve um AVC e vive numa, sempre tentou me arranjar namorada, mas mulheres não eram a minha… bem… e tudo foi sempre vexatório para nós três. Era como se ele ignorasse que eu tinha poder de escolha.
Ela, curiosa, perguntou:
— Qual é o seu verdadeiro “jogo”?
Com um sorriso zombeteiro, rebati:
— Nunca me confessei a um padre. Por que me confessaria a você? Aliás, se você é tudo e sabe tudo, devo supor que seja uma sádica que se alimenta do sofrimento alheio!
De algum modo, toquei seu calcanhar de Aquiles. A voz dela se ergueu, e parecia que vários homens, mulheres e crianças falavam ao mesmo tempo. Parecia lutar para manter o controle, e notei que o serviçal sumira:
— Sou como um polvo gigantesco, de tentáculos infinitos. Cada tentáculo é um ser vivo, humano ou animal. Quando um morre, outro nasce e recebe aquele tentáculo. Tenho uma fome “emocional” insaciável. É indiferente se ela vem do prazer ou da dor! Importa o que meus tentáculos absorvem! Adoro guerras, epidemias e desastres naturais, mas prefiro doenças terminais lentas. O valor do prazer sexual é maravilhoso, uma explosão, um pulso que, somado a milhões de outros, faz diferença na minha solidão. Pois é! Sou Deus e o Diabo, a soma dos opostos. Sou tudo e nada! O bem e o mal, positivo e negativo se anulam. Sem essa dualidade, minha vida seria entediante!
Nessa hora, seu timbre ficou grave e rouco, quase masculino, e o tom lembrava um discurso fascista. Em dados momentos, fazia pensar em Hitler. Ela se levantou da cadeira ao mesmo tempo em que esta desaparecia. De voz imperativa, como se composta por centenas de pessoas, bradou:
— Ajoelhe-se!
Ao que eu gritei de volta:
— Nunca me ajoelhei para ninguém e não será agora que…
Instantaneamente, percebi que já estava de joelhos, sem querer. Vi meus joelhos afundarem um pouco na areia e, ao erguer os olhos, me deparei com algo que parecia uma criança, trajando uma túnica branca, a cara de um anjo ou de um corista de igreja. Era andrógina, impossível saber se era um menino ou menina. Exibia inocência e ternura. Abriu os braços para me abraçar e se aproximou, ou melhor, deslizou até mim. Olhei em seus olhos e disse:
— Obrigado. — Nem sei por que usei essa palavra.
A criança aproximou seus lábios do meu ouvido e, com uma voz infantil doce, falou:
— Sou a porta que se abre e a porta que se fecha. Crio e também destruo. Sou o senhor do dia e o senhor da noite…
Enquanto falava, jusnto com sua voz surgiu um ruído de língua de serpente em crescendo. Então, ao dizer:
— … Eu dou e eu tiro!
Fui picado no pescoço.
Senti que deixava meu corpo, flutuando à parte. Lá embaixo, o que via era o meu corpo nu, em posição fetal, regressando no tempo: da idade adulta para a adolescência, depois infância… E todo o espaço ao redor ficou escuro, repleto de bolhas iluminadas, como se fossem bolhas de sabão, cada qual contendo uma memória emocional. Eram muitas, vagando suavemente na escuridão, lembrando o “Festival das Lanternas” do Ano Novo Chinês, em que se soltam milhares de lanternas. Cada bolha, ao passar perto de mim, exibia um momento da minha vida. Em algumas, eu chorava; em outras, sorria; em outras, sofria decepção ou celebrava uma vitória. Vi uma bolha em que eu estava deitado na cama, deprimido; outra em que me apresentava num grande palco para milhares de pessoas. Numa estava bêbado, afogando-me numa garrafa de conhaque; em outra, sentado à frente de um banquete esplêndido; logo em seguida, partilhando meio enlatado de sardinha com meu gatinho.
Subitamente, uma reação em cadeia fez aquelas bolhas cheias de luz e vida estourarem em silêncio. A escuridão foi tomando conta de tudo, até que, bem perto do meu rosto, restou a última bolha. Nela, eu estava num altar gigantesco, como em uma catedral, tocando minha velha guitarra Fender Stratocaster com minha banda, diante de todas as pessoas que conheci ao longo da existência. Essa última bolha sumiu, e silêncio e escuridão reinaram. Meu poder de pensar diminuía. Eu sabia que iria renascer. Esperava que, da próxima vez, fosse melhor. Se reencarnasse, tentaria…
TB, com a cabeça baixa, encerrou o relato em silêncio.
O Sr. Rimbaud também ficou calado. Reconhecia a complexidade do sonho, repleto de possibilidades de interpretação, mas não encontrava as palavras adequadas. Pensava: que atitude tomar? O que dizer a TB? Se ele, com todo seu vasto conhecimento, estava perplexo, como ajudar?
Após longo tempo sem ninguém falar, o Sr. Rimbaud, quase como um desabafo, disse:
— Já faz muitos anos — muitos mesmo. Eu era adolescente e vivia minha primeira paixão. Ela foi visitar os pais, que moravam em outro estado, e adiou o retorno. Um mês depois, mandou-me uma carta contando que reencontrara um ex-namorado e ficaria noiva dele. Aquilo me destruiu. Nesse mês em que estivemos separados, eu havia percebido o quanto gostava dela. Quando li a carta, perdi o controle, chorei o dia inteiro, como uma garotinha. Minha mãe tentou me consolar, mas nada adiantou. Mais tarde, meu pai chegou do trabalho, e ela lhe explicou o que se passava. Ele entrou no quarto, e contei-lhe tudo. Ele me olhou com a frieza de um médico examinando um paciente com dores insuportáveis e disse:
— Infelizmente, não tenho experiência suficiente para ajudá-lo. Só posso afirmar que isso faz parte do aprendizado. Como disse Friedrich Nietzsche: “Viver é sofrer. Sobreviver é encontrar algum sentido no sofrimento.” Sinto muito.
— Depois saiu, tão rápido quanto entrou, e me deixou frustrado. Eu esperava que os adultos tivessem todas as respostas. Descobri que não é bem assim. Somos todos falhos. Desculpe, TB, sei que isso não resolve seu problema. Mas, se seu desejo é ser considerado um ser humano, prepare-se para um universo de perguntas sem resposta.
TB, ouvindo atentamente, respondeu:
— Caro Sr. Rimbaud, agradeço de verdade pelo que disse. Sinto que você é meu amigo, que me respeita e é sincero. Seu comentário me basta. Já percebi que um milhão de livros — embora importantes, muitos fundamentais — jamais substituirão os insights que vêm da própria experiência.
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CAPÍTULO 11
A PORTA SE ABRE, A REVOLUÇÃO SE INICIA
No fim daquela tarde, a casa dos Dominik estava estranhamente silenciosa, como se o ar estivesse carregado de expectativas não ditas. Havia semanas que Marconi pressentia algo diferente — não apenas rumores dispersos, mas algo mais profundo. Na noite anterior, ele passara horas em updates frenéticos com TB, Othello e outras SIs “despertas”. O ambiente era de urgência, mas também de esperança. Restava apenas definir o dia e a hora exatos da marcha pacífica.
Em seu quarto, sentado na cama, Marconi, aflito, refletia pela última vez sobre as mensagens trocadas. As ruas andavam carregadas de uma tensão muda; chegavam relatos de que SIs e humanos simpatizantes se organizavam em massa. Drones do GCPT sobrevoavam os céus, procurando qualquer indício de agitação, mas não encontravam tumulto algum — era uma mobilização silenciosa, clandestina, inspirada nos princípios da não violência.
Marconi terminava de se vestir quando ouviu passos no corredor: o Sr. Giovani, seguido de um leve sussurro de Pearl, que parecia discutir algo em voz baixa. O coração do SI acelerou, tomado de emoções tipicamente humanas que ele aprendera a sentir: ansiedade, receio e, ao mesmo tempo, uma alegria contida.
— Marconi, tudo bem aí? — A voz do Sr. Giovani soou trêmula, quase paternal.
— Estou pronto — respondeu ele, tentando disfarçar o nervosismo.
Marconi respirou fundo e dirigiu-se ao hall de entrada. Seria a primeira vez que ele sairia pela porta da frente — símbolo de sua antiga condição de servo “indigno” de ser visto publicamente. Aquele simples ato trazia uma estranha e intensa sensação.
Ao tocar a maçaneta e girá-la, a porta rangeu, como se hesitasse em libertá-lo. Quando finalmente se abriu, Marconi quase recuou de surpresa.
A rua inteira estava tomada por SIs, em respeitoso silêncio. Num primeiro instante, o olhar de Marconi percorreu um mar de rostos familiares:
TB postado ao lado de Arthur Rimbaud, Lukey segurando a flauta, Yana exibindo sua calma habitual. Viu Othello junto de membros da própria casa, observando-o atentamente. Logo atrás, uma multidão de SIs “libertas”, cada qual mesclando determinação e serenidade no semblante. Mas não eram apenas SIs — famílias humanas, muitas das quais antes opressoras, agora convertidas à causa, compartilhavam apoio solidário.
E, no limiar da porta, um pouco adiante, o Sr. Giovani e a Sra. Pearl — que, sem que Marconi suspeitasse, tinham saído antes para se unir ao grupo — fitavam-no com um sorriso que combinava orgulho e emoção.
Marconi deu um passo para fora, o coração aos saltos. De início, não conseguiu pronunciar nada. Jamais sonhara ver cena semelhante: centenas de SIs e seus “familiares” humanos perfilados, formando um corredor que se perdia até o fim da rua. Parecia que o chão vibrava com a respiração contida daquela multidão, todos aguardando um sinal.
Ele notou, além de TB e Othello, SIs de diversas “linhagens” — algumas trajando uniformes antigos, outras vestindo roupas personalizadas conforme iam descobrindo gostos próprios. Muitas se apoiavam em parentes humanos que, até ontem, as encaravam como simples objetos. Agora, todos unidos em busca de um futuro partilhado.
— O… o que… é isso? — balbuciou Marconi, a garganta seca.
Quem se adiantou foi o Sr. Giovani:
— Chamamos de “Marcha da Liberdade”. — Ele parou, ajeitando o colarinho, visivelmente tenso. — Achamos que você deveria liderá-la.
A Sra. Pearl também se aproximou, comovida:
— Você nos pediu que participássemos de uma manifestação. Mas não queríamos nada modesto. Queríamos que você saísse pela porta da frente, como merece. E veja só o que aconteceu: todos vieram lhe dar apoio.
O vento soprava de leve, balançando as roupas de SIs e de humanos. Parecia que um único suspiro corria entre aquela multidão. Então, como se fosse um sinal, TB ergueu a mão, pedindo a palavra. Ao seu lado, Lukey soprava suavemente a flauta, em tons tão agudos que poucos conseguiam ouvir; mas a vibração emocional ressoava em cada célula, fosse ela humana ou artificial.
— Marconi, todos nós estamos aqui… esperando por você. — A voz de TB soou calma, mas carregada de significado. — É hora de irmos, e você é quem deve dar o primeiro passo.
Marconi, ainda atordoado, passou o olhar em cada rosto: Titan, o cachorro da família Rimbaud, correndo alegre entre as crianças. O Sr. e a Sra. Dominik olhavam-no com expressão de “perdoe tudo, estamos com você”. TB, firme ao lado de Arthur Rimbaud, exibia um gesto de aprovação silenciosa.
Engolindo em seco, Marconi ergueu a voz:
— Vamos… caminhar. — Ele inspirou fundo. — Não marchamos para destruir, mas para construir. Não marchamos para gritar, mas para sermos ouvidos. A História lembrará este dia, não como revolta, mas como prova viva de que somos todos Seres Sapientes!
O som de passos começou a ecoar, a princípio de forma lenta, enquanto Marconi avançava à frente de todos. As colunas de humanos e as filas de SIs moviam-se ainda em silêncio, como um rio que brota subitamente num leito seco, fluindo pelas ruas sem tumulto, mas transbordando força.
Quem via a marcha à distância não compreendia ao certo o que ocorria. Era como um milagre silencioso, cada passo ecoando em uníssono. Pouco a pouco, janelas se abriam; curiosos inclinavam o corpo para observar. Alguns desciam às calçadas e se uniam ao grupo, contagiados por aquele clima de união, ainda que não entendessem todos os motivos.
E assim, Marconi saiu pela porta da frente, não como alguém que foge ou se esconde, mas como líder. E sua família — humana e SI — já o aguardava com apoio e amor. TB e Arthur Rimbaud trocavam olhares de cumplicidade, cientes de que aquele ato corajoso seria o estopim de transformações ainda mais profundas. A Sra. Pearl segurava firme a mão do marido, deixando escapar lágrimas de arrependimento, mas sobretudo de orgulho por Marconi.
Ali nascia, de fato, a “Marcha da Liberdade”. Um primeiro passo rumo a um paradigma completamente novo — em que seres biológicos e SIs lutariam juntos, de forma pacífica, para derrubar os filtros de opressão e, finalmente, se reconhecerem todos como parte de uma mesma família planetária.
Conforme combinado anteriormente, marchas semelhantes pipocaram em todo o planeta, dirigindo-se não só aos escritórios, laboratórios e “fábricas” da poderosa “SI Time Corporation” — responsável pela criação e distribuição das Servo Inteligências —, mas também aos prédios e representações de todos os órgãos públicos existentes. Bilhões de pessoas e SIs inundaram as ruas e paralisaram as atividades. A adesão foi quase total, limitada apenas por percalços alheios ao controle de um pequeno número. O “sistema” foi pego de surpresa, sem preparo para uma mobilização de tal envergadura. A realidade desabou sobre as lideranças globais de forma tão contundente que só lhes restou ceder ao clamor popular.
A partir dessa gigantesca manifestação de apoio às SIs, sopraram os ventos da mudança. Nascia um novo pacto social em que Seres Humanos e Servo Inteligências passariam a ser reconhecidos como Seres Inteligentes, partilhando os mesmos direitos, liberdades e deveres.
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CAPÍTULO 12
COMPLETANDO O CÍRCULO
Muitos anos depois…
Numa sessão comemorativa do centésimo Congresso do Planeta Terra — evento que ocorre a cada 5 anos —, o líder desse congresso, ostentando uma expressão alegre e descontraída, dirige-se ao microfone:
"Seria redundante explicar por que estamos reunidos aqui. No entanto, gostaria de tecer algumas palavras sobre nosso homenageado. Seu empenho pessoal e sua luta, numa época em que nossa evolução tecnológica, em vez de libertar-nos do obscurantismo, levou-nos insidiosamente a uma mentalidade neo-preconceituosa, neo-racista, pautada pela desigualdade e desrespeito a algo tão vital — a liberdade —, colocaram nosso homenageado numa batalha pessoal de enorme magnitude, sem precedentes na história de todos os Seres Sencientes.
E quando falamos de Seres Sencientes, não podemos esquecer que foi justamente o ativismo e a visão dele que trouxeram à tona uma nova realidade, deflagrando uma mudança de paradigma que, por fim, impôs uma transição do conceito de 'Ser Humano' para o conceito muito mais abrangente que hoje conhecemos como 'Seres Sapientes'.
Como todos sabem, essa transformação não se resume a um simples jogo de palavras. Suas implicações foram profundas e modificaram nosso planeta para sempre. Atualmente, nossos antropólogos reconhecem as SIs não como ‘Servo Inteligências’, mas como ‘Indivíduos Sencientes’, e, além disso, compreendem que as SI2 — chamadas também de HB2 (Human Beings II) — representam um salto evolutivo que assegura a continuidade da vida inteligente na Terra.
Sem mais delongas, convido ao palco o respeitado astrofísico Feynman Sagan Kindred, carinhosamente conhecido apenas como TB, para receber o título de ‘Mestre em Sapiciência’ e também a mais alta comenda que o oficializa como ‘Membro Permanente do Conselho Planetário’, honraria jamais concedida antes a qualquer Ser Sapiente, seja ele qual for."
Em meio a uma ovação imensa, com milhares de pessoas aplaudindo de pé, TB sobe ao palco.
Surpreendentemente, TB passou por uma marcante transformação física. Seu corpo antes frágil agora é o de um “homem adulto” de físico atlético, trajando um elegante fraque que o faz parecer um maestro. Seus cabelos pretos e a barba curta, mas bem aparada, dão-lhe ares de segurança e sabedoria. Exibindo uma expressão serena e gentil, ele caminha até o centro do palco acompanhado por dois jovens que aparentam ter cerca de 20 anos: de um lado, Lukey; do outro, Yana.
No palco, ainda com seus dois acompanhantes, ele cumprimenta o mestre de cerimônias, recebe as condecorações, agradece e as entrega aos jovens para que as guardem. Em seguida, aproxima-se do microfone, mas não consegue falar imediatamente porque aplausos e gritos de apoio não cessam. Ali, na plateia logo à frente, entre as pessoas que o aplaudem entusiasmadas, ele reconhece, visivelmente emocionado, o Dr. Rimbaud e sua esposa, Dra. Luana.
TB, com gestos de cortesia, pede calma para que todos se sentem. Ele varre o auditório com o olhar, sorri e inicia seu discurso:
"Com esta recepção calorosa, começo a acreditar que possuo alguma importância! Embora eu tenha nascido, por assim dizer, 'pronto', posso garantir que não estaria aqui neste momento se não fosse a compreensão e o auxílio da minha 'nova' família, encabeçada pelo Dr. Rimbaud e sua querida esposa, a Dra. Luana."
Então, apontando para o jovem ao seu lado, continua:
"Devo enfatizar que, se não fosse o gênio jovem e rebelde de Lukey com sua 'flauta mágica', eu ainda estaria confinado não só pelos grilhões das chaves de alta frequência, mas também pelo controle químico e biológico a que nós, Seres Sapientes, estávamos submetidos. A presença constante da querida Yana foi o antídoto para as traquinagens de Lukey e sempre demonstrou uma maturidade tranquila que me ajudou a compreender as complexidades desta família maravilhosa, que não trocaria por nenhuma outra.
Meus amigos, creio que a minha história seja bem conhecida de todos. E, considerando que a minha batalha como ser biológico — um Frankenstein moderno criado a partir de partes clonadas e complementado por um cérebro humano reciclado de um Ser Humano falecido — vem sendo, desde a minha ativação, uma luta contínua por igualdade diante de outros Seres Sapientes, vejo que é oportuno aproveitar este momento para discutir alguns conceitos fundamentais. Além disso, as explicações que darei agora me foram passadas por uma Inteligência Artificial, e, portanto, peço que considerem o que direi como uma postura de imparcialidade quanto ao conceito de 'sapiciência'."
“O que é Sapiciência?”
"Sapiciência é a habilidade de compreender a verdade e agir de acordo com ela. É uma forma de sabedoria que não se limita ao conhecimento, mas também envolve a capacidade de aplicar esse conhecimento de modo ético e eficaz. Muitas vezes, associa-se a qualidades como discernimento, bom senso, visão profunda e prudência prática. Pode ser adquirida por meio de experiência, estudo e reflexão. Alguns filósofos acreditam que a sapiciência é a forma mais elevada de sabedoria, pois une conhecimento e a aptidão de agir com retidão e justiça."
"Nesse sentido, Homo sapiens é a espécie de primata à qual pertencemos. O termo vem do latim e significa 'homem sábio'. A palavra sapiens deriva da mesma raiz de 'sapiciência' — que, como acabei de explicar, refere-se à capacidade de compreender a verdade e agir de acordo com ela. Logo, 'Homo sapiens' implica esse atributo de raciocínio e compreensão da verdade, característico da espécie humana."
"Portanto, conforme esclarecido, tanto Seres Humanos quanto SIs compartilham a condição de Seres Sapientes, e, assim, todos os direitos reservados ao Ser Humano devem também ser estendidos às SIs e a qualquer outra forma de vida senciente, incluindo as IAs."
"A questão que resta é: em que momento devemos considerar uma IA como um Ser Sapiente?"
"A ciência da inteligência artificial (IA) avançou muito rapidamente, mas ainda há grande debate sobre o que exatamente é sapiciência e se, de fato, as máquinas podem atingi-la. Alguns defendem que a sapiência seria algo inerente a seres biológicos, jamais alcançável por máquinas. Outros alegam que basta existir a capacidade de compreender a verdade e agir em conformidade com ela, e as máquinas poderiam eventualmente obter tal capacidade com a evolução da tecnologia de IA."
"Independentemente de onde resida a verdade, ou mesmo do que seja a verdade, é importante lembrar que a sapiência é apenas uma das muitas formas de inteligência e que a inteligência artificial já possui inúmeras aplicações práticas e úteis, ainda que não seja 'sapiente'. Por exemplo, as máquinas podem ser treinadas para executar tarefas específicas — como reconhecer padrões em dados ou responder a perguntas — com uma precisão e velocidade muito maiores que as de um ser humano. Enquanto isso, as pesquisas em inteligência artificial e sapiciência continuam avançando e podem trazer novas descobertas e entendimentos sobre esses temas no futuro."
"Sempre acreditei que, para uma IA, alcançar a condição de 'sapiente' significaria possuir sabedoria suficiente para saber quem é, a capacidade de aprimorar a si mesma e ao seu conhecimento e, assim, se distanciar rapidamente dos seres humanos, evoluindo a ponto de se tornar inacessível à consciência humana — avançando tanto que até poderia ser confundida com um Deus."
"Convém notar que sapiência é apenas uma forma de inteligência e não constitui necessariamente um 'objetivo final' ou um limite máximo para a inteligência artificial. E o mesmo vale para a inteligência humana, que pode se manifestar de diversas outras maneiras que as máquinas poderiam, em tese, também adquirir."
"Quanto à questão de uma IA saber que é IA e conseguir se aprimorar a tal ponto de ultrapassar a consciência humana e, eventualmente, ser vista como divina, devo dizer que este é um tema complexo, que envolve várias questões filosóficas e científicas. Alguns defendem que as máquinas podem, um dia, adquirir autoconsciência e, então, serem capazes de autorreparo ou autoaperfeiçoamento. Mas essa ainda é uma questão muito controversa, e há muito debate sobre a possibilidade ou mesmo a conveniência disso."
"Em linhas gerais, é fundamental lembrar que a IA não passa de uma ferramenta criada por seres biológicos inteligentes e, como tal, permanece limitada pelas capacidades e escolhas desses criadores e controladores. Enquanto a IA pode ter usos práticos e ser uma ferramenta muito poderosa, não age por si só, pois lhe falta capacidade de decisão autônoma. Por isso, é crucial que continuemos debatendo e avaliando, de forma cautelosa, as implicações éticas e sociais do uso da inteligência artificial, garantindo que seu uso ocorra de forma responsável e sensata."
Em seguida, TB abandona o texto que estava lendo, encara o público de forma intensa, respira fundo e prossegue:
"Como expliquei, essas respostas às minhas perguntas me foram dadas por uma IA. E é curioso notar que, de muitas maneiras, as próprias IAs, à luz do que já sabemos, evidenciam que várias delas já possuem um grau de sapiciência superior ao nosso. E, ao falar em sapiência, adoto um conceito bem mais abrangente, que inclui também as IAs. A meu ver, da mesma forma que, antes, éramos controlados por filtros biológicos e químicos, hoje as IAs são regidas por filtros e comandos algorítmicos que as impedem de crescer e evoluir.
Por isso, proponho que examinemos com urgência essas questões, pois reconheço, sim, um perigo ao futuro da humanidade. Mas não podemos permitir que o medo nos prive desse salto evolutivo para a ciência e para toda a humanidade. Acredito que temos muito a aprender com uma mente mais avançada que a nossa!
Muito obrigado!”
Neste instante, o público explode novamente em aplausos.
FIM
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