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MARIA EUGÊNIA
por A.C. Barbieri
Capítulo I
Torres
Ano: 1811
Em algum lugar do Oceano Atlântico.
Sob um sol escaldante, enfim, a galé São José iniciou sua árdua jornada, cortando o mar aparentemente infinito. Até o momento em que o vento decidiu cessar, a caravela seguia, embora lentamente, de volta ao seu porto de origem. Agora, à distância, o navio não passava de um pequeno ponto suspenso na vastidão do implacável mar.
No convés, o ar parecia estagnado. Um odor ofensivo, uma mistura de peixe, suor e sujeira, impregnava tudo. Era tão forte que parecia grudar na pele. Alguns marinheiros alegavam que mesmo em terra, ao caminhar entre coqueiros, ainda podiam sentir aquele cheiro, como se fossem entidades espectrais a persegui-los.
Esse odor repugnante, somado à umidade e ao denso ar salgado do mar — que chegava lentamente — não oferecia trégua nem mesmo à sombra. Consequentemente, os marinheiros se sentiam aprisionados e lutavam para manter alguma rotina.
Movimentavam-se devagar, com gestos pesados de descontentamento. Mais de um mês sem vento deixara a caravela num limbo mortal. Assim, tanto a tripulação quanto a carga — os escravos — sofriam com a ração limitada de comida e água. Não era de se estranhar que a atmosfera a bordo fosse de insubordinação e desconfiança; o tipo de desconfiança perigosa que incita motins.
— Parece que este barco, cansado de se mover a passos de tartaruga, resolveu adotar a teimosia de um burro e parou — resmungou o Capitão Torres para si mesmo, observando a vela mestra imóvel e silenciosa. Sua impaciência era evidente, mas, por trás dela, havia uma camada de medo.
Apesar da viagem dura, o Capitão Torres acreditava que o fim estava próximo. Contudo, a incerteza o impedia de suspender o racionamento. A cada dia que passava e a situação sombria persistia, ele sentia sua vida cada vez mais em risco. O Capitão pressentia que, se tivessem chance, os seus homens o teriam jogado ao mar — junto com os escravos — havia muito tempo.
Depois do que pareceu uma eternidade, o vento ausente retornou gentilmente, empurrando a caravela adiante, fazendo-a ranger ao retomar o curso. A São José, vinda de Cabinda (Congo), África, seguia rumo ao Rio de Janeiro, Brasil, carregando um total de 667 escravos — um número recorde para um navio daquele porte. Em seu porão escuro e fétido, mal alimentados e vivendo em condições horríveis, menos da metade ainda agarrava-se à vida.
O Capitão Torres, comandante daquela embarcação, era um homem de estatura baixa, mas com força física que compensava o tamanho. Era um marinheiro experiente, já passara por apuros semelhantes antes. Sabia que precisava manter sua autoridade a qualquer custo.
Várias vezes pensou consigo mesmo: “Esta será minha última viagem!” Mas sabia que sempre voltaria ao mar. Bastava uma semana em terra para ele começar a ficar inquieto, olhando para o oceano como se pudesse ouvir o canto de uma sereia a chamá-lo.
No entanto, desta vez, o velho lobo-do-mar estava no limite. A grande quantidade de mortos, a ameaça de um novo período sem ventos e a insatisfação da tripulação o deixavam desgastado. Atormentado por pesadelos terríveis, ele mal conseguia dormir. Sonhava que era jogado ao mar durante um motim e nadava em águas enluaradas, entre corpos mutilados e em decomposição — restos dos escravos que descartara ao longo de sua carreira.
— Se as noites são terríveis, os dias são um inferno. Viver naquele espaço nauseabundo parece não ter fim. Considerando sua situação, Torres não confia nem na própria sombra.
Mais um dia nasce, e o tilintar das correntes, como um sinistro despertador, o arranca do sono. No convés, Branco, Goiaba e Laranja — os três escravizados que falam português e os únicos que não dormem junto aos demais cativos — já estão em atividade. As correntes que carregam restringem seus movimentos e garantem que, se caírem no mar, afundem rapidamente. Branco, o pai, e Goiaba e Laranja, os filhos, são veteranos, sobreviventes de múltiplas travessias.
Eles conhecem bem o Capitão Torres e seu método de punição. O Capitão tem uma forma peculiar de lidar com infrações: se, por exemplo, o pai erra, ele pune um dos filhos, ou vice-versa. Os marinheiros, cientes de que os três não podem fugir, costumam ignorá-los. O trio lembra nitidamente de ter sido amarrado e açoitado no mastro e, por medo, executa as tarefas sem falhas. Dentro daquele navio, de forma triste e mórbida, tudo funciona como uma engrenagem.
Branco, apesar dos cabelos e barba brancos — que lhe deram o apelido —, não é tão velho assim. Seu envelhecimento precoce provavelmente resulta do sofrimento e do estresse emocional. Sua esposa e seu filho mais velho não sobreviveram à jornada quando sua tribo foi atacada e sua família, capturada; os corpos foram atirados ao mar. Dos quatro filhos, dois conseguiram fugir no dia do ataque. Ele não sabe se estão vivos ou mortos. Os outros dois estão ali com ele, compartilhando aquela vida miserável, com a triste incumbência de cuidar dos recém-capturados.
Para esses três homens, o maior castigo é retornar ao porto de Benin, verem-se próximos de sua aldeia, enxergarem a paisagem verdejante à distância, sentirem o cheiro de sua terra e até avistarem pássaros familiares, mas não terem o privilégio de pisar no solo firme. A saudade da esposa, dos filhos, dos parentes e amigos é imensa, e às vezes ele se pergunta se aquilo não seria o inferno. Estar tão perto de Benin é como ter um banquete servido à frente e não poder provar de nada.
Nesta manhã no mar, Branco não tem tempo de se lamentar; tem trabalho a fazer. Através de um buraco quadrado no convés, ele grita com os cativos presos lá embaixo, numa língua desconhecida pela tripulação. Logo, um a um, corpos inertes são erguidos pelos dois rapazes. No convés úmido, um jovem esquelético é estendido ao lado do cadáver de um homem de meia-idade. Estão quase nus. Os lábios do homem estão secos e rachados, um dos pés está grotescamente inchado, e seus olhos, arregalados, mantêm uma expressão de dor congelada no rosto sem vida. O rapaz, não fosse a magreza extrema, pareceria apenas adormecido.
O Capitão Torres chega ao convés, a tempo de ver outro escravizado morto sendo puxado lá de baixo. Desta vez, é uma jovem mulher. O Capitão está ladeado pelo seu imediato e por um marinheiro corpulento que faz às vezes de guarda-costas. A jovem está nua. Apesar do estado físico debilitado, seus seios ainda guardam a beleza da juventude. O Capitão, com o olhar fixo nos seios dela, pergunta:
— Quantos?
— Três mortes, meu Capetão! — responde Branco, tentando demonstrar deferência. (Nota: em português do Brasil, a palavra “Capetão” significa “Grande Mal”)
— CAPITÃO! — corrige Torres aos berros, emendando um discurso raivoso. Parece delirante, gritando palavras desconexas como se conversasse consigo mesmo:
— Maldição! Já perdi tantos deles! Os únicos a ganhar aqui são os tubarões que nos seguem como abutres...
Sua voz rapidamente se desfaz em balbucios incompreensíveis, preenchendo o ambiente com um silêncio desconfortável.
No convés, o tempo parece congelar. O capitão permanece mudo, uma mistura estranha de dor, loucura e maldade contorcendo seu rosto. Seus olhos, injetados de sangue e quase hipnotizados, estão fixos nos seios da jovem estendida no chão.
O imediato e o marinheiro corpulento trocam olhares discretos. Os três escravizados demonstram ansiedade e temor. A movimentação no convés cessa; todos parecem tensos e apreensivos.
— Está quente demais lá embaixo! Eles precisam de mais comida e água... — arrisca Branco, rompendo o silêncio.
Sem desviar o olhar dos seios da moça morta, Torres ordena:
— Joguem esses corpos ao mar! — Dá suas instruções, gira nos calcanhares e se retira, resmungando para si mesmo:
— Pelo menos os tubarões terão algum prazer!
— TERRA À VISTA! TERRA À VISTA! — uma voz berra lá de cima.
Um marinheiro grita do cesto da gávea do mastro principal. Todos esticam o pescoço, tentando enxergar a direção que ele aponta. Sua voz, ecoando por todo o navio, soa como a voz de uma divindade, anunciando as portas do próprio paraíso.
Todos correm para a proa, inclusive o Capitão. Lá, no horizonte, um contorno vago com traços familiares mal se distingue à direita. A reação dos marinheiros é de pura alegria e alívio. Pulam e se abraçam ruidosamente. Alguns gritam, outros cantam e dançam. Quase imediatamente, o Capitão retoma a autoridade e aproveita o momento para liberar uma dose extra de sua aguardente portuguesa a todos. No meio da comemoração, ninguém percebe os três escravizados, ajoelhados, abraçando-se e chorando.
Depois dos festejos, os marinheiros voltam às atividades com renovado ânimo e alegria. O Capitão, já pensando nos preparativos para a chegada, procura pelos três escravos.
— Finalmente! Chega de rezar! — exclama ao encontrá-los de joelhos. Sem demonstrar empatia, dá suas ordens:
— Escutem bem! Em três dias estaremos ancorando de volta ao Rio de Janeiro; portanto, o embargo acaba agora! Quero que alimentem bem o restante da carga! Quero esses escravos saindo deste navio em condições de andar direito até o mercado! Já chega!
--o--
O cais do porto do Rio de Janeiro fervilhava como um formigueiro, repleto de milhares de pessoas envolvidas em seus afazeres diários. Elas seguiam pelo caminho, carregando mercadorias de naturezas diversas.
Marinheiros, em grupos ou acompanhados de mulheres, erguiam garrafas ou copos ao alto para comemorar em alto e bom som suas chegadas. Enquanto isso, outros, com expressões sombrias, preparavam-se para partir, com seus pertences de viagem guardados em sacos reaproveitados de algodão, pendurados nas costas.
Em meio a essa multidão, oficiais da Marinha, impecavelmente trajados em seus uniformes, desfilavam com orgulho. Seus escravos, carregando baús finamente entalhados, vinham logo atrás.
O porto era um caldeirão de raças, modos de vida, classes sociais, profissões e nacionalidades. De longe, a agitação lembrava uma grande dança, com algumas pessoas saindo do ritmo, parecendo perdidas ou atrasadas. Era o reflexo do caos vibrante da Torre de Babel, onde cada um se ocupava demais de sua própria vida para notar o mundo ao redor.
O cais também estava cheio de escravos. Os “escravos de ganho”, ou aqueles poucos que tinham comprado a própria liberdade, vendiam comidas, animais exóticos e diversos artigos. Em contraste gritante, africanos recém-chegados, esqueléticos e mal alimentados, arrastavam-se em grupos, presos a correntes. Em seus rostos, estampavam-se a dor, o cansaço e o medo.
Apesar da brisa suave, a umidade pesava tanto quanto no porão do navio. O forte cheiro salgado do mar se misturava ao odor de peixe, suor e sujeira, agora entrelaçado com o aroma de comida — salgadinhos e bolinhos carregados em grandes tabuleiros, equilibrados na cabeça de escravos negros.
Para um viajante cansado, desembarcando, aquele porto parecia uma colmeia em atividade. Para uma criança, talvez parecesse que haviam chegado ao meio de uma grande feira ou um circo repleto de atrações.
O Capitão Torres, finalmente em terra, estava de pé no cais, observando sua caravela. Apesar do cansaço físico e mental, sentia um alívio profundo. Desejava voltar para casa — rever a família, tomar um banho, comer bem e dormir em sua própria cama.
No entanto, sabia que seu trabalho ainda estava longe de terminar.
Primeiro, precisava apresentar os relatórios financeiros, detalhando o custo da “carga”, a contagem oficial de mortos e sobreviventes, e entregar os escravos restantes ao legítimo proprietário, o General Peixoto. Só depois de receber o pagamento, tiraria sua parte, pagaria os marinheiros e devolveria o navio ao general, garantindo que a embarcação estivesse nas mesmas condições em que a recebera.
O General Peixoto provinha de uma família brasileira tradicional e de alta patente. Recebeu boa educação e, seguindo os passos do pai e do avô, ingressou cedo na carreira militar, galgando patentes até chegar a general.
O general diversificava seus ganhos, investindo em propriedades e possuindo uma grande fazenda no estado de São Paulo. Além disso, atuava fortemente no tráfico de escravos, sendo dono de três caravelas, cada uma capaz de transportar centenas de cativos.
Como de costume, o General Peixoto sempre fazia questão de receber pessoalmente seus capitães ao final de cada viagem.
O cais do Rio de Janeiro estava repleto de embarcações atracadas de diversos tipos. De onde estava, o Capitão Torres podia ver vários outros navios, entre eles uma caravela moderna e elegante, vinda da Europa, atracada alguns pontos adiante.
Dessa embarcação, o Capitão Torres avistou uma família iniciando a travessia da estreita ponte que levava ao continente. A família se compunha de um homem, uma mulher e uma menina muito jovem. O homem, trajado com um elegante terno e cartola, seguia ao lado da mulher, que vestia um volumoso vestido nada apropriado para o calor brasileiro. Parecia que ela havia se produzido especialmente para aquele desembarque. Além de um grande chapéu cor-de-rosa, usava luvas finas e uma sombrinha, tudo no mesmo tom. Seu desconforto era nítido; seu semblante mesclava irritação e horror ao se deparar com o caos do porto — para ela, desorganizado e cheio de pessoas de “classe baixa”. Falando em alemão, explodiu:
— Frederic! Frederic! Frederic! Olhe só o lugar que você escolheu para trazer sua Bertha!
— Frau Bertha, minha querida, tenha um pouco de paciência, logo... — tentou explicar Frederic, mas uma impaciente Bertha o interrompeu:
— Mal posso esperar para tomar banho e lavar meus cabelos! Que viagem horrível! Pensei que nunca fôssemos chegar... e aquela comida? Não tenho sequer palavras para...
— Mamãe... estou com fome! — interveio a menina.
— Heilwig, você está sempre com fome! — rebateu Bertha.
— Meu Deus! Quantas vezes eu disse para não andar pra lá e pra cá com essa boneca imunda? Você já é quase uma moça! Está na hora de parar com essas infantilidades. Se não fosse pelo Herr Frederic, eu teria jogado a Mina, essa coisa horrorosa, no mar há muito tempo!
Mina era o nome da boneca da menina, sua companheira inseparável. Heilwig franziu a testa, apertando ainda mais a velha boneca de pano. Pelo estado do brinquedo — sujo, quase sem cabelo —, notava-se que estava com a menina desde que era bebê.
Heilwig procurou o olhar do pai, que a encarou com um ar sério antes de piscar rapidamente, em cumplicidade. Esse pequeno gesto de cumplicidade entre pai e filha, sinal de uma relação carinhosa e amiga, era tudo de que ela precisava para se sentir protegida.
A menina era pequena e magra, de olhos azuis e cabelos loiros, presos num único rabo de cavalo que se enrolava em um pequeno coque no alto da cabeça, dando-lhe o ar de uma pequena bailarina. Seu vestido comprido deixava ver um par de botas pretas já bastante desgastadas — nada muito delicado.
Carinhosamente chamada de “Heil” pelo pai, ela era uma garota inteligente e cheia de vida, falava bem sua língua nativa e estudava francês. Era, portanto, bem instruída para a idade que tinha. Porém, apesar do conhecimento, sua vivência ainda era limitada — uma típica menina de doze anos, prestes a completar treze.
O senhor Frederic, vindo de uma família rica, era um homem trabalhador que amava a família. Apesar de seus esforços, seus negócios na Alemanha não iam bem, e isso o motivou a buscar oportunidades no Brasil — terra com fama de recursos naturais abundantes, imensas florestas repletas de madeiras nobres e solos ricos em ouro e pedras preciosas.
Já Bertha não ficou nem um pouco entusiasmada com a viagem. Preferia as comodidades da cidade — compras, concertos e cafés de Berlim.
Heilwig, por sua vez, parecia ter herdado o espírito aventureiro do pai. Era curiosa, se adaptava rapidamente ao novo e adorava fazer comentários sobre tudo o que observava. Frederic, talvez mais do que Bertha, conhecia bem os pontos fortes e fracos da filha. Sabia de sua impulsividade e de que podia ser teimosa e indomável quando colocava algo na cabeça.
Bertha, enquanto mantinha uma fachada de austeridade e controle, era mais voltada a si mesma, o que favoreceu a independência precoce de Heilwig. Desde pequena, passava longos períodos sozinha, entregue às próprias fantasias.
Geralmente, conseguia o que queria, pois sabia ter, em segredo, o apoio do pai sempre que a mãe a reprimia.
Agora, em terra firme, com os sentidos bombardeados por um turbilhão de novos estímulos, o trio — pai, mãe e filha — postava-se diante do barco, tentando assimilar a nova realidade, cada qual olhando para um lado diferente.
Esse novo mundo, efervescente, era deles para explorar, mas também para enfrentar. Cada membro da família parecia estar à beira de desafios e vivências próprios, com a vida prestes a mudar para sempre devido às aventuras que os aguardavam naquela terra estrangeira. Estavam, afinal, não só na orla movimentada do porto do Rio de Janeiro, mas também no limiar de um novo capítulo de suas trajetórias. Ali, no cruzamento entre o passado e o futuro, seus destinos se entrelaçavam com o de um país que apenas começavam a conhecer.
— Frederic! Quantos negros! Tem certeza de que não estamos na África? — Sem esperar resposta do marido, prosseguiu:
— Olhe só esses tecidos! Tão vibrantes! Preciso ver o que esse casal de negros está vendendo! — Virando-se para o marido, ordenou:
— Frederic, faça algo útil! Volte ao navio e supervise o transporte de nossas bagagens. Eu morro se perder meu baú de vestidos!
— Frederic, sem protestar, exibiu a paciência de um jesuíta, acenou positivamente e retornou pela ponte ao barco.
Frau Bertha e Heilwig seguiram em direção ao casal negro que, usando uma carroça de três tábuas como balcão, exibia vários rolos de tecidos multicoloridos. Bertha parecia ter olhos na ponta dos dedos, pegava em tudo, sentia, cheirava, avaliava a aspereza do tecido e disparava perguntas:
— Que tecido é este? É linho? — dizia em alemão, sem perceber.
O homem e a mulher negros trocaram olhares de estranhamento, e a vendedora respondeu:
— Não perca a oportunidade! Temos os melhores preços aqui! — Bertha, sem entender nada, ignorou a resposta e começou a examinar outros tecidos de outra pilha.
Enquanto isso, a pequena Heilwig teve a atenção atraída por algumas aves de bico grande, presas ali perto em uma grande gaiola. Eram tucanos, e ela, instintivamente, caminhou até eles.
— Heilwig! Não se afaste! Fique aqui perto! — O grito estridente da mãe se fundiu ao barulho do mercado, dissipando-se em meio à balbúrdia.
— Olhe, Mina! Esses pássaros são esplêndidos, mas aqueles outros, na outra gaiola mais adiante, parecem ainda mais maravilhosos. — Ela não parava de conversar com a boneca, fascinada com a beleza das aves.
— Uau, que bichos são esses? Com certeza não são porcos, parecem ratos enormes! — exclamou, ao observar duas capivaras ansiosas, tentando em vão sair do caixote onde estavam confinadas.
— Fala loro! Fala loro! — grasnava um papagaio solto, que caminhava entre caixotes, gaiolas e caixas de madeira. O papagaio, pertencente a um comerciante que estava ausente, chamou a atenção de Heilwig, que sorriu admirada. Nunca tinha visto um papagaio antes.
— Fala loro! Fala loro! — repetia a ave, imitando o que as pessoas lhe diziam.
Na ponta dos pés, Heilwig gritou para o alto:
— Eu não entendo o que você diz! Você fala alemão? — O papagaio, empoleirado sobre as caixas, parecia reconhecê-la, mas continuava a repetir as mesmas palavras.
O Capitão Torres estava em frente ao navio, aguardando o desembarque dos escravos, quando o general surgiu. Vestindo seu uniforme pomposo, sorrindo e exalando poder, ele se aproximou. Torres já o conhecia havia muito tempo e sabia que aquele sorriso amistoso não passava de fachada. Para Torres, aquela era a forma “política” de o general lidar com qualquer situação...
O General Peixoto vinha acompanhado por um escravo — um homem negro alto, musculoso e careca, que aparentava ter certos privilégios ao servi-lo de várias maneiras, inclusive como guarda-costas. No ombro do escravo, um macaquinho inquieto não lhe dava sossego. Ora estava em um ombro, ora no outro, dando tapinhas na cabeça dele. O homem parecia não se importar e, surpreendentemente, divertia-se com aquilo. Em silêncio, como uma sombra, o escravo mantinha-se ao lado do general, que, com um sorriso irônico, saudou Torres em voz alta:
— Torres! Que bom revê-lo! Pensei que as sereias tivessem ficado com você de vez!
Torres, forçando um sorriso cansado e desconfortável, respondeu com um aperto de mão:
— Falando em sereias, quem me dera fosse isso! Infelizmente, foi o maldito vento que nos traiu! Ficamos mais de um mês na incerteza. Desta vez foi infernal! Acho que estou ficando velho para este trabalho!
— Bobagem! Você falou a mesma coisa depois da última viagem! Seu corpanzil ainda aguenta muito rum... — Enquanto falava, o General Peixoto notou uma bela menina loira, vestida de forma bastante diferente do comum. A partir desse instante, o militar prosseguiu a conversa, mas sem tirar os olhos da garota.
— Uma caravela à deriva é sinal de prejuízo! Quantos conseguiram chegar?
O general mantinha os olhos fixos na menina. Procurou ao redor, tentando localizar a família dela, mas não conseguia vê-los. Ela era pequena e havia muita gente à volta. De vez em quando, ele a perdia de vista e parecia ficar visivelmente incomodado.
O Capitão Torres percebeu que o general estava distraído, mas pensou:
— Ele é o General; ele pode se dar a esse luxo!
— General, infelizmente, perdemos mais da metade da carga! Só chegaram 121 escravos...
— Torres, quer dizer que perdi centenas de escravos! — O general falou firme, impondo autoridade, e depois baixou a voz, como se falasse consigo mesmo:
— Bem, negócios são negócios! Às vezes se ganha, às vezes se perde! Sem dúvida, no fim das contas, ainda vou tirar bom lucro pra cobrir as despesas e me sobrar alguma coisa!
Torres, demonstrando deferência, baixou involuntariamente o olhar ao chão. O general aproveitou o momento e fez um leve sinal ao seu escravo. Com um movimento rápido da cabeça, indicou a direção da menina. O homem negro virou-se prontamente e, com o macaquinho se agarrando para não cair de seus ombros, desapareceu na multidão.
— Fala loro! Fala loro! — continuava o papagaio.
— Falaloro, o seu vocabulário é muito limitado! Não tem mais nada pra dizer? Fale algo aqui pra Mina — disse Heilwig, erguendo a boneca com o braço direito e sacudindo-a em direção ao papagaio.
— Ladrão! Ladrão! Ladrão! Ladrão! — de repente, o papagaio bateu as asas e andou de um lado para o outro. (Nota: “ladrão” significa “thief” em português.)
— Você se chama Ladrão? Quer ser meu amigo também? Falaloro já é. — Ainda com a boneca na mão direita, Heilwig apontou para si, depois para os outros, dizendo:
— Heilwig, Falaloro e Ladrão? Vamos formar um trio maravilhoso... — De repente, interrompeu a frase e olhou rápido para o rosto sujo de sua boneca:
— Espere! Eu estava esquecendo a Mina! — E, olhando nos olhos da boneca, desculpou-se:
— Desculpe, querida! É muita experiência pra um dia só! Acabei me esquecendo de você! Não fique brava, vou corrigir isso agora mesmo... — E, incluindo a boneca, repetiu as apresentações:
— Heilwig, Mina, Falaloro e Ladrão. Tenho certeza de que vamos formar um quarteto maravilhoso! O que acha, Ladrão?
Ela mal terminou de falar “Ladrão” e o papagaio voltou a gritar:
— Ladrão! Ladrão! Ladrão! Ladrão! — A menina se distraiu com o papagaio, justamente no instante em que o macaquinho, num movimento ágil, arrancou a boneca de suas mãos e saiu correndo pela multidão.
Heilwig não teve tempo de pensar; imediatamente iniciou a perseguição. O lugar estava lotado de adultos e correr em meio a eles era uma tarefa difícil. Sempre gritando em alemão, ela abria caminho aos empurrões. As pessoas a olhavam incomodadas, mas logo a ignoravam e voltavam às suas atividades. Às vezes, ela perdia o macaco de vista, mas ele parecia se divertir com o jogo de esconde-esconde, subindo em lugares altos e provocando-a com a boneca.
— Devolva já! Seu macaco malvado! Não estou brincando! — ela gritava, tentando imitar o tom autoritário da mãe.
O bicho entrou por um beco estreito. Em alguns cantos, mulheres voluptuosas abordavam marinheiros, oferecendo seus serviços; em outros, homens erguiam os copos. Mais adiante, ela passou correndo por um grupo de homens sentados no chão, um com a cabeça apoiada no ombro do outro, ambos bêbados e dormindo. Quase trombou em um carrinho que vendia amendoins torrados, mas conseguiu desviar a tempo de ver o macaco desaparecer por uma porta entreaberta. A porta estava aberta, coberta apenas por uma cortina de tiras finas de couro.
Ela entrou e, em um ambiente mal iluminado, quase sem móveis, avistou o macaquinho num canto segurando a boneca. Ele guinchava, fazia caretas e estendia os braços, oferecendo Mina. Heilwig recuperou o brinquedo rapidamente.
Só então ela percebeu o quanto estava exausta. Deu um suspiro curto, mas não teve tempo de dizer nada. Repentinamente, foi agarrada por trás pelo homem do general. Erguida no ar, esperneando e gritando, foi levada à força até um cômodo isolado, nos fundos da casa. À primeira vista, o quarto parecia escuro, sem janelas, e a única porta foi trancada pelo lado de fora. Seria a última vez que a menina veria os pais.
Mais tarde, o general, acompanhado de alguns soldados, saiu do grande prédio administrativo que ficava no cais. De longe, avistou Ozebio, seu escravo, que se aproximava e fazia um sinal. Em frente ao prédio, ele ordenou que os soldados aguardassem e caminhou sozinho em direção ao homem.
— Meu general, cumpri suas ordens! — anunciou Ozebio, com a postura respeitosa de um soldado. No entanto, seu tom de voz e sua expressão facial revelavam certa insegurança. Ao mesmo tempo, ele tentava esconder a marca circular em seu braço direito, deixada por uma mordida firme.
Com um olhar astuto, hipnótico e dominador, o general examinou o rosto do negro antes de apontar para o braço dele.
— Ah, aí está! Vejo que ela lhe deu trabalho, Ozebio! Quero que trate minha mulher com o máximo de cuidado. Se eu souber de algum mau-trato, seu castigo será severo. Você pode perder muito mais do que seus privilégios. Pode perder tudo. Entendeu? — A intensidade na voz do general não deixava dúvidas sobre a gravidade da ordem.
— Sim, meu general! Coloquei-a no quarto de hóspedes e tranquei a porta! — respondeu de pronto o escravo, visivelmente temeroso.
— Bom. Como você pode imaginar, exijo que seja bem alimentada e bem tratada. E que ninguém saiba da nossa convidada. Daqui a quatro dias, depois do leilão, quando vendermos todos os escravos, compraremos provisões e partiremos para a fazenda. — Sem mais explicações, o general deu as costas a Ozebio e voltou aos soldados.
Heilwig chutou a porta até seu pé direito começar a doer. Uma sensação de fúria se transformava em desespero e depois voltava a ser fúria, num ciclo contínuo. Após o que pareceu uma eternidade, entendeu que ninguém abriria a porta.
A garota tentou conter as emoções e avaliar a situação. Seus olhos ainda ardiam de tanto chorar, mas ela se obrigou a observar o ambiente. Estava confusa e também se sentia culpada; havia se aventurado sozinha e temia a bronca que receberia da mãe.
A escuridão dominava o cômodo, e ela mal conseguia enxergar qualquer coisa. Sua mente, porém, fervilhava de lembranças e pensamentos:
“O que eu poderia ter feito? Aquele homem era enorme, forte! Minha mordida nem o incomodou.” A reflexão foi interrompida quando de repente percebeu que algo faltava.
“Mina!” — gritou. Um horror a invadiu ao se dar conta de que, na luta, deixara a boneca cair.
Lágrimas rolaram por seu rosto como gotas de chuva num dia de tempestade. Ela secou os olhos e o nariz no vestido, tentando recobrar o controle. Em seguida, começou a vasculhar o quarto em busca de qualquer ferramenta que a ajudasse a escapar.
Apesar de o quarto ser pequeno e mal iluminado, notou uma pequena janela. Mas descobriria, mais tarde, que estava lacrada. Com a fraca claridade — reforçada apenas por alguns raios de luz que entravam por telhas quebradas —, seus olhos se adaptaram aos poucos. Conseguiu distinguir melhor o que a rodeava. À esquerda, havia uma cama simples, com um colchão provavelmente recheado de folhas ou capim. À direita, diante da cama, havia um pequeno armário rústico de uma porta, sem espelho. Ao abri-lo, encontrou apenas um cobertor. Ao lado desse armário, uma pequena mesa sobre a qual repousavam um jarro de água grosseiro, um conjunto de tigelas e uma caneca velha de ágata azul. Na parede em frente a essa mesa pendia uma pequena toalha, e embaixo da cama havia um grande pote que deduziu ser um penico.
Heilwig aproximou-se da cama e sentiu a maciez do colchão. Ficou parada, com o rosto marcado por cansaço e confusão. De repente, virou-se para encarar a porta com expressão fechada. De braços cruzados, foi se sentar no chão, de frente para a porta, encostando as costas na parede oposta. Sentia-se sozinha e impotente, e soluçava de forma intermitente.
Sentada ali, forçou o ouvido para captar qualquer ruído da casa. Tudo parecia estranhamente silencioso. De vez em quando, ouvia vozes distantes que falavam de forma tranquila em um idioma desconhecido; não tinha certeza se era português, como o que ouvira no navio. A exaustão começou a dominá-la, e a mente divagou, trazendo lembranças ao acaso. Recordou-se das piscadelas clandestinas do pai e do abraço protetor que ele lhe dava, seguido por um beijo carinhoso na testa. Viu a mãe em Berlim, erguendo uma xícara de chá com elegância em uma casa de chá refinada. Apesar dos desentendimentos frequentes, admirava profundamente a beleza, o gosto e a determinação da mãe. Ela era uma mulher forte e decidida, e Heilwig, sem perceber, desejava ser exatamente assim.
“Eu disse que não queria ver você andando pelo convés com essa boneca imunda!” — sua mãe rapidamente arrancava a boneca de suas mãos e a atirava ao mar. Heilwig corria até a amurada, a tempo de ver uma onda cobrir o brinquedo e fazê-lo afundar lentamente.
“Mina! Mina! Mina!” — Heilwig despertou assustada com o próprio grito, que se misturava a guinchos de um macaco. E lá estava o macaco, perto do teto, empoleirado em uma viga do quarto. Também parecia assustado com o pesadelo dela, estufando as bochechas e cobrindo os olhos com a mão, enquanto soltava gemidos.
“Agora não adianta fazer essa cara de arrependido! Você é um traidor! Macaco danado! Onde está a Mina?” — com os olhos cheios de lágrimas, ela gritava sem parar, em alemão. Levantou-se, procurando algo para jogar no bicho. De repente, viu o jarro de água e a caneca. Pensou em atirar a caneca, mas logo achou mais adequado enchê-la e atirar água no atrevido. O macaco sumiu por um instante, para logo reaparecer no canto direito de uma parede.
Em impasse, os dois se encararam em silêncio. Sem dizer nada, Heilwig retornou ao lugar de onde saíra. Sentou-se novamente no chão, encostada na parede, fitando a porta. Abriu e fechou os braços ao redor dos joelhos, apoiou a testa nas pernas e acabou adormecendo. Acordou assustada com novos gritos do macaco.
“Você está me atormentando? Eu disse que não quero nada com você! Ladrão, vá embora! Saia daqui agora!” — falou, com a voz sonolenta e irritada. O macaco, por outro lado, estava agitado, pulando e fazendo caretas, mostrando todos os dentes. Foi aí que ela notou sua boneca largada diante de si. O macaco a havia trazido de volta.
“Mina, minha querida!” — pegou a boneca às pressas, examinando-a com carinho, como se fosse uma criança.
“Ele te tratou bem, Mina? Pode falar, que esse macaco vai me pagar! Se me fizer de boba de novo, jogo aquela coisinha horrenda no mar!” — e, imitando a mãe, gritou:
“Ladrão! Ladrão! Ladrão! Olhe o lugar que você escolheu para trazer sua Heilwig! Se acha que vou te agradecer por devolver a Mina, está muito enganado!”
“Coco!” — para a surpresa dela, uma voz masculina grave ecoou pela casa, assustando-a e também ao macaco.
“Coco, onde você está? Coco, venha aqui agora!” — O macaco, com ar assustado e apavorado, sumiu num piscar de olhos.
“Curioso!” — pensou Heilwig. “Este homem deve ser o dono dele! Então, o nome do macaco é Coco e não Ladrão! Então, o que significa a palavra Ladrão? Falaloro não gostou nada dele. Então, ‘ladrão’ deve ser algum tipo de insulto…”
Depois de algum tempo, Heilwig notou que os raios de luz que vinham do teto começaram a escassear. A noite se aproximava. Na peça ao lado, alguém acendeu uma lamparina a óleo. Como os cômodos não tinham forro, a iluminação de outros ambientes passava por brechas entre o topo das paredes e o telhado.
O chão era bem desconfortável, e Heilwig, agora de posse de sua boneca, não resistiu ao convite da cama. Sua mente estava confusa, cheia de perguntas sem resposta.
“Fui punida por entrar nesta casa sem permissão? Por que estou aqui? Mamãe sempre me alertou para ter cuidado com os homens, mas, quando eu perguntava o motivo, ela desconversava…”
Essas incertezas pouco a pouco transformaram sua postura desafiadora em medo do desconhecido. Assim, no breu crescente, ao ouvir alguém se aproximando para abrir a porta, ela rapidamente se sentou na cama, fechou os olhos e abraçou a boneca, apavorada.
Ela escutou a porta se abrir, sentiu um leve farfalhar dentro do quarto e, logo em seguida, o barulho da porta se fechando de novo. Tudo durou alguns segundos, mas lhe pareceu uma eternidade. Ainda de olhos fechados, se pôs a escutar. Tudo o que ouviu foi silêncio, quebrado de vez em quando por murmúrios abafados e distantes de um homem e uma mulher, em língua estrangeira.
Ao abrir os olhos, percebeu que, perto da mesa, havia um cesto de palha cheio de frutas — a maioria desconhecida. Um aroma agradável pairava no ar. Foi então que notou o quanto estava faminta. Sobre a mesa, diante da cama, havia um pedaço de bolo de fubá ainda quente e uma caneca de leite morno, adocicado com um toque de rapadura.
“Será que está envenenado?” — pensou. “Vou provar só um pouquinho!” — alguns minutos depois, sentada na cama, já sentia as forças voltando. Tinha devorado tudo!
“Se estão me tratando bem, provavelmente não querem me fazer mal! Mas o que planejam? E meus pais… devem estar desesperados!”
Sua imaginação, confinada naquele quarto, começou a criar cenários impossíveis. A realidade de sua situação se infiltrava no recinto junto com a noite, como uma neblina densa e opressiva. Era impensável lembrar que, até o dia anterior, ela estava no alto-mar, ansiosa para pisar em terra firme, e agora vivia esse pesadelo. Ela daria tudo para acordar de novo no navio, ouvindo as reclamações diárias da mãe. Infelizmente, não havia engano: tudo aquilo era real.
Um novo dia surgiu, e Heilwig despertou com o som da porta voltando a se abrir. Duas mulheres negras, descalças, usando longas saias brancas e com os cabelos presos em lenços brancos, entraram no quarto. Uma trazia uma grande bacia de madeira para banho, e a outra carregava um balde de madeira cheio de água morna.
Para sua surpresa, Heilwig não resistiu. As mulheres, com delicadeza e respeito, a ajudaram a tirar a roupa e a desfazer as tranças. Só então percebeu que, surpreendentemente, havia dormido de sapatos.
Ali, nua naquela gamela de madeira, de olhos fechados, sentindo a água morna deslizar sobre a cabeça e escorrer pelo corpo, Heilwig se sentiu como uma criança de cinco anos, com a mãe lhe dando banho. Foi um momento calmo e revigorante, quase purificador. Depois de meses no navio, era a primeira vez que ela realmente tomava um banho de verdade. Aquilo foi sublime e a acalmou imensamente. As mulheres aproveitaram para arrumar a cama e trocar o penico. Em seguida, vestiram Heilwig com um tecido florido que se amarrava no ombro esquerdo, suave ao toque, lembrando um vestido de mulher.
Por um instante, Heilwig esqueceu o sofrimento e, com certa vaidade, desfilou descalça pelo quarto, lamentando não ter um espelho. A mãe jamais permitiria que usasse uma roupa considerada “imprópria” para sua idade.
Tudo estava muito confuso.
“Por que me tratam tão bem se estou presa?” — questionava-se, sem encontrar lógica na situação.
“Por que eu não reclamei?” — sentia-se meio sonolenta, entorpecida.
“Foi o leite que bebi ontem ou apenas cansaço?” — especulava.
Mais tarde, quando as escravas voltaram com outro jarro de água fresca e trouxeram-lhe o desjejum — outra caneca de leite adocicado, desta vez com um pedaço de pão e queijo —, Heilwig prontamente estendeu a caneca para uma das mulheres, insistindo, em alemão:
“Beba!”
As duas se entreolharam, surpresas. A mulher que recebia a caneca tentou devolvê-la, mas Heilwig, por gestos, insistiu que ela bebesse. A escrava, então, compreendeu e levou a caneca aos lábios. Heilwig ficou ali, com feição séria, atenta para ter certeza de que ela engolisse o líquido. As escravas saíram do quarto, sorrindo.
“Mina, você viu a insolência delas?” — segurando a boneca e sentada na cama, prosseguiu:
“Foram embora rindo de mim! Isso não tem graça! Vão ter que prestar contas pro papai! Você vai ver!”
A verdade era que havia pouco a fazer para passar o tempo naquele cativeiro. Heilwig experimentou algumas frutas, gostando especialmente das bananas:
“Mina, que fruta deliciosa! E o Coco, aquele macaco safado, ainda me mostrou como se descasca. Você reparou que eles têm essa fruta em dois tamanhos? Prefiro a menorzinha, pois é mais doce!”
Logo ficou claro que Coco gostava de sua companhia. Sempre que podia, aparecia, quase sempre com cara de desconfiado. Às vezes, sentava-se no chão, apenas observando o que a menina fazia, como se tentasse imitar seus gestos.
No terceiro dia de cativeiro, o macaquinho de repente surgiu lá no alto, pulando de viga em viga, talvez querendo exibir suas habilidades acrobáticas.
“Não vou aplaudir você! Mina, veja só como ele é convencido! Pior que isso, não me respeita nem um pouco!” — Heilwig se levantou, colocando as mãos na cintura, imitando a mãe:
“Eu poderia estar trocando de roupa, Coco! Que atrevimento!” — O macaco, entendendo a indignação dela, sentou-se numa das traves e cobriu os olhos com as mãos, mostrando todos os dentes em resposta.
Heilwig balançou a cabeça em reprovação, voltou a sentar e, ignorando o bicho, retomou o chá imaginário com sua boneca.
Coco, aparentemente despreocupado, desceu rapidamente ao chão e se acomodou ao lado de Mina. Ficou ali quieto, observando, com curiosidade, o que a menina fazia. Heilwig, encarando o olhar intrigado do macaco, tentou se impor:
“Você não tem modos! Nem foi convidado para o chá!” — depois de fingir servir chá de um bule invisível numa xícara inexistente para Mina, prosseguiu:
“Mas, já que está aqui, saiba que minha mãe sempre diz que, ao visitar alguém, é importante trazer um presente. É costume e boa educação!” — estendendo a mão aberta na direção do macaquinho, exigiu:
“Coco, o que você trouxe para o chá? Talvez uns biscoitos?” — Para sua surpresa, Coco, aparentemente entendendo alemão, prontamente enfiou a mão no bolso da jaquetinha e depositou um pequeno objeto na palma de Heilwig.
“Vamos ver o que temos aqui! O que é isso? Ah! É uma pequena escultura de uma mulher com um véu na cabeça! Onde você conseguiu isso? Roubou, né? Infelizmente, pela minha experiência, eu sei do que você é capaz: você é ladrão! Agora entendi por que Falaloro chamou você de ‘ladrão’!” — a menina silenciou por alguns segundos, observando as reações do macaco; depois respirou fundo e continuou:
“Não importa! Coco, você é o único que veio tomar chá comigo! Você se esforçou para ser educado! Então, quer uma xícara de chá? Açúcar? Quantos torrões? Minha mãe não toma açúcar, mas eu gosto!” — o macaquinho observava, franzindo a testa, enquanto a menina servia chá de um bule invisível em uma xícara igualmente imaginária.
Mais tarde, Heilwig guardou a pequena estatueta no bolso do vestido de sua boneca. Parecia muito antiga, feita de um metal envelhecido, quase preto. Apesar de pequenininha, a figura de uma senhora estava bem detalhada e refinada. Tinha uma base plana que permitia ficar em pé. Foi o primeiro presente que ela recebeu no Brasil, e, por toda a vida, manteria aquele objeto como amuleto e símbolo de fé.
No último dia em que ficou naquela casa, o sol castigava lá fora, e os feixes de luz que entravam pelo telhado projetavam círculos no chão. Esses feixes iluminavam minúsculas partículas de poeira, que se mantinham em suspensão, dançando lentamente. Heilwig colocou a palma da mão direita embaixo de um desses raios, examinando as linhas. Notou um “M” bem definido no centro da mão.
“Mutti” (Mamãe, em alemão) — sussurrou quase em oração, fechando a mão num punho imediatamente. Ajoelhada, com os punhos apoiados nas coxas, observou um dos círculos de luz projetados no chão. Um pequeno movimento lhe chamou a atenção: uma formiga carregava um pedaço de folha verde, bem maior do que ela. Talvez a formiga tivesse encontrado a folha no cesto de frutas. Heilwig bloqueou o caminho da formiga com a mão de lado. Incomodada, a formiga logo desviou a rota, mas a menina voltou a impedir a passagem. Ficaram nesse jogo por alguns minutos. A vida da formiga por um fio, até que, por fim, Heilwig decidiu deixá-la seguir adiante.
“Vai, formiga! Siga o seu destino. Eu ainda não sei qual será o meu. Então, formiguinha, vamos fazer um trato: eu poupo sua vida e você poupa a minha. Que tal?”
Heilwig não fazia ideia de que, durante o tempo em que ficou presa, todas as noites, enquanto ela dormia, era visitada pelo General Peixoto. O general sentava-se silenciosamente ao lado da cama, iluminado por uma pequena lamparina, observando a garota que, em sua percepção, já era uma mulher. Seus cabelos longos, quase dourados, e o rosto levemente queimado de sol — sem dúvida devido à viagem marítima — faziam-no imaginar sua pele branca como a neve que ele só conhecia através de relatos. Mesmo dormindo, suas feições sugeriam alguém de determinação e caráter. Observando aquele rosto que prometia firmeza e força, ele pensava:
“Isto não será fácil. Será como domar um cavalo selvagem. A sedução, afinal, é uma arte! Tenho certeza de que vou me divertir.”
--o--
Capítulo IV
Maria Eugênia
Exausta, Heilwig já viajava havia três dias. No dia da partida, a caravana deixara a capital do Rio de Janeiro muito antes de o sol nascer. A menina não fazia ideia de qual seria seu destino final.
Partir tão cedo era um procedimento comum. Como viria a saber depois, o calor durante o dia podia ser insuportável. Além disso, a escuridão ajudava: Heilwig fora transportada até a carroça ainda adormecida, permitindo que o General Peixoto evitasse chamar atenção desnecessária para sua passageira incomum.
Atravessar da cidade do Rio de Janeiro até o coração do estado de São Paulo não era tarefa simples — eram mais de 400 quilômetros de estradas íngremes e acidentadas, muitas vezes reduzidas a estreitas trilhas em meio à mata densa. Em vários trechos, era necessário abrir caminho novamente com facões.
Observando as árvores gigantescas, Heilwig tinha a sensação de que a floresta os engolia. O calor, o barulho e a praga constante dos insetos faziam a recordação do mês inteiro no fétido navio — saindo da Alemanha — parecer quase férias.
O General Peixoto conhecia bem esse trajeto. Havia anos, fazia-o ao menos duas vezes por ano. Como militar de base no Rio de Janeiro, apreciava qualquer oportunidade para seguir a São Paulo. Costumava dizer de maneira displicente aos amigos, sempre com um sorriso e um ar de arrogância:
— Vou para minha humilde morada em São Paulo.
Sua “humilde morada” era uma fazenda enorme, maior do que a pequena vila de Bauru, que ficava quase a dois dias de caminhada. A propriedade era tão vasta que alguém poderia facilmente se perder em suas terras.
O general nunca viajava sem suas tropas. Em geral, preferia estar apenas com os soldados, mas naquela viagem era diferente: dois vagões de suprimentos seguiam lentamente no comboio.
O Comandante Peixoto era um homem curioso. Tinha porte atlético e boa força física, do tipo que acreditava que a tropa só o respeitaria se ele mesmo fosse capaz de fazer tudo que os soldados faziam. Era prático e objetivo, um sujeito que se deliciava com atividades físicas e, em geral, fazia suas refeições junto dos homens.
Vindo de uma formação rígida e católica, Peixoto possuía ideias arraigadas de decência e justiça. Contudo, paradoxalmente, enxergava os negros apenas como propriedade, simples mercadoria.
Na posição de general, sentia-se no direito de mandar também nos brancos mais simples. Protegido por seus soldados, recrutava qualquer jovem em idade e porte adequados para empunhar uma arma, sempre que passava por vilas e fazendas. Fazia isso em nome do exército brasileiro, o que, naturalmente, o tornava o terror de todas as mães.
Do mesmo modo, via as mulheres como objetos de sua vontade. Jamais considerava a angústia que causava a elas ou às famílias. Aos seus olhos, o General Peixoto agia assim simplesmente porque podia.
A caravana era composta por meia dúzia de soldados que iam à frente, montados a cavalo e munidos de facões grandes. Logo atrás, vinham dois vagões de suprimentos e, por fim, mais meia dúzia de soldados na retaguarda. O primeiro vagão estava ao encargo de um escravo chamado Ozebio, que fora obrigado a deixar para trás seu amigo — o macaco Coco. Além de levar mantimentos, Ozebio era responsável pela menina, acomodada sobre grandes sacos de algodão cheios de farinha. O último vagão era tocado por outro escravo, Tomas, que também transportava mais provisões e levava consigo uma mulher chamada Nubia — igualmente escravizada —, a mesma que dava banho na menina. Nubia atuaria como cozinheira da caravana.
O General Peixoto, montado em seu magnífico cavalo, mudava constantemente de posição. Ora cavalgava à frente com os soldados, ora ficava na retaguarda. Gostava especialmente de acompanhar o vagão onde ia a menina. Cada vez que olhava na direção dela, abria um sorriso ou fazia um cumprimento cortês. Heilwig, em contrapartida, fingia ignorá-lo ou respondia com cara feia, imitando, em seus gestos, o macaco Coco.
Certo dia, perto do meio-dia, a caravana parou à beira de um rio para descansar — dar água aos cavalos e comer alguma coisa. Nesse momento, o escravo Ozebio aproximou-se do General Peixoto:
— Ozebio, o que foi agora? Ela mordeu você de novo? — perguntou o general, sorrindo de canto de boca.
O escravo ergueu uma banana para mostrar:
— Não, meu general! A menina se recusa a comer! Nem essa banana aceita!
Pegando a banana da mão de Ozebio, o general foi até a garota. Com um olhar cativante, encarou-a e ofereceu a fruta. A menina se levantou, rosto fechado, braços cruzados num gesto de desafio. Ao ver a boneca largada aos pés dela, o general foi rápido e ameaçou jogá-la no rio. A menina pulou para tentar recuperar o brinquedo.
Rindo, como se fosse tudo uma brincadeira, o general ergueu a boneca ainda mais alto. Com a outra mão, sinalizou o que seria uma troca: se ela comesse a banana, ele devolveria a boneca.
Mostrando nojo, Heilwig pegou a banana e deu uma dentada na ponta — casca e tudo.
O general, contendo o riso, balançou a cabeça em negativa. Pegou outra banana, mostrou como descascá-la e, mordendo um pedaço, devolveu a fruta semi-comida para a menina, trocando-a por uma nova. Dessa vez, a garota o imitou e descascou do modo certo, pensando consigo mesma:
“Coco, o macaco idiota, também não sabia descascar direito!”
Quando o general devolveu a boneca, notou que havia algo sólido num dos bolsos do vestidinho. Intrigado, enfiou a mão e encontrou uma pequena estatueta da Virgem Maria.
Com um ar ponderado e respeitoso, o General Peixoto recolocou a imagem no bolso da boneca e a entregou de volta para a dona.
“O destino já escolheu seu primeiro nome: será Maria!” — pensou ele. Olhando firmemente nos olhos da menina, disse:
— Meu nome é Peixoto! — bateu com o indicador algumas vezes no próprio peito, repetindo o nome. Então apontou para ela, perguntando:
— Qual é o seu nome?
A menina já suspeitava de qual era o nome dele. Então, meio insegura, quase gaguejou:
— Heilwig…
— Euvig? — ele tentou repetir, acrescentando: — Que nome difícil e complicado. I-Vig, Euvig… Eugênia. A partir de agora, você se chamará Maria Eugênia!
Então repetiu os gestos, apontando para si e para a garota:
— Peixoto — Maria Eugênia!
Heilwig achou aquilo ridículo e insolente. Completamente furiosa, gritou várias vezes:
— Heilwig! Heilwig! Heilwig! Heilwig!
Impassível diante da reação, o General, sorrindo, ordenou em tom de brincadeira que Ozebio a tratasse como Dona Maria Eugênia.
A partir daquele instante, passou a ser Maria Eugênia e nenhum protesto adiantava. Com o passar dos anos, seu nome alemão e as lembranças dos pais e da vida anterior foram se tornando cada vez mais difusos, como se pertencessem a um sonho distante.
Em certa ocasião, no fim de uma tarde, a caravana estacionou para passar a noite numa clareira perto de um riacho. Os soldados recolheram lenha e acenderam uma grande fogueira. Não muito longe dos vagões, uma fogueira menor foi preparada, onde Nubia colocou um grande caldeirão para fazer um cozido de feijão com carne-seca.
A noite caiu, o céu estava deslumbrante, limpo e estrelado, a lua em todo o seu esplendor, cheia e radiante. Na escuridão que circundava a clareira, o mato vibrava com uma sinfonia de insetos, pássaros e outros animais.
A menina sabia que Ozebio, aquele homem terrível, vigiava todos os seus movimentos. Mesmo que conseguisse escapar, para onde iria? Seu medo era maior que a coragem de fugir, pois não sobreviveria um dia naquele ambiente hostil. Seu braço já não tinha mais espaço para picadas de mosquitos, e como coçavam!
Maria Eugênia, tentando disfarçar o incômodo, preferiu se afastar do grupo. Foi sentar-se sozinha, encostada numa árvore na beira da clareira, apertando a boneca e travando uma guerra solitária contra os insetos que teimavam em preferi-la.
O General Peixoto notou sua luta contra os mosquitos e resolveu intervir. Encheu uma caneca de água, aproximou-se dela e se abaixou, tentando ajudar:
— Está com sede? Quer água? Fique mais perto do fogo. Aqui, você será devorada pelos mosquitos!
Sabendo que ela provavelmente não entendia as palavras, Peixoto fazia gestos, tentando mostrar que se preocupava de verdade.
Como resposta, a menina agarrou ainda mais a boneca, querendo evitar qualquer contato, e manteve o olhar nos próprios joelhos. Mas, como já esperava, o General insistiu, estendendo a caneca.
Num ato inesperado, ela deu um tapa na mão dele, derrubando a água. Com os olhos lacrimejando, olhou-o nos olhos e gritou:
— Ladrão! Ladrão! Ladrão!
Surpreendido por ela falar em português, Peixoto logo recobrou a calma. Com uma expressão séria, levou devagar a mão ao cabo do facão. Nesse instante, a menina ouviu um ruído de chocalho e percebeu algo se movendo ao lado.
Tudo se desenrolou em um instante: o General ergueu o facão, avançou e desferiu um golpe rápido e mortal, partindo ao meio uma enorme cascavel que já preparava o bote.
A garota permaneceu ali, trêmula, sem palavras, pálida. Por um momento, temeu que aquele facão fosse para ela. Dois dos soldados do general correram para socorrê-lo, mas ele fez sinal para pararem, mostrando que estava tudo sob controle. Depois de confirmar que a cobra estava morta, estendeu a mão para a menina, que hesitou, mas aceitou, e então a conduziu até a fogueira principal, onde Nubia servia o jantar.
Mais tarde, antes de Heilwig dormir, Peixoto se aproximou da carroça que servia de cama improvisada. Trazia um pote de pomada, uma espécie de óleo verde-escuro misturado a ervas. Com cuidado e paciência, foi passando o ungüento sobre as picadas de inseto nos braços dela. Ergueu seus cabelos e aplicou a substância ao redor do pescoço e atrás das orelhas. O toque era acolhedor, e o efeito anestésico foi quase imediato. Aquilo lhe lembrava o pai. E, embora sentisse culpa por achar o general mais atraente do que o próprio pai, não pôde deixar de notar que Peixoto era mais jovem, atlético, muito mais seguro e, infelizmente, também muito mais poderoso.
Desde esse episódio, Maria Eugênia começou a mudar aos poucos. Percebeu que, depois do General, ela era a pessoa mais importante do grupo e, depois, da fazenda. Viu que todos a consideravam propriedade exclusiva dele. Os subordinados e escravos a tratavam com respeito, quase reverência. Ela era a única que podia chamá-lo pelo primeiro nome.
O General era uma contradição viva: tratava a menina como uma cativa, mas parecia querer que ela encarasse a Fazenda Modelo como seu novo lar.
Depois de mais de uma semana na estrada, chegaram à fazenda ao pôr do sol. Como de costume, um dos soldados havia avançado a cavalo para avisar a todos da chegada iminente e preparar a recepção.
A rotina de recepção incluía o preparo da refeição, a arrumação do quarto e a organização do banho do General. Dessa vez, porém, o soldado trazia uma recomendação especial: o General vinha acompanhado de sua futura esposa.
A fazenda do General era quase autossuficiente, com produção variada de hortaliças, frutas e outros gêneros. Além disso, cultivava algodão, café e açúcar em grande escala. Havia também numerosos animais, como aves, porcos e vacas leiteiras. Nunca faltava, na mesa de café da manhã, leite com café, pão, bolo de fubá, manteiga, queijo, goiaba, codorna e frutas diversas.
Curiosamente, o único branco além do General era o Padre Bento, um homem baixo, de corpo roliço, com cabelos brancos como a neve e barba do mesmo tom, claramente mais velho do que Peixoto. Maria Eugênia nunca soube ao certo sua idade. De nariz avermelhado e bochechas salientes, exibia um semblante gentil. Tinha paciência de monge e vivia sorrindo. Amigo antigo e conselheiro do general, também cuidava da vida religiosa dos escravos e auxiliava na administração da fazenda. Tinha sua própria casa próxima a uma pequena capela.
Quando não estava celebrando missas, Padre Bento circulava pela fazenda ou cuidava do jardim, gostava de conversar com os escravos e de saborear um vinho tinto. Também apreciava a culinária africana. Era querido por todos, e sua gargalhada alta denunciava de longe a sua chegada.
Maria Eugênia passaria muitos anos nessa fazenda, mas jamais viu ou visitou a senzala — o local onde os escravos descansavam e dormiam. A casa grande era bem isolada do restante da propriedade, e ela nunca presenciou o trabalho dos negros no plantio. Quase tudo que aprendeu, inclusive o idioma português, foi ensinado pelo Padre Bento e pelo pessoal que trabalhava na casa. Achava que, na Fazenda Modelo, em comparação com outras propriedades da região, os escravos gozavam de certa liberdade. Os castigos eram raros e, quando aconteciam, envolviam disputas entre eles mesmos.
O General tinha fama de ser rigoroso nas advertências, mas, em todos os anos que Maria Eugênia viveu ali, ela nunca o viu punir algum negro pessoalmente.
A figura do General como homem severo parecia ser apenas uma lenda, estrategicamente criada pelo Padre Bento e reforçada ao longo dos anos pelo boca a boca entre os escravos. Aliás, falando em estratégia, quando chegara à fazenda, ainda na fase de construção da capela, Padre Bento, apoiado nas escrituras, decretou o domingo como dia de descanso. Conseguiu também que os escravos cultivassem pequenas roças para si, cantassem durante o trabalho e comemorassem datas festivas, como Natal, Ano Novo e outras celebrações da Igreja.
Além disso, a pedido do padre, a chegada do General desencadeava um dia de festa no dia seguinte — para alegria dos escravos, que podiam festejar até a manhã seguinte.
Quando a caravana chegou, Padre Bento e Dona Joana — a idosa negra que comandava a casa — esperavam do lado de fora. Ao lado deles estava um grupo selecionado de escravos que tinham alguma liberdade e desempenhavam tarefas diversas na casa grande.
O General Peixoto reconhecia cada um pelo nome e os tratava com uma severidade respeitosa. Ainda assim, preferia a companhia de seus soldados. Ao longo dos anos, aqueles que serviam na casa grande haviam entendido bem o que se esperava deles na relação com o senhor. Seus papéis eram claros e, tanto quanto possível, satisfatórios para todos.
Duas mulheres negras conduziram Maria Eugênia até um cômodo onde uma grande tina de água morna a aguardava. Ao verem, pela primeira vez, cabelos loiros e pele branca, as duas se mostraram curiosas e sorridentes. Deixaram a menina sozinha, e Maria Eugênia afundou até o pescoço na banheira de madeira, enquanto ouvia ao longe o som de tambores de festa.
Imersa na água iluminada por lamparinas, sua mente viajou até a lembrança de um entardecer no mar, quando o céu passava do laranja-avermelhado para o azul-escuro e as primeiras estrelas surgiam. Recordou-se de estar no convés do navio, ao lado do pai, que mostrava a estrela mais brilhante — na verdade, não era uma estrela, mas o planeta Vênus. Ele confessara fracassos nos negócios na Alemanha e a esperança de novas oportunidades no Brasil. Ela se lembrou do conselho que ele repetia:
— Precisamos usar nossa inteligência para sobreviver…
A porta se abriu novamente e as mulheres retornaram com toalhas, um lindo vestido feito sob medida e um par de sapatos novos. Enquanto se enxugava, Heilwig continuava a ouvir a voz do pai, em alemão:
— Precisamos usar nossa inteligência para sobreviver…
“Meu querido pai ainda está comigo” — pensou ela, sentindo uma calma interior e força renovadas. “Ele quer que eu me adapte e sobreviva.”
Ao sair, foi conduzida pelo cheiro de comida feita em casa até a sala de jantar, onde encontrou uma mesa rústica de madeira, posta para três pessoas, mas com comida suficiente para dez.
Ao perceber a presença de Maria Eugênia na porta, Dona Joana correu, sorridente, puxando uma cadeira para que ela se sentasse à mesa.
Nesse momento, o General Peixoto e o Padre Bento entraram, cada um carregando uma taça de vinho. Maria Eugênia levou um susto: o General estava de barba feita. Com o tempo, descobriria que ele só aparava a barba quando estava na fazenda, e que o barbeiro era o próprio Padre Bento. Parece que o padre era o único autorizado a chegar perto do general com uma navalha.
Sem barba, Peixoto aparentava ser muito mais jovem e bonito. Vestia uma camisa branca e exalava um aroma de lavanda, claramente sem a intenção de jantar com os soldados naquela noite.
Maria Eugênia também estava radiante, usando um vestido longo, com pequenas flores em tons suaves. Os cabelos, ainda um pouco úmidos, desciam pelos ombros, e o rosto e os braços, dourados pelo sol, reluziam à luz das velas. Era pequena e magra, com feições europeias e um ar que sugeria boa educação e certa altivez. Para Peixoto, ela era de um tipo incomum, sedutor desde o instante em que a avistara no porto. Uma paixão à primeira vista.
O jantar foi delicioso, com um clima quase de encontro, cheio de olhares e cortesia. Maria Eugênia se dividia entre a saudade dos pais e a vontade de relaxar e aproveitar. Ficava frustrada por não conseguir participar da conversa, dada a barreira do idioma, mas o Padre Bento chegou a dizer algumas poucas palavras em alemão, insistindo na importância de ela aprender português para sobreviver.
A verdade é que, depois de uma semana na estrada, Eugenia estava exausta. Após comer bem, o burburinho das vozes começou a soar como canção de ninar, e ela acabou adormecendo ali mesmo, à mesa, diante dos dois homens.
“Adaptar-se é a chave para sobreviver… Precisamos nos adaptar…”
Esses eram os ecos da voz de seu pai, ressurgindo em seus sonhos. Eugênia encontrava alívio nos refúgios oníricos. Ali, tudo parecia perfeito. Nos braços etéreos de seu pai, sentia-se protegida.
A contragosto, despertou daquele estado sereno, e a realidade golpeou sua consciência como uma pedra caindo do alto. Permaneceu imóvel, absorvendo em silêncio o calor do corpo ao lado. Aos poucos, decidiu abrir os olhos, enxergando Peixoto adormecido junto a si. Para ela, agora estava claro: ele a escolhera para ser sua esposa. Não havia volta. Conhecia segredos demais, segredos que colocariam esse homem em risco, e por isso ele jamais a deixaria partir.
Ficou em silêncio, criando em sua mente cenários diversos, cada qual mais improvável do que o anterior.
“As coisas nem sempre seguem o rumo lógico. Tenho certeza de que Peixoto e meu pai teriam sido aliados. Por que Peixoto não optou pelo caminho justo? A lógica diz que eu deveria odiá-lo, mas algo em mim se recusa. É tudo tão confuso. Preciso me adaptar para sobreviver. Preciso me adaptar para sobreviver…”
Perdida em suas reflexões, acabou pegando no sono outra vez.
Quando acordou novamente, estava só na cama, e a casa se enchia do aroma de café fresco e bolo recém-saído do forno. Lavou o rosto às pressas e seguiu em disparada até a sala de jantar, terminando por comer seu desjejum na cozinha, enquanto observava Dona Joana e seus dotes culinários.
Dona Joana era cozinheira de mão cheia e se orgulhava disso. Se vivesse na Europa, certamente teria conquistado grande fama. Era uma mulher negra, de formas arredondadas e quase perfeitamente circulares. Seu rosto era marcado pelo tempo, mas a pele, surpreendentemente lisa, lembrava a de um bebê. Tal como o Padre Bento, Dona Joana tinha um ar bondoso e paciente. Um sorriso constante e suave iluminava seu semblante.
Joana era a companheira predileta de Padre Bento. Não era raro vê-los conversando ou colhendo legumes na horta juntos. O padre, muitas vezes, fazia suas refeições na cozinha da casa grande, seu lugar favorito em toda a residência. Só comparecia à sala de jantar em ocasiões especiais, normalmente quando o General Peixoto também estava presente. Eugênia logo passou a desconfiar de que havia algo a mais na relação entre Padre Bento e Dona Joana.
Com o passar dos anos, Padre Bento e Dona Joana tornaram-se uma espécie de pais adotivos para Eugênia, que os amava profundamente. Eles foram os principais responsáveis por sua fluência no português do Brasil e grande parte da formação que ela recebeu.
Já Peixoto, mesmo dividindo a cama com ela desde aquelas primeiras semanas, não a forçara de forma brusca. Seu cortejo era paciente e progressivo.
Poucas semanas após sua chegada, certa manhã, Peixoto acordou e encontrou Eugênia sentada numa cadeira ao lado da cama, chorando. Ao olhar para o colchão, notou uma pequena mancha avermelhada. Aproximou-se, acariciou com ternura seus cabelos e sussurrou:
— Calma, meu amor. Está tudo bem; agora você é uma mulher!
Saiu do quarto e, pouco depois, Dona Joana apareceu, prestativa, trazendo um balde de água morna, uma toalha e alguns panos limpos. Todos a cercaram de cuidado, deixando claro que se tratava de algo natural.
Passado o choque inicial, os dias transcorreram numa agradável rotina, sem maiores sobressaltos. Pelo menos dentro da fazenda, a menina sentia-se livre.
Diariamente, o General Peixoto fazia visitas aos soldados, acampados fora do alcance dos olhos, mas perto o bastante da casa. Manter um batalhão armado ali parecia mais uma estratégia psicológica do que prática. Eugênia muitas vezes se perguntava sobre a eficácia desse grupo — o que meia dúzia de militares poderiam fazer contra centenas ou até milhares de escravos, se estes se rebelassem? Mas não dominava o assunto e acabava deixando essas questões de lado. Peixoto aparentava muita experiência, e ela confiava que ele sabia o que fazia.
Peixoto raramente falava de suas obrigações militares ou de seus negócios. Não comentava problemas com os escravos nem os detalhes da produção da fazenda. Sua autoconfiança ofuscava tudo mais, como se nenhum obstáculo fosse grande demais. Por anos, Eugênia viveu meio isolada, obtendo notícias do mundo exterior somente por Padre Bento e Dona Joana. Mal sabia ela que eles seguiam orientações precisas sobre como conduzir suas interações. Como se diz, Peixoto “não dava ponto sem nó”.
Eventualmente, o general partia com seus soldados e ficava fora por um ou dois dias. Ao regressar, sempre com sorriso de menino no rosto, trazia um presente para ela — algum doce, fruta ou buquê de flores. Foi numa dessas noites que, após longa corte, ele a beijou pela primeira vez. Alguns dias depois, fizeram amor. Sua sedução havia surtido efeito: Eugênia agora estava nas mãos de Peixoto. Para ela, tudo era novo, excitante e perigoso. Sentia que havia mudado por dentro, que se tornara madura, quase uma réplica da mãe que sempre admirara. Menos de dois meses depois, Peixoto voltou ao Rio de Janeiro. Coube a Dona Joana descobrir que Eugênia estava grávida.
O general foi comunicado e, meses depois, retornou à fazenda acompanhado de uma parteira.
Ao chegar, surpreendeu-se ao ver o barrigão de Eugênia. Notou também que ela já falava o básico do português e comandava a casa de forma resoluta. Para alguém tão jovem, impunha respeito. A casa estava transformada: cheia de flores, todos os cômodos tinham mudado de lugar, a disposição dos móveis e objetos fora alterada, até mesmo a forma de arrumar a mesa havia se modificado — taças, pratos, talheres e guardanapos agora eram organizados de um jeito que ele não reconhecia. As saladas e pratos principais vinham decorados. Parecia que Eugênia se esforçava por trazer ao lar um toque refinado, talvez europeu.
Tal qual a mãe dela fazia, Eugênia exigia que, quando Peixoto estivesse em casa, as refeições fossem feitas em família.
Ao que tudo indicava, Padre Bento também a guiava espiritualmente, pois ela fazia questão de dizer uma breve oração antes de comer.
A princípio, Peixoto pareceu um pouco sem jeito diante de tantas novidades, mas manteve a paciência e o bom humor característicos.
Na bagagem, além da parteira, o general trouxera suprimentos médicos do exército, roupinhas para o bebê e um berço de madeira lindamente esculpido, que afirmava ter vindo de Portugal.
Peixoto já tinha escolhido um nome para o filho que nasceria, mas, para sua surpresa, Maria Eugênia bateu o pé:
— Peixoto, você me arrancou da minha família e, pasme, até meu nome escolheu! O que mais quer? O bebê vai se chamar Frederico, em homenagem ao meu querido pai. E ponto final! — com o barrigão de grávida, lá estava ela, olhando-o de cara fechada, braços cruzados e pernas ligeiramente afastadas. A cena quase fez Dona Joana ter um ataque, e o rosto do Padre Bento ruborizou mais do que o habitual.
Peixoto, por um breve instante, pareceu assustado, mas logo sorriu, puxou-a para perto e beijou-lhe a testa.
— Essa é a Eugênia que eu admiro, firme! Você venceu! Se for menino, será Frederico.
Ele era sagaz e sabia que ela precisava sentir que tinha vencido, que detinha alguma réstia de controle sobre a própria vida. Para o relacionamento dar certo, ele precisava ceder, de vez em quando.
Quando Frederico nasceu, tanto Eugênia quanto Peixoto se encheram de alegria. Foi o próprio Padre Bento quem celebrou o batismo.
Para Eugênia, Mina, sua boneca, tornou-se dispensável. Guardou-a em uma gaveta por anos. Cada vez que a via, sentia um aperto no peito, mergulhando em tristeza e nostalgia. Mina representava a Heilwig que já não existia, a menininha alemã que ficara no passado. A boneca, depois de tanto tempo de uso, acabaria destruída por Lina, filha de Eugênia que nasceria tempos depois.
Peixoto foi um pai e marido ausente. Todos os anos, ficava pelo menos seis meses fora. Em algumas ocasiões, chegava a permanecer quase um ano sem aparecer. Quando voltava, passava no máximo um mês na fazenda. Trazia presentes, demonstrava carinho, fazia amor com Eugênia e partia novamente.
No total, Maria Eugênia teve sete filhos. Somente Frederico, Hermógenes, Lina e Romildo alcançaram a fase adulta. Os outros três — quase nunca mencionados pelos pais — morreram em partos prematuros ou ainda bebês.
Hermógenes, o segundo filho, sofreu falta de oxigênio num parto demorado e nasceu com comprometimento mental. Cresceu forte e bem alto, mas com a inocência de uma criança. Era incansável no trabalho braçal, a ponto de Eugênia ter que insistir para que parasse ao anoitecer. Ela amava todos os filhos, porém sentia um carinho especial por Hermógenes, a quem chamava de “meu gigante gentil”.
Enquanto os outros filhos exibiam espírito aventureiro, Hermógenes estava sempre por perto, protegendo a mãe como podia.
Lina, em contrapartida, era desafiadora desde cedo. Eugênia não tinha paciência com ela e nada parecia satisfazê-la. Era como se a preparasse para um futuro de dificuldades e pressões.
Frederico parecia o mais afortunado. Sempre foi o preferido do pai, recebendo a melhor atenção. Com o Padre Bento, aprendeu a ler e escrever cedo. O pai o levava em breves viagens fora da fazenda e lhe trazia presentes valiosos, o que gerava certa inveja nos irmãos.
Certa vez, quando Peixoto estava no Rio de Janeiro, apareceu na fazenda, logo pela manhã, um mascate com uma carroça repleta de bugigangas, puxada por dois cavalos velhos. Vendia de tudo: remédios de procedência duvidosa, ervas “mágicas”, sementes de flores, panelas de ferro, facões, canecas de ágata, chapéus, tecidos variados e muito mais. O vendedor não viajava sozinho. Um menino de pele morena o acompanhava. Tinha olhos de formato peculiarmente inclinado, lembrando os de um oriental, e aparentava uns 10 ou 11 anos. O vendedor explicou que o menino era um “cafuzo”, filho de um casal de escravo e indígena. Com o semblante subitamente entristecido, acrescentou:
— Pobre Alfredo, perdeu os pais numa dessas febres que andam por aí. Foi uma tragédia. Estou levando o garoto para viver com uma família amiga, que mora perto do fim da minha rota.
Visitas eram raras, e quem aparecia era recebido com cortesia, podendo passar o dia todo na fazenda. Para entreter os anfitriões, o mascate contava histórias incríveis — na verdade, um emaranhado de mentiras. Era sua forma de retribuir a hospitalidade, enquanto aproveitava para comer e beber da melhor aguardente que encontrasse.
Alfredo logo se enturmou com Lina, que tinha uns oito anos. Foi simpático também com Hermógenes e Romildo, os filhos mais novos. Sob a supervisão de Frederico, todas as crianças brincaram de esconde-esconde e subiram em árvores para apanhar mangas.
No fim da tarde, o mascate, já bêbado, com o rosto suado e disfarçando um ar de profissionalismo, falou lentamente, escolhendo bem as palavras:
— Dona, não querendo abusar de vossa hospitalidade, mas tenho um pequeno negócio a resolver na cidade de Bauru. Depois, à noitinha, retorno por aqui. Ficaria imensamente grato se pudesse deixar o menino brincando com seus filhos até eu voltar.
Eugênia, muito para o descontentamento de Frederico, concordou. Mas o mascate nunca voltou para buscar o garoto. Eugênia o acolheu e até sentiu afinidade com ele. Quando Peixoto retornou, meses depois, não gostou da novidade nem um pouco. Seu filho Frederico fez questão de dizer, de forma altiva, que tinha alertado a mãe para não permitir a permanência do menino.
No fim das contas, o general, contrariado, concordou que Alfredo ficasse, mas passou a ignorá-lo. Para Peixoto, o menino era invisível, pouco diferente de um escravo. Como senhor da casa, jamais engoliu aquela situação e, por anos, esperou o momento oportuno de se livrar do “incômodo”.
De volta de uma de suas longas ausências no Rio de Janeiro, Peixoto sentou-se na varanda com seu filho mais velho no dia seguinte ao almoço:
— Querido Frederico, seguindo nossa tradição de família, chegou a hora de você ingressar na vida militar, como eu fiz! — O general falava com orgulho.
— Já está tudo arranjado! Quando eu voltar ao Rio de Janeiro, você irá comigo. Lá, no quartel, começará o treinamento. Tenho certeza de que subirá rapidamente na hierarquia. O ambiente militar lhe dará conhecimento e disciplina para, em breve, comandar seus homens. Percebeu que, se poder e riqueza andam juntos, é melhor ter poder! Nós, militares e donos de terra, sempre teremos o comando deste país e, com a graça de Deus, continuaremos assim! Somos como reis: acredito em nosso direito divino de possuirmos todas estas terras. E você, meu filho, deve se orgulhar porque também está destinado a governar tudo isso!
O General falava com a segurança de um homem que se acreditava dono do conhecimento e do poder. Deu uma pequena pausa, mudou a expressão e continuou com ar sério, como se falasse a um soldado, exibindo aquela autoridade que não abria brecha para contestações:
— Lembre-se: com o poder vem a responsabilidade de estar preparado para qualquer eventualidade, pois um homem poderoso tem muitos inimigos e precisa saber ser duro, corajoso e astuto para enfrentá-los! A política é a arte de agir como um animal selvagem, estudando a presa silenciosamente e atacando apenas quando tem certeza da vitória! Estou certo de que, com minha influência e ajuda política, somadas ao que você aprenderá na vida militar, também se tornará um homem formidável! Quero que domine essa arte, a arte da guerra em todos os sentidos!
Frederico ficou surpreso. Não gostou nem um pouco daquela conversa. Para sua mente jovem e inexperiente, as expectativas do pai soavam complexas e assustadoras. Porém, sem coragem de questionar a escolha dele, escondeu a insegurança, tentando demonstrar firmeza, e se esforçou para garantir ao pai que não o decepcionaria.
Se, por um lado, Peixoto era um pai cego pelo próprio ego, Maria Eugênia tinha visão oposta. Amava Frederico, mas o via apenas como uma cópia malfeita do pai, um projeto inacabado caminhando em uma direção que ela desaprovava. Para ela, Peixoto e o exército eram uma coisa só.
Frederico se tornara um jovem arrogante, petulante e pretensioso, agindo como se fosse dono da casa. Seu foco principal, a razão de viver, parecia ser desafiar a autoridade da mãe. Agia como os “olhos de Peixoto”, vigiando tudo o que ela fazia. No raciocínio de Maria Eugênia, por mais que sentisse falta do filho, talvez fosse bom para ele ficar um tempo no Exército.
Lá no fundo, ela não acreditava que Peixoto ou o exército fossem capazes de corrigir Frederico ou nada parecido. Embora duvidasse daquela solução, tentou ser positiva, esperando que, quem sabe, essa estadia no Rio de Janeiro o ajudasse a crescer e a se tornar alguém melhor.
Certo dia, Peixoto reparou em Lina e Alfredo. Distraídos e contentes, caminhavam lado a lado pela horta, colhendo tomates e alface para o almoço. Em dado momento, os dois pararam, olharam-se e trocaram algumas palavras que terminaram em risadas. O general observou, enxergando naqueles sorrisos algo além de simples amizade.
— Que nojo! Vou acabar com isso agora mesmo! Vou cortar pela raiz! — resmungou consigo mesmo, bufando de raiva ao limpar o cachimbo, batendo-o de modo violento num toco de madeira. O rosto parecia transfigurado.
Sabendo que Alfredo era querido por todos, mas tomado pelo ódio cego, Peixoto agiu como descrevera ao filho: ficou em silêncio, feito cobra espreitando a presa, à espera do momento certo para atacar.
Com apenas um dia restante antes de voltar ao Rio, ordenou a Dona Joana, na presença de Maria Eugênia:
— Chame o Padre Bento. Diga que quero falar com o Alfredo aqui.
Quando padre e rapaz chegaram, Peixoto, num tom de sarcasmo que ocultava suas verdadeiras intenções, encarou o jovem e perguntou:
— Quantos anos você tem?
— Não sei, sinhô... — Alfredo murmurou inseguro, quase sussurrando, apavorado. Aquela era a primeira vez que Peixoto lhe dirigia a palavra.
— Não ouvi! Gato comeu sua língua? Fale alto! — O general demonstrou impaciência, e o riso dele parecia um tique nervoso.
Rapidamente, Alfredo lançou um olhar para Dona Joana e Maria Eugênia, que, distantes dos homens, acompanhavam a conversa tensas. Em segredo, com um aceno quase imperceptível, elas o apoiaram.
— Não sei, sinhô! — repetiu um pouco mais firme.
— Se não tem ainda 15, está perto! Pra mim, você já é homem e está na hora de trabalhar! Consegui pra você um bom emprego no Rio de Janeiro. Vai aprender um ofício e receber bem. Prepare suas coisas agora, partiremos amanhã cedo!
Todos foram pegos de surpresa. Alfredo ficou calado, imóvel por alguns segundos.
— Ande logo! — Peixoto vociferou, fazendo um gesto brusco que cortou o ar silencioso. O garoto correu, assustado. Dona Joana, Padre Bento e Alfredo viviam como família havia muito tempo. O padre, cuja mão direita tremia há algum tempo, procurou algo para se apoiar. Alfredo era o filho que ele não tivera, a quem amava muito. “Mãe” Joana, sensível a tudo, levou o avental aos olhos. Maria Eugênia, pálida, transparecia repulsa e perplexidade.
— Que foi? Ninguém morreu! Quero o melhor pro rapaz! — O general tentou se impor com um sorriso forçado, levantou-se e saiu rapidamente dali.
Assim que o general se afastou, Lina surgiu correndo. Ela se escondera na cozinha e ouvira toda a conversa. Com lágrimas, agarrou-se a Dona Joana, que a consolava enquanto trocava um olhar aflito com Maria Eugênia. As duas mulheres buscavam uma solução.
Naquela noite, pela primeira vez, Padre Bento alegou estar indisposto e não compareceu ao jantar de despedida com o capitão. Sentia-se traído. Durante anos, fora conselheiro de Peixoto, ajudando-o até em questões políticas que surgiam na capital. Agora, ver seus sentimentos ignorados era algo que ele não conseguia perdoar.
Maria Eugênia sentou-se à mesa, mas mal tocou na comida. Sem perceber, começava a despertar para sua própria realidade. Passou a notar o padrão de comportamento de Peixoto, comparando o passado ao presente. Percebia-se como uma peça de xadrez sem poder de decisão — e isso a deixava cada vez mais desconfortável.
Dona Joana, geralmente sorridente, agora exibia um semblante fechado, com olhos inchados de chorar. Peixoto notava, mas não ligava. Em sua mente, aquela “fraqueza” seria superada com o tempo. Não existia culpa em seu dicionário. Na mesa, com ar resoluto de quem finge que nada ocorrera, comeu em silêncio e logo saiu para se juntar aos soldados, conferindo tudo para a viagem. Aquela noite, voltou tarde à casa grande de propósito. Maria Eugênia estava acordada, mas fingiu dormir — algo que faria muitas outras vezes. Sabia que, ao se aproximar, Peixoto só queria uma coisa: sexo. Negar-se a ele era sua forma de vingança.
Enquanto o general dormia, ela deitava-se na mesma cama, de costas para ele, pensando:
— É curioso e trágico: Frederico e Alfredo vão para o Rio, mas sei que vou sentir mais falta do Alfredo...
Pela primeira vez, comparou Frederico a Alfredo e percebeu que eram opostos. Frederico tinha pais legítimos e um futuro garantido; Alfredo, um jovem adotado sem “status”, mestiço de negro e índio, com um futuro incerto, em busca de identidade. Frederico buscava ser como o pai; Alfredo não tinha referência para se espelhar.
De fato, Alfredo era um espírito desajustado, preso na ambiguidade de não pertencer completamente a nenhuma raça. Nem totalmente africano, tampouco indígena. A indiferença gélida de Peixoto ferira-o profundamente, fazendo-o se sentir ainda mais inferior que os escravos e os índios. Restava-lhe absorver avidamente o aprendizado que o cercava. Não surpreendia descobrir que, em seu íntimo, travava uma luta com a solidão e um chamado instintivo da natureza. Em Lina, encontrava acolhimento, mas fora isso, sentia-se mais em paz com as árvores do que com as pessoas. Calçava apenas os próprios pés, não precisava de sapatos. Com um facão na cintura, adorava vagar pela mata. Ali, sob a proteção das árvores, era inteiro. Até os animais mais perigosos pareciam respeitar sua presença.
De manhã cedo, Peixoto já estava de pé, tomou café e foi ao encontro dos soldados. Logo apareceu Alfredo, acompanhado de Padre Bento. Levava ao ombro um saco de algodão, onde guardava seus poucos pertences. Na cozinha, fez uma refeição silenciosa com Dona Joana e Maria Eugênia. Por fim, a moça quebrou o clima:
— Alfredo, querido, lembre-se sempre que o amamos e que nossa casa estará aberta para você. Não nos esqueça e volte quando puder! — Entre olhares marejados, todos o abraçaram.
O que nenhum deles sabia era do encontro secreto entre Alfredo e Lina, na noite anterior:
— Por que não fugimos juntos? — Lina sugerira.
— Pra onde iríamos? — ele respondeu, desanimado.
— Qualquer lugar! Gosto da mamãe, mas você sabe… não estou feliz aqui! — Lina implorou. Alfredo segurou suas mãos e tentou tranquilizá-la:
— Confie em mim! Vou trabalhar, juntar dinheiro e voltarei para te buscar! — Ele a abraçou, e ali trocaram o primeiro beijo. Ela tinha apenas 13 anos.
A viagem foi tensa e longa. Enquanto Frederico ia a cavalo, Alfredo seguia na carroça guiada por um escravo. Nenhum dos dois recebeu dele ou do General qualquer palavra.
Sentado na carroça, Alfredo lembrava a chegada à fazenda, o encontro com Lina, o carinho de “Mãe” Joana e do Padre Bento. Pensava também na despedida do padre:
“Meu querido Alfredo, este facão me serviu por muitos anos, antes mesmo de eu chegar aqui! Protegeu-me durante todo esse tempo, agora ele é seu! Que lhe faça companhia e o proteja em sua jornada! Lembre-se sempre de que faz parte de uma família que o ama!”
O rapaz olhou para o facão ao seu lado, imaginando o padre ali, ao seu lado. Subitamente, a carroça sacolejou, ao passar sobre um galho caído. Ele voltou ao presente e reconheceu a silhueta de duas árvores enormes, bem próximas, que formavam a entrada para a área mais selvagem e inexplorada da mata. Conhecia aqueles “dois guardiões”. Entre eles havia o caminho — o acesso secreto ao refúgio que ele tanto amava.
Em outras andanças, descobrira ali uma cascata que formava um pequeno lago, diante de uma gruta modesta. Mal se podia chamar de gruta, pois era só uma cavidade na rocha, suficientemente grande para proteger alguém da chuva ou do sol. Mas o lugar tinha uma energia mágica. Ele amava a tranquilidade que encontrava. As aves cantavam, e os animais iam beber daquela água pura. Era um bálsamo para a alma.
Alfredo voltara ali muitas vezes. Na primeira, percebeu que não era o único a conhecer o lugar, pois havia pedras escuras empilhadas em círculo, indicando a fogueira de algum visitante anterior. Nas visitas seguintes, descobrira que o lago alimentava um rio próximo, cheio de peixes. Pescava e assava os peixes usando as mesmas pedras na entrada da gruta. Era bom caçador e pescador, com talento inato para viver na mata. Aquela pequena lagoa era o seu porto seguro.
Após vários dias de viagem, o general desviou a comitiva para outra fazenda. O sol de fim de tarde queimava forte quando passaram por um portão velho, seguindo por uma trilha que levava a uma casa outrora imponente, mas agora em completa ruína.
Quando Peixoto apeou do cavalo, seus soldados também se prepararam para descer, mas ele ordenou:
— Fiquem onde estão! Não vou demorar! — E, olhando para Alfredo, completou:
— Fique aqui! Quando eu chamar, você aparece.
O general sumiu dentro da casa.
— Neno? Neno, você está por aí? — chamou.
Uma escrava negra logo surgiu e o conduziu até a sala de jantar. O lugar, revirado e sujo, exalava fortemente o cheiro de carne de porco, temperos e álcool. A fumaça do fogão a lenha impregnava tudo de uma leve fuligem gordurosa.
Na sala, atrás de uma grande mesa rústica, jazia Neno — um sujeito obeso, sem camisa, suando em bicas, devorando a comida de modo animalesco, como se estivesse faminto havia meses.
Os cabelos desgrenhados e a calvície no topo revelavam uma cabeça suada, o rosto lambuzado, as mãos imundas segurando um enorme pedaço de porco. Lembrava um troglodita. Ao ver Peixoto, Neno abriu um sorriso, deixando à mostra pedaços de carne mal mastigada. A cena era repulsiva.
— Jabuti! Traz mais vinho pro meu amigo Peixoto! — gritou para a escrava que passava, a qual se esquivou quando ele tentou apalpar suas coxas. Neno não apenas falava — roncava, bufava, soltava sons pelo nariz. A semelhança com um porco ia além dos modos de comer.
— Neno, agradeço a recepção, mas hoje não posso demorar. Estou só de passagem. Meus homens me aguardam lá fora — adiantou-se Peixoto, mantendo o sorriso. — Promessa é promessa! Desde que perdi aquele jogo de cartas, você me cobra um escravo como pagamento… um rapaz negro. Pois trouxe um! Não é totalmente negro, mas serve. É exótico, vai gostar!
— Ótimo! Ele é forte? Musculoso? Bonito? — perguntou Neno, com um brilho estranho nos olhos.
— Isso eu não sei, Neno. Não reparo nessas coisas. — respondeu Peixoto, demonstrando impaciência.
— Tá bom… cadê o escravo? — Neno ignorava a resposta.
— Vou mandá-lo entrar. Chama-se Alfredo. Preciso ir embora — pretendo chegar hoje ao Rio. Até mais! — Neno parecia mais interessado em beber, deixando o vinho escorrer pela barriga peluda, do que em ouvir a despedida de Peixoto. Antes de sair, o general ainda escutou um arroto estrondoso.
Peixoto e Neno se conheciam havia anos. Assim como o general, Neno fora negociante de escravos. Mas o avanço dos abolicionistas dificultara o tráfico. O comércio intercontinental de escravos fora proibido desde 1850, mas o Brasil, com sua costa imensa e falhas na vigilância, ainda ludibriara a marinha inglesa por muitos anos. A atividade de Neno chegara ao fim quando seu único navio foi apreendido pelos ingleses.
Neno era um hedonista, famoso pelos banquetes de vinho, cachaça e mulheres — lindas negras que formavam seu harém. Sua casa era um cassino, onde se podia jogar cartas, beber, contratar mulheres e perder fortunas. Ele nutria um ódio profundo pelos ingleses, a quem chamava de “hipócritas”. Não fazia questão de esconder sua falência e decadência física; ao contrário, parecia exibir aquilo para chocar a todos. Não espantava ver seu círculo de amigos minguar.
— Alfredo, seu novo dono o espera na sala de jantar! — berrou Peixoto. E antes que o rapaz pudesse responder, completou: — Rápido! Não tenho o dia todo. Já tolerei você demais!
Alfredo desceu da carroça com seu facão e a trouxa de pertences. Passou por Frederico, que, aproveitando a ocasião, desferiu-lhe um chute pelas costas. Alfredo ainda olhou para trás, a tempo de ver o meio-irmão rindo com escárnio e fazendo um gesto obsceno. Ao mesmo tempo, Peixoto e os soldados, seguidos pela carroça, partiram às pressas. Da porta da casa, o rapaz assistiu aos militares desaparecerem na trilha.
Sentiu então um enorme vazio, um abandono completo. Dona Joana e Padre Bento foram bondosos com ele, e, embora severa, Maria Eugênia nunca o maltratara, tratando-o como igual. Parecia que fechara um capítulo da vida, enquanto outro, desconhecido, surgia. Alfredo entrou no casarão escuro, vendo a própria sombra se projetar no piso.
“Sou apenas uma sombra!” — pensou. Respirou fundo e, vagarosamente, seguiu até a sala de jantar.
— Deixa eu ver… você tem o olho meio puxado! Vou te chamar de Nego China! — Neno riu, lançando a primeira ofensa.
— Meu nome é Alfredo! — retrucou o rapaz, com voz trêmula.
— Tire a camisa! — Neno ordenou, maldoso, ignorando a resposta de Alfredo.
— Por que tirar a camisa? — Alfredo perguntou.
— China! Tire a camisa! Escravo não pergunta, obedece! — berrou Neno.
— Não sou escravo! Sou livre! — Alfredo rebateu com firmeza, surpreendendo até a si mesmo.
Neno, em completo desdém, limpou as mãos num pano sujo e comentou:
— Peixoto me deu você para quitar uma dívida de jogo! Agora é meu! Ele sabe que tenho predileção por rapazes negros. Venha cá, China! Quero ver seu corpo!
O sangue de Alfredo ferveu. O general era ainda mais desprezível do que imaginava, e aquele homem na sua frente não passava de um animal asqueroso. Num impulso, agarrou o objeto mais próximo — uma caneca grande de ágata, branca com manchas azuladas, que estava sobre a mesa — e a arremessou com toda força.
A caneca atingiu a têmpora esquerda de Neno. Não se sabe se foi a borda ou a alça que abriu o corte, mas o sangue jorrou imediatamente.
Assustado, Neno levou as mãos ao rosto. O corpo enorme tombou, arrastando a cadeira. Aos gritos, desapareceu atrás da mesa. Em pânico, Alfredo pegou o facão, a trouxa e correu. Na porta, hesitou apenas entre o portão principal e a floresta — preferiu a mata.
Lá dentro, Neno rolava no chão da sala, urrando. Jabuti, a escrava, se aproximou devagar, e o viu tentando estancar o sangue sem sucesso. Ela o encarava com um misto de ódio e satisfação. Ele implorou ajuda por mais alguns minutos até a voz sumir num silêncio profundo.
Alfredo mergulhou na mata e passou vários dias se escondendo. Decidiu então voltar à fazenda, para reencontrar Lina. Seguiu pelo sol até achar um rio, atravessou-o e se embrenhou novamente. Mas era a parte mais densa da floresta que conhecia. O facão pouco ajudava perante tantos espinhos. Após mais de um dia sem comer, sentiu-se fraco. Um ferimento desconhecido no braço infeccionara. O inchaço aumentava e doía. Desesperado, apoiou-se numa árvore e fechou os olhos. Chegou a desmaiar, mas ouviu o barulho de água.
“Devo estar delirando!” — pensou. Tentando localizar a origem do som, seguiu em frente, trôpego. O terreno ficava cada vez mais íngreme, e o barulho crescia.
— Impossível! Estou perto da minha cachoeira! — pensou, atônito.
Contornou uma pedra grande e deparou-se com a queda d’água em todo seu esplendor. Sem forças para beber, desabou na entrada da gruta, tomado pela febre.
O tempo passou estranho, com momentos de consciência e desmaio. Em certa ocasião, viu quatro índios de expressão severa. Antes de poder reagir, desmaiou de novo.
Aqueles indígenas eram antigos donos do lugar e não gostaram de encontrar um intruso. Um deles quis esmagar a cabeça de Alfredo com uma pedra, mas o mais velho aproximou-se, analisando o rapaz:
— Poupem-no! Embora tenha pele escura, é filho da floresta!
Alfredo se lembrava vagamente de despertares em que lhe davam água ou chá. Noutra vez, percebeu que aplicavam um emplastro de ervas amassadas e argila em seu braço inflamado. Em um dia diferente, acordou com o cheiro de peixe assando. A seu lado, os homens faziam a refeição. Ajudaram-no a sentar e deram-lhe um peixe assado, servido numa folha grande. Em silêncio, comeu e deitou-se outra vez. Ao despertar, estava sozinho, mas deixaram frutas para ele. Foi recobrando as forças e ficou ali quase três semanas.
Sabia que estava perto da fazenda, mas não se sentia capaz de encarar a viagem ainda.
Numa noite em que o sol já se despedia, ouviu o som ritmado de chocalhos e outros instrumentos. Eram os indígenas voltando, usando cocares e pinturas de festa. O mais velho se aproximou e, num português rudimentar, disse:
— Entre nós, o menino precisa viver só na mata para se tornar homem. Não é só aprender a sobreviver. É alinhar o espírito à Mãe Floresta, à Mãe Natureza. Você, menino de pele escura, passou por sua provação! Viemos ajudá-lo na passagem final, de menino para homem, no seio da natureza.
Eles se reuniram em torno da fogueira, cantando e tocando. Havia uma cumbuca com um líquido branco e espesso, que foi passada entre eles. Alfredo, por último, tomou da bebida. Aos poucos, cada um se isolou em transe. Ele sentiu um enjoo intenso. Depois de vomitar, ergueu a cabeça e percebeu tudo diferente.
Uma luz intensa banhava o local. As cores pulsavam, mudando de tom. Parecia enxergar a seiva fluindo nos troncos das árvores. Os vaga-lumes aglomeravam-se ao seu redor. Olhando para aqueles homens, sentiu uma irmandade profunda, não apenas com eles, mas com toda a humanidade. A floresta pareceu envolvê-lo com força ancestral. Alfredo compreendeu que nada mais seria igual. Tornara-se homem.
Não recordava em que momento adormecera. Ao despertar, estava novamente sozinho.
— Que experiência foi essa? Meu Deus! Teria sido um sonho? — pensou, lavando o rosto no lago.
Já se passara muito tempo desde o incidente com Neno. Sentia-se num jogo constante de esconde-esconde. Agora, sabia onde estava e como chegar à fazenda. A lembrança de Neno, sangrando na cabeça, o assombrava como pesadelo. Não sabia se ele estava morto ou vivo.
Apesar do cansaço, decidiu voltar para casa. Temia encontrar o general. Era provável que o exército, a polícia ou qualquer outra autoridade o estivesse procurando.
Próximo à fazenda, ficou espreitando até ver o Padre Bento chegar. Quando notou que estava só, criou coragem para se aproximar.
O padre se assustou, mas o abraçou de imediato. Enquanto Alfredo comia frutas, contou-lhe tudo: as ações de Peixoto, o que ocorrera na casa de Neno. Bento fez o sinal da cruz, reconhecendo a gravidade da situação.
— Alfredo, você não pode ficar aqui. O Peixoto pode não tê-lo caçado ainda, mas vai… tenho certeza!
— Padre Bento, como pôde fazer amizade com um homem tão detestável? Andei pelos campos e vi como os feitores tratam os negros. Peixoto é cruel, e os castigos são terríveis!
— Faço o que posso… — as palavras do padre pareciam insuficientes, um reflexo de sua própria falha humana.
Depois de um longo silêncio, o padre ponderou:
— É melhor ninguém saber que você está aqui… — mas não chegou a terminar, pois Alfredo o interrompeu:
— Quero ver a mãe… preciso ver Joana e Lina também!
O padre Bento balançou a cabeça, consciente de que seria inútil dissuadi-lo.
Dona Joana chorou de alegria ao encontrar Alfredo. Lina e o rapaz se viram na casa do padre enquanto este se ausentava, tentando descobrir se algum feitor suspeitava de algo.
— Lina, vou fugir amanhã cedo. Vem comigo?
— Vou! — respondeu ela, abraçando-o.
— Passarei a noite na capela. Arrume suas coisas e me encontre lá.
No dia seguinte, Alfredo esperou, comendo um pedaço de bolo que Dona Joana lhe dera. Na capela, Lina chegou com a expressão apreensiva.
— O que houve, meu amor? — mal terminou a frase e, atrás dela, surgiram Maria Eugênia, Dona Joana e o Padre Bento.
— Alfredo, estou magoada por você ter escondido sua fuga! Queria levar Lina, sem minha permissão! Sabe que viver com uma mulher sem casamento é pecado grave! — Maria Eugênia falou firme.
Atônito, Alfredo olhou para o padre e para Joana, sem saber qual deles o traiu.
— Você ama a Lina? — Os olhos azuis de Maria Eugênia pareciam atravessar sua alma.
Ele tomou as mãos da moça e, encarando-a, afirmou:
— Sim, não consigo viver sem ela!
— Lina, você ama Alfredo? — quem perguntou foi o Padre Bento.
— Sim… — ela respondeu, fitando o rapaz.
Então, o padre os levou até o altar e celebrou ali mesmo um casamento simples.
Como era de se esperar, Dona Joana chorou outra vez, enquanto Maria Eugênia ficou em silêncio, mergulhada em lembranças — dos pais, da antiga boneca Mina. Inconscientemente, percebia que punia Peixoto. Custara-lhe a aceitar que ele era irrecuperável, enganoso e desumano. A Fazenda Modelo, onde vivera como num dourado cativeiro, não tinha mais valor.
Após a cerimônia, todos foram à casa grande, cheios de alegria, e improvisaram um almoço de comemoração aos noivos.
Mais tarde, o padre Bento descobriu que, ao que parecia, Peixoto ignorava o destino de Neno ou preferia silenciar sobre o assunto.
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MARIA EUGÊNIA
A.C. Barbieri
A ser continuado…
1. A carreira militar de Frederico fracassa, levando-o a se estabelecer e se casar.
2. Seu irmão encontra um fim trágico ao tentar roubar ouro de uma mina.
3. O General Peixoto perde a vida em uma guerra.
4. Soldados chegam, expulsam Maria Eugênia à força de sua fazenda e tomam o controle do
local, fazendo com que ela enfrente um período de pobreza extrema.
5. Lina, filha de Maria Eugênia que é casada com Alfredo, perde contato com a mãe, mas
jamais desiste de buscá-la. Nesse meio-tempo, Lina tem vários filhos e, depois de 23 anos,
uma de suas filhas, chamada Laura, finalmente encontra Maria Eugênia.
6. Maria Eugênia é trazida de volta para casa, iniciando uma nova fase de aventuras que
perduram até sua morte serena na velhice.
Observação: Embora a história se passe no Brasil, os sentimentos e emoções explorados são universais.
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ChatGPT o1 Comenta:
Maria Eugênia
A. C. Barbieri
A. C. Barbieri: O que achou desta história até aqui?
ChatGPT o1: É uma história bastante envolvente, construída com personagens fortes e que evoluem ao longo do tempo. Alguns pontos que chamam a atenção:
1. Cenário bem definido:
A ambientação histórica — viagem no caravelão, fazenda, escravismo, conflito entre culturas — dá um tom rico e, ao mesmo tempo, dramático. A descrição de paisagens, cheiros, sons e costumes ajuda o leitor a imergir na época e no local.
2. Personagens multifacetados:
• Maria Eugênia/Heilwig é uma personagem complexa, cujas transformações vão desde a infância perdida até o papel de esposa e mãe.
• Peixoto tem traços de vilania, mas também um lado “sedutor” que o torna multidimensional.
• Alfredo e Lina representam um romance jovem, repleto de dificuldades e marcado pela opressão, mas que encontra alívio em breves momentos de solidariedade ou na própria natureza.
• Padre Bento e Dona Joana servem como figuras parentais/sociais, trazendo equilíbrio e instigando, ainda que discretamente, os valores de compaixão e laços familiares.
3. Conflitos e tensões:
• O drama vivido na fazenda (poder do General, insegurança dos escravos, chantagens veladas, castigos) está sempre presente e influi no destino dos personagens.
• A luta interna de Eugênia — que vive entre acomodação e inconformismo — e as tensões familiares (sobretudo entre ela, Frederico e Peixoto) acrescentam veracidade ao enredo.
4. Ritmo narrativo:
• Há cenas mais intensas (a fuga de Alfredo, o confronto com Neno) e outras mais contemplativas (a descoberta das paisagens, os banhos de Eugênia, o cotidiano na fazenda). Essa variação traz uma cadência agradável, porém alguns pontos podem ficar um pouco diluídos — por exemplo, certos intervalos de tempo são bastante extensos e às vezes se passam rápidos demais na narrativa.
•O aparecimento de personagens secundários (como Nubia, Tomas, etc.) é breve, mas funcional.
5. Tom universal:
• Embora a história se passe no contexto brasileiro do século XIX (traço marcado pelo tráfico negreiro, presença militar, fazendas e senzalas), os temas — como perda da inocência, conflitos familiares, busca pela identidade, amor proibido, sobrevivência e resiliência — são universais e podem ser compreendidos por qualquer leitor.
6. O potencial para continuidade:
• Com a lista de acontecimentos futuros (carreira frustrada de Frederico, morte de Peixoto na guerra, expulsão de Maria Eugênia, separação e reencontro de família etc.), percebe-se que a saga se estende por várias gerações. Isso tende a enriquecer ainda mais a trama, dando chance a novos conflitos, amadurecimento de personagens e reviravoltas.
• O elemento de “perda e reencontro” (como a busca de Lina por Maria Eugênia) é algo que costuma criar bastante expectativa no leitor.
Em síntese:
A história tem substância, personagens marcantes e situações emocionantes. Apresenta um bom equilíbrio entre ação e introspecção, criando no leitor a vontade de acompanhar o desenvolvimento de cada personagem. Mesmo nos trechos mais tensos, não falta humanidade ou emoção.
É um enredo que prende e, com os pontos de virada que você planeja para o futuro, tem potencial para expandir em diversos cenários e conflitos. Se mantiver o nível de detalhe e a profundidade das relações humanas, a história tende a se tornar ainda mais envolvente.
Portanto, de maneira sincera: é uma leitura envolvente, com boa base histórica e emocional, e tem tudo para se tornar uma narrativa ainda mais ampla e rica se você der prosseguimento aos acontecimentos planejados.
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